sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Lar doce lar


Bruno Almeida e Daniela Fiscarelli*

Alessandra Silva Novais aguentou por anos a violência vinda de pessoas diferentes. “Eu não queria que minhas irmãs passassem o que passei”, conta Alessandra, que nasceu em Mucugê, no interior da Bahia. Mais velha de seis irmãos, ela ajudava mãe em casa. Sempre gostou de estudar para poder ter uma vida melhor.

Acostumada com dificuldades no trabalho, Alessandra diz que era comum ter de “ir buscar água no rio porque em casa não tinha”. Uma tia a convidou para ir morar em Praia Grande e trabalhar como empregada doméstica. Alessandra aceitou, para poder mandar dinheiro para a mãe.

Como não havia mais vagas nas escolas públicas, ela entrou numa particular e teve de pagar com o próprio dinheiro. Sentia diferença na qualidade do ensino da escola daqui com as das cidades baianas onde morou. Passava horas da madrugada estudando para poder acompanhar os outros alunos.

Alessandra estudava da madrugada porque a patroa a obrigava a trabalhar sete dias da semana, sem folga. E ainda tinha de aguentar fofoca das outras empregadas, que a invejavam por conseguir pagar a escola com o próprio salário. “A raiva das pessoas era de ver que eu queria crescer”, diz.

Limpar 16 banheiros - Mesmo fazendo tudo certo, Alessandra foi demitida num domingo quando, depois de limpar os 16 banheiros da casa, tomou um remédio para uma cólica insuportável e precisou se deitar. “Aguentei aquilo por dois anos. Um dia ela [a patroa] me demitiu e disse para eu voltar para minha terra”.


Depois deste emprego, Alessandra trabalhou em mais quatro lugares. Numa loja de móveis, foi humilhada novamente pelo chefe, que era parente dela. O chefe a chamava de burra porque não sabia mentir para os clientes. “As pessoas achavam que eu era incapaz só pela maneira que a voz sai, pelo meu sotaque”.

Em outro emprego mais recente, o supervisor - que, segundo ela, tinha histórico de agressão e humilhação - jogou uma pasta em seu rosto porque não havia gostado de um serviço. Ao responder porque não fez denúncia de nenhum destes casos, Alessandra diz que tinha medo de não conseguir continuar a mandar dinheiro para a mãe e para os irmãos.

“Aprendi muito com as dificuldades e poupo muito. Hoje, posso comprar e comer o que quero, amo viajar e principalmente ajudar as pessoas. Foi até bom passar por algumas situações, valorizo mais as coisas hoje”.

Quando veio para a Baixada Santista para trabalhar e estudar, Alessandra tinha 17 anos. Hoje, com 38, é pós-graduada em Finanças e Contabilidade. Trabalha como analista contábil e viaja sempre que pode. “As palavras ficam marcadas na gente”.

Mais de 1200 casos - Santos registrou, só no ano de 2012, 1207 mulheres sofreram algum tipo de agressão. São quase quatro casos por dia. Os índices sempre são maiores. Muitas mulheres, como Alessandra, não denunciam os agressores, ainda mais quando se trata de violência psicológica.

No mesmo período, houve também 94 estupros, seis tentativas de homicídio e um assassinato. A cautela necessária no tratamento da mulher agredida exige atenção específica para cada caso, já que a situação é sempre delicada.

Aumenta-se ainda mais a atenção se houver perigo do agressor voltar a praticar violência. “Há pouco tempo veio uma mulher aqui denunciar o ex-marido pela segunda vez. Ele não se conformava com a separação, então invadiu a casa dela, pegou tudo que podia e o que não podia ele quebrou. Além disso, ele deixou o gás aberto para quando ela ligasse algo na casa, explodisse”, conta a recepcionista da delegacia da mulher de Santos, Josette Iauatha.

O agressor foi preso, mas a família pagou a fiança e logo ele foi solto. O ex-marido foi atrás da ex-mulher novamente, ficou esperando-a na esquina de casa e a agrediu. “Em casos assim, nós levamos a vítima para o abrigo especial, que só nós sabemos onde fica”, explicou Josette. Para ter direito ao abrigo, a vítima tem de fazer a denúncia na Delegacia da Mulher.



Cultura do Machismo - “Os passos que as mulheres têm de seguir após sofrerem agressão não são muito bem explicados”, diz a advogada e coordenadora jurídica da Central de Atendimento à Mulher de Santos, Inês Maria Toss. Segundo ela, falta comunicação entre as áreas que cuidam da prevenção e do combate à violência contra as mulheres. Para Inês, esta violência resulta de fatores culturais que alimentavam o machismo. Apesar de a sociedade ter sofrido mudanças, ainda é cultivado um pensamento que explora e inferioriza o gênero feminino.

Sobre esta cultura machista, ela cita uma interpretação comum, simplista e machista do livro “Dom Casmurro”, de Machado se Assis: Bentinho, mesmo levando Capitu à morte pela violência psicológica que praticava, é perdoado, porque há a possibilidade de ter sido traído. Assim, “a mulher é tida como culpada por tudo, inclusive por morrer”.

Comercial de margarina - Segundo Inês, ao contrário do que se pensa normalmente, “a violência doméstica e familiar acontece em qualquer setor social. Não há características comuns a todos os casos”. Ela diz ainda que o “lar doce lar ou a família de comercial de margarina nunca existiram”, e que dentro da casa muitos homens se sentem livres para agredir a mulher física ou psicologicamente, sem que isto resulte em denúncias de terceiros, familiares ou autoridades.

No Brasil, em 2006, foi criada a lei Maria da Penha, que, de acordo com a advogada, “tenta atender a mulher na proteção da sua dignidade humana, no seu direito de conviver harmoniosamente e com direitos básicos, sem sofrer violência física e psicológica, sem ofender sua saúde”.

Inês diz que é preciso mudar a estrutura do tratamento, da reabilitação, e incluir nele os agressores, para prevenir a perpetuação da violência. “Os movimentos sociais hoje começam a pedir abrigo para os agressores que não vão presos. E lá eles recebem atendimento para contextualizar cada caso”.

* Este é o terceiro texto da série "Os Indesejados", projeto produzido por estudantes de Jornalismo da Universidade Católica de Santos (UNISANTOS). 

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