quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Cotas na política


Por conta do Dia da Consciência Negra, parlamentares reacenderam a discussão sobre criar cotas para deputados negros. Mas o debate foi tímido – é verdade -, sufocado pelas notícias sobre a prisão dos colegas condenados pelo mensalão. 

A proposta é mais um capítulo da distorção político-partidária em torno das cotas no Brasil. O tema, em prática no país há pouco mais de uma década, foi insuficiente para provocar alterações culturais nas relações étnicas. Não aconteceram mudanças substanciais no ensino superior, espaço onde as cotas geraram gritarias e outras posições agressivas. Os negros representam de 3 a 5% dos universitários, números que se mantiveram estáveis no período.

As pesquisas socioeconômicas indicam que os negros ainda recebem menos do que brancos na mesma posição profissional e com a mesma formação acadêmica. Negros recebem 36% a menos, índice muito próximo de uma década atrás. Entre os 1% mais ricos, negros e pardos representam somente 16% da população.

Criar cadeiras na Câmara dos Deputados é reforçar a mentalidade de segregação, criando um parlamento dentro de outro. Combater o racismo é, acima de tudo, propiciar condições estruturais para que o negro possa ter espaço para se desenvolver em termos políticos. Cadeiras só servem de consolo, se os convidados vão permanecer sem voz ativa na festa.

A educação política passa pela redução da desigualdade social, e não por constituir uma minoria no Congresso, a ser ignorada em suas reivindicações. O parlamento, novamente, aposta em projetos cosméticos, que agradariam um nicho eleitoral, sem – de fato – apresentar condições para alteração do modelo de discriminação no país.

Um exemplo é a lei 10.639/03, que estabelece o ensino de História e Cultura de origem africana. Isolada, a lei teve pouco efeito prático nas redes de ensino. A capacitação, no geral, é restrita a uma minoria de professores. A lei, mais uma vez, mal cutuca mentalidades enraizadas, até porque é preciso que se reconheça com todas as letras que o Brasil é um país racista.

Sem observar o quadro socioeconômico, o Congresso Nacional continuará como mais uma miragem para a maioria da população negra. Segundo levantamento divulgado pela ONG Transparência Brasil, somente 9,8% dos deputados federais e senadores são negros e pardos. Faltam números disponíveis para que se possa construir um quadro evolutivo, mas se sabe que estes grupos sempre tiveram poucos representantes.

A legenda com maior índice de parlamentares negros e pardos é o PT: 15%. No PSDB, principal adversário, negros e pardos não passam de 3,4%. O PT, aliás, estabeleceu que 20% das chapas que concorrem à direção do partido sejam compostas por negros e outros grupos minoritários. Mas vale ressaltar que nem o PT alcança o índice de 30% de mulheres candidatas, como determina a legislação eleitoral.

Antes de se criar cotas na Câmara dos Deputados, são necessários outros passos no sistema político. 51% dos brasileiros são negros ou pardos. E nenhum partido se aproxima deste percentual de filiados, quanto mais de candidaturas nas últimas eleições. O Congresso Nacional é mais um termômetro que indica a temperatura nas relações raciais no país.

Entretanto, houve uma mudança radical nos últimos dez anos. As cotas desnudaram um tipo de esqueleto autoritário. Aqueles que insistem em negar o racismo no Brasil escrevem livros e vomitam bobagens na TV. São os mesmos “heróis do atraso”, que costumam defender a limpeza social de mendigos e a matança fardada nas periferias. É a turma que também exala machismo e homofobia. Os reacionários têm agora nome, sobrenome, cargos e títulos intelectuais. Seremos coniventes com eles?

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

O costureiro



A política é a arte do transitório. Nenhuma vitória é definitiva, assim como nenhuma derrota enterra carreiras eleitorais. No Brasil, as alianças políticas são, por vezes, tão improváveis – não apenas no sentido ideológico -, que servem como mágica para ressuscitar quem era dado como morto.

Em outubro do ano passado, o deputado federal Márcio França, sofreu – indiretamente – a maior derrota de sua biografia. Depois de uma campanha afogada na soberba e sustentada por pesquisas eleitorais, França assistiu de camarote à derrota do filho Caio na disputa pela Prefeitura de São Vicente, a maior surpresa do processo eleitoral na Baixada Santista.

Uma dinastia de 16 anos ruiu em apenas uma hora, com o grito eletrônico das urnas, vindo da Área Continental da cidade. O atual prefeito Luiz Cláudio Bili reconheceu, na noite da vitória, que parte dos votos eram contra o menino-herdeiro. Pai e filho conviveram com o silêncio por oito meses até a digestão (talvez parcial, talvez completa) do desastre.

Um ano depois, Márcio França deixou – sem escalas – o gabinete de uma secretaria estadual coadjuvante para entrar nos holofotes da principal e mais improvável aliança política da corrida para a presidência. O ex-prefeito de São Vicente usou linhas e agulhas e ajudou a costurar o acordo que levou Marina Silva ao PSB.

É óbvio que nenhuma aliança deste porte depende de um único costureiro. O próprio Márcio França não esperava, como disse à revista Piauí. “Convidei ele (Walter Feldmann) e a Marina. Convidei por educação porque ninguém imaginava que ela fosse.”

O fato é que o deputado federal soube capitalizar para si a autoria da obra, sem que ninguém em seu partido dissesse o contrário. A vitória retomou o planejamento (e sonho de consumo) do atual secretário estadual de Turismo: ser vice-governador do Estado.

Como ainda restam 10 meses e meio para as eleições, a política é ainda líquida, flexível e aberta às negociações. Márcio França precisa quebrar – pela segunda vez – a falsa fragilidade de Marina Silva, que acena com candidato próprio para o Governo de São Paulo. Um nome nascido dentro de casa é, definitivamente, mero figurante na disputa, ao mesmo tempo em que sepultaria – por hora – o sonho do ex-prefeito de São Vicente.

Marina Silva, apesar da filiação ao PSB apontar o contrário, age com a lógica. Como enfrentar os tucanos na eleição presidencial e estar de braços dados com eles no principal Estado? Abraçar Alckmin e fingir que não enxerga Aécio Neves no mesmo palanque?

Já Márcio França aposta na vida real. Nela, acordos não dependem de partidos, ideologias, legislação ou distância geográfica. Acordos dependem de projetos de poder. O ex-prefeito de São Vicente tem no PSB, um novo morador que se encaixa como exemplo. Vicente Cascione foi, na Câmara dos Deputados, vice-líder do Governo Lula, enquanto em Santos seguia como tradicional adversário de Telma de Souza, do mesmo PT.

França tem que correr para alinhavar que tipo de roupa pretende usar na festa de outubro de 2014. Vice-governador da dinastia tucana? Reeleger-se deputado federal como Plano B? Ou permanecer na condição atual, como chefe de uma secretaria de visibilidade política relativa?


O problema é que a aliança que o alçou à condição de costureiro competente pode se virar contra o feiticeiro. Por um lado, Márcio França tem que reconhecer que Marina Silva, embora magrinha, veste número maior no guarda-roupa político nacional. Por outro, aprendeu, na cidade onde nasceu para a vida pública, que nenhuma tendência desfila eternamente na passarela eleitoral.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Estupro: a pandemia


O número de estupros cresceu 23% na Baixada Santista. Em 2012, foram 672 casos, contra 545 no ano anterior. Em 2013, até setembro, foram 413 ocorrências, média que se aproxima de dois casos por dia na região.

No Estado de São Paulo, uma mulher é estuprada a cada 40 minutos. No país, dez casos por dia. As estatísticas constituem uma pilha de dor, de impunidade, de acobertamento e de traumas, mas parecem não sensibilizar aqueles que, com o poder em mãos, também deveriam se chocar com elas.

O argumento das autoridades é que a mudança da legislação, em 2009, colaborou para o crescimento do caso. A partir daquele ano, os atentados violentos ao pudor passaram a ser considerados crimes de violência sexual. O aumento foi de 162% no Brasil, mas a retórica não se justifica, pois o crescimento é gradual, ainda que a lei esteja em vigor há quatro anos.

A violência sexual é uma pandemia. Esta doença social não escolhe endereço, classe social, nível de desenvolvimento econômico. É uma enfermidade globalizada, que respeita somente as particularidades, embora conectadas ao machismo, ao sentimento de posse, ao desprezo pela mulher e à certeza de que o silêncio garante a repetição da monstruosidade.

No Congo, estuprar é hábito cultural, fruto das guerras civis. Na Índia, os estupros coletivos povoaram o noticiário internacional no primeiro semestre. Os Estados Unidos registram um caso de agressão sexual a cada dois minutos. Uma em cada três mulheres suecas sofrem violência sexual. Na vizinha Dinamarca, são três em cada dez.

O Brasil e a Baixada Santista, em particular, não possuem sólidas políticas públicas de combate aos estupros. A instalação de delegacias de atendimento à mulher são aspirinas diante de um tumor em escala terminal. Aliás, a maioria das delegacias não abrem as portas nos finais de semana, período com maior índice de agressões.

Os abrigos femininos são insuficientes para as vítimas, a maioria estupradas por pessoas conhecidas, como maridos, namorados, pais, tios, primos, vizinhos e amigos da família. Quando criam coragem para registrar um Boletim de Ocorrência, as vítimas precisam – muitas vezes - retornar para o convívio com quem as violentou. É comum o constrangimento de ter que retirar a queixa na delegacia para preservar a vida.

Infelizmente, os crimes de estupro não aparecem entre as prioridades da política de segurança pública. Por conta do silêncio e das evidentes dificuldades de se falar publicamente sobre o assunto, a violência sexual fica restrita às campanhas educativas (às vezes, somente cartazes com telefone para denúncia anônima). Estupro não tem a visibilidade política do tráfico de drogas e dos homicídios. A única semelhança é que, nos três crimes, os números engordaram.

Enquanto houver a sensação de impunidade, o modelo de vergonha para as vítimas e deleite para os estupradores seguirá perpétuo. É urgente ultrapassarmos a fase das campanhas educativas, que se mostraram ineficientes. A impressão é que as mensagens só são lidas pelas vítimas após o crime. Se os agressores leem, certamente debocham. E não é preciso que se modifique a legislação. A lei é rigorosa, somente depende de estrutura consistente e política pública de longo prazo para que entre em vigor de verdade.


Uma observação: por razões óbvias, é a terceira vez este ano que me sinto obrigado a escrever sobre violência sexual neste espaço. Os demais textos – Cultura do Estupro I e II – podem ser encontrados no blog Giz sem cor. http://gizsemcor.blogspot.com.br/2013/05/cultura-do-estupro-ii.html