terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Uma carta infantil

Eles estão de mal?

Marcus Vinicius Batista

A carta escrita pelo vice-presidente Michel Temer, mais do que servir como gatilho para ser mais do mesmo na crise que congela o país, representa o retrato de como se pratica política por aqui. É um espelho sobre como ainda somos juvenis - por que não infantis, eventualmente? - quando temos que lidar com os processos democráticos.

A carta - qualquer alienígena sabe - foi a tentativa de Temer de se divorciar de um casamento que lhe deu muitos benefícios em cinco anos. Ao contrário do texto, o vice-presidente sempre usufruiu do poder e participou com garras e fome da festa da distribuição de cargos que alcançou a insanidade de 39 ministérios.

A carta não é um desabafo, é uma jogada de quem sempre teve ambição desmedida e sede de poder. Temer tem ciência, acima de tudo, de que jamais será presidente do Brasil pelas vias tradicionais. Nunca foi puxador de votos, sempre entrou pelas portas da legenda, o PMDB.

Desvencilhar-se de Dilma Rousseff é a chance de procurar o bilhete premiado. Tanto que Temer procura passar a imagem de conciliador, de unificador de todas as correntes. Outra ilusão, diante de um partido multifacetado, que se sustenta por alianças internas e externas de ocasião, pouco importa o preço das almas a serem vendidas ou compradas.

O texto de Michel Temer o trai, e não precisamos das entrelinhas para perceber suas razões. O vice-presidente fala de fisiologismo com a naturalidade e coerência de um congressista brasileiro. Presentear e dividir cargos não é uma atitude ética, caro vice-presidente. É o retrato escarrado da podridão que norteia a política nacional, vide a confusão em torno do reizinho Eduardo Cunha que, em outras bandas mais sérias, já estaria algemado e atrás das grades. No mínimo, com a carta de renúncia nas mãos.

O histórico de Michel Temer o denuncia. Quem acompanha o Porto de Santos sabe o quanto sua influência foi forte pelos armazéns e, principalmente, pelos gabinetes da Codesp. Duas décadas como eminência parda. O controle de cargos e salários é visto, dentro da política, como uma qualidade, marcante em sujeitos classificados como articuladores, conciliadores, mestres das sombras, parte da responsabilidade de um vice-presidente, que nada tem de decorativo.

A carta de Temer também significa os reais desejos de um político, palavra sinônima de vaidade. Até os homens que se escondem são vaidosos e se traem, eventualmente. Como conhece a fundo o PMDB - e se cobriu com esta colcha de tantos retalhos -, Temer personificou sua função no Governo Dilma. É um traço juvenil de uma cultura tropical.

O sistema político brasileiro é personalista. Os partidos (34, no momento, mas pode mudar ao final deste texto) são, em sua maioria, prateleiras de um supermercado de influências e interesses. O eleitor, que não é bobo nem vítima, percebe onde o voto aperta e escolhe as personalidades. Temer é o reflexo deste comportamento, em que tudo se resolve na caneta de quem manda, e pouco no grupo que o cerca.

O vice-presidente se sentiu excluído do Governo Dilma. Mas a história não pode ser redesenhada de acordo com o pincel do pintor. O PMDB esteve abraçado com o PT enquanto o dinheiro corria pelas veias das instituições, assim como foi parceiro de primeira hora do PSDB durante a gestão Fernando Henrique e o abandonou com a derrota no horizonte. O que esperar de um partido com centenas de prefeituras e milhares de parlamentares em todas as instâncias, mas incapaz de apresentar um candidato à Presidência nos últimos 25 anos?

A carta de Michel Temer foi comparada, pelos apressados, ingênuos ou mal intencionados, com a carta de suicídio do ex-presidente Getúlio Vargas. Foi, de fato, a morte do mínimo de seriedade que restava neste cenário de crise. Mais coerentes foram as piadas em torno do texto na Internet.

A carta do vice-presidente entrará para a História, mas para mostrar outra vida, uma biografia de rodapé, um pingo que integrará um dos períodos mais sujos e tristes de um país que ainda não sabe como fazer política em tempos de democracia.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

O curso e os pecados

Quer aprender a ocupar escolas? Curso no Palácio dos Bandeirantes
Foto: Jornalirismo

Marcus Vinicius Batista

Abri o jornal na tarde de hoje e vi o seguinte anúncio: "Matrículas abertas! Aproveite suas férias e participe do curso de extensão mais procurado do verão. Vagas limitadas!"

Não havia ninguém ao meu lado para dividir a fantasia. Apanhei uma tesoura e resolvi guardar o recorte. Vai que um inimigo precise. Era de graça. O número de telefone, no canto direito inferior, me fez ligar para matar a curiosidade.

Liguei e, no terceiro toque, uma moça atendeu: "Palácio dos Bandeirantes."

"Oi, desculpe-me, foi engano. Queria saber sobre um curso."

"Ah, é aqui mesmo. O Curso de Reorganização de Escolas."

"Isso. Fiquei curioso."

"Claro, você quer se inscrever?"

"Não, não. Apenas vi um anúncio no jornal."

"Olha, se inscreva rápido. Tem muita procura e as aulas são com o próprio governador."

"Sério?"

"Sério. Inclusive porque falta professor por aqui. Vou te mandar um programa das aulas."

Cinco minutos depois, recebi um e-mail. Ao abrir a mensagem, o cronograma. Curso apostilado, com aulas em vídeo e toda a parafernália da educação fast-food.

O curso tem sete lições. Uma semana de aulas. A primeira se chama Soberba. Nesta aula, o Governo vai te ensinar como reduzir a importância dos estudantes, com argumentos que sustentam que jovens não são capazes de saber nada. Até porque não tiveram tantas aulas assim, explica o folheto.

Na lição seguinte, de nome Avareza, o curso pretende mostrar que a ordem é sempre não investir sem falar de dinheiro. Fecham-se escolas, alega-se falta de recursos - jamais mencione números financeiros, apenas estatísticas manipuláveis a seu favor - e usam-se palavras como otimização, sinônima de reorganização, no sentido pejorativo da bagunça.

Na terceira aula, fale de Gula. Sede e fome de poder. Tome decisões sem consultar ninguém. Imponha as regras de cima para baixo, sempre contando com a falta de crítica política das pessoas. Gula, deste modo, é irmã da soberba. No folheto, uma observação: as aulas são interligadas. Chame de interdisciplinaridade.

Para equilibrar o ritmo, acelerado na aula anterior, o curso traz a Preguiça. Não há necessidade de esforço no debate público. Fale em uso político pelo movimento estudantil. Tudo que acontecer é política. Na cortina de fumaça, diminuímos a política estudantil, transformando o mérito em deficiência.

O próximo encontro aborda a Ira. Morda e assopre, na prática. Finja conversar, convoque as autoridades fardadas. Fale em Guerra. Troque o giz e lousa por cassetetes e sprays de pimenta. Estudantes são baderneiros que deveriam fingir que aprendem nas escolas sem infra-estrutura e com professores desmotivados.

O auge do curso parece ser a Luxúria. Neste ponto, aprendemos como sacrificar todos pelo prazer do poder. O Reorganizador de Escolas precisa responsabilizar professores, culpar os gestores locais, criminalizar estudantes e, como gozo final, decapitar o secretário de Educação em praça pública, enquanto fala muito sem dizer algo diante de câmeras e microfones.

A última aula se chama Vaidade. Diante da pior popularidade, o Reorganizador precisa manter a pose. Dizer que está aberto ao diálogo, mesmo que o tenha sempre negado. Adiar as medidas autoritárias, descansar o sono de beleza e sonhar com a retomada do processo quando a caldeira esfriar.

Terminei a leitura, pensei por um segundo, fechei a mensagem e voltei a cogitar sobre como as férias são valiosas demais para desperdiçar com cursos preparados às pressas.

sábado, 14 de novembro de 2015

A guerra faz parte do show



Marcus Vinicius Batista

Vivemos sob estado de guerra. Não se trata apenas dos conflitos em andamento, seja na Nigéria, na Síria, no Afeganistão, no Iraque ou em Paris. Não me refiro somente aos ataques de grupos típicos do mundo pós-moderno, que falseiam os territórios, que desprezam governos, mas não o poder, no qual prevalecem - como pano de fundo - os olhares mercadológicos sobre a vida e a morte.

Os conflitos ultrapassam os limites entre perspectiva ocidental e olhar islâmico sobre o mundo. O choque de civilizações ruiu como conceito e prática política desde que a globalização aportou como nova versão do tempo-espaço.

A guerra em que vivemos é maior do que uma crise de valores, que me soa mais permanente do que transitória, como se caracterizam as crises. Talvez tenhamos que admitir que somos assim, não em crise, que pressupõe mudanças amanhã, ao nascer do sol.

A guerra e sua face violenta sempre esteve entre nós. Sem entrar no mérito, o terror também sempre esteve entre nós, depende do ângulo de quem conta a história. O terror é irmão gêmeo da violência e da retórica, duas características humanas. Basta abrir qualquer livro de História, de qualquer período, de qualquer corrente de pensamento.

Vivemos, neste momento, uma guerra sob as asas do espetáculo, da transformação instantânea da tragédia humana em falso ineditismo, em novidade que camufla nossos velhos defeitos e desvios, nossas eternas doenças. O show precisa parir comoção. O show nos atrai por causas nobres, eleitas pelo senso comum e pela correnteza do pensamento único, que nos tornam melhores sem que precisemos sair do lugar.

Não há necessidade de se mobilizar, tampouco impulso em compreender com profundidade o que se passa (demanda tempo!), com motivações, impactos e rol de responsáveis e cúmplices. Basta um grito, uma imagem e estamos dentro do palco, integrantes do espetáculo que quantifica e localiza desastres alheios, sem que sejamos por vezes capazes nos incluirmos como distantes e indiferentes.

O show clama por súditos, ávidos por um novo conflito a partir do conflito midiático que o sensibilizou. Aí está nossa guerra, um combate seguro, de agressões genéricas, espalhadas pelos ventos virtuais que não refrescam ou assustam ninguém. Teclados e monitores são escudos blindados contra a crueza além da janela. É tudo retórica, a polêmica da semana que sobrevive pela sobreposição de fatos, pelo horror em estado de imagem, enquanto despreza a reflexão, o contexto e o processo histórico por natureza.

O espetáculo se alimenta da plateia. E uma plateia se organiza pelo barulho e, em parte, se houver um adversário. Um apenas, não vários, como se vê em quaisquer fenômenos políticos, econômicos e sociais. É uma peça de propaganda de guerra, que simultaneamente conquista corações e mentes - com o perdão do clichê - e define quais corações e mentes devem ser odiados. Uma história cinematográfica, na qual mocinhos e vilões precisam ter papéis claros, para rápido consumo, como nas dependências de uma lanchonete fast-food.

A lógica envolve a construção imediata de um inimigo, que tenha ao menos cheiro de instituição. Instituições legitimam oponentes. A vilanização cria a primeira camada maniqueísta para que, armados de discursos prontos, possamos lamentar e vociferar com a diferença de uma postagem. O problema é que o maniqueísmo passa por etapas de metamorfose, reproduzindo novos elementos para a virulência, para engrossar o juízo de valores que esconde nossa própria hipocrisia.

Mais do que a lógica econômico-financeira do noticiário, nós nos mobilizamos por um caminho e acabamos exorcistas dos demais. A hipocrisia ou a solidariedade não se manifestam por exclusividade ou eliminação. Amar uma tragédia não significa ignorar a outra. Só que o espetáculo se agarra no choque oco para se perpetuar nos próprios conteúdos que integram esse drama. Mariana vira Paris. Paris vira Nigéria. Nigéria se opõe à Mariana.

Enquanto nos preocupamos em apontar o dedo para determinar qual tragédia merece mais pontos na Bolsa de Valores, ficamos à mercê da superficialidade e da fragmentação que navegam como hóspedes nas costas da desinformação. O foco vira erguer armas que disparam saliva e vulgarizam palavras.

O espetáculo adora quando a guerra e a negligência reais não são questionadas com medidas políticas, populares ou não, em detrimento de quem pode dar a última palavra, ainda que espessa como brisa. O show alcança o gozo se a guerra for ganhar a conversa, se a ordem for colocar vidas humanas numa balança que pesa por nacionalidade, status via conta bancária, religião ou quaisquer outros fatores criados pela estupidez humana.

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

O Diabo mora do lado


O deputado federal Beto Mansur. Foto: Agência Câmara

Marcus Vinicius Batista

O deputado federal Beto Mansur (PRN-SP) está no auge da carreira. Ele não está apenas na casa que pediu à Deus. Ele deixou de ser baixo clero, tornou-se um cardeal e está bem próximo do Diabo que comanda o país, o sujeito que se faz temer por toda a fauna, dos tucanos às raposas.

Mansur, como integrante da casa que o acolheu, reza pela cartilha da moral e dos bons costumes, o que reforçou seus valores e práticas políticas. Embora seja um homem do seu tempo, Beto tem uma postura bastante peculiar a ponto de me fazer pensar sobre comportamento humano. Não a ponto de duvidar de mim mesmo, mas de tentar compreender que tempo é esse, que visão ética é essa que se desenha a cada presença no noticiário.

A última peripécia foi o pagamento de mais de R$ 90 mil só esse ano para serviços de pareceres jurídicos que, descobriu-se depois, foram copiados da Internet. O copia e cola cada vez mais comum em trabalhinhos escolares. Não vejo necessidade de longos raciocínios sobre o ex-chefe do Cidoc na gestão Mansur, Wagner Mendes, ser um dos sócios do escritório de advocacia, autor dos pareceres. E nenhum dos pareceres se transformou em projeto de lei.

Quando se estuda Ética, aprende-se que não existem grandes ou pequenas ações. O valor ético ignora o valor financeiro. Vale a atitude dentro de um contexto social e cultural. Há dezenas de casos em que alunos de Direito, inclusive de pós-graduação, foram punidos por "pegar emprestado" textos alheios na Internet. Dois aconteceram numa universidade, aqui mesmo, de Santos. Portanto, sinta-se à vontade para entender a declaração do deputado federal, dada ao jornal A Tribuna: "Hoje todo mundo faz pesquisa na internet e vai buscar informações lá."

Esse episódio me remete a outro "pequeno" ato que retrata a lógica de pensamento peculiar do parlamentar. No primeiro semestre, Beto Mansur fez um selfie ao lado do prefeito Paulo Alexandre Barbosa durante o incêndio da Alemoa, a imagem que se tornou e o tornou notícia internacional.

A vaidade é uma característica inerente aos políticos. Ninguém desejaria tanto o poder, as trocas de interesses e os holofotes se não tivesse o pecado no sangue. Tanto que até o marketing político foi um tiro no pé nas eleições municipais de 2012, quando ficou em quinto lugar, com votação de vereador. Na ocasião, o atual deputado virou hit na Internet por conta do slogan "Foi obra do Beto". Exemplos acima justificados.

É preciso reconhecer que, no mundo da política, as histórias acima serão notas de rodapé na ficha dele. Hoje, ele se vê diante de um clássico dilema ético, mais complexo do que a simples decisão entre o certo e o errado. Ato falho, me perdoem: o certo e o errado dentro da maior casa legislativa soa sempre como "depende".

Beto Mansur assumiu o cargo de relator no processo de cassação do presidente da Câmara, Eduardo Cunha. Uma vitrine para quem se alimenta de poder, mas com consequências proporcionais. Eis a encruzilhada! Se autorizar a abertura do processo de cassação, vai atrair a ira do Diabo e arriscar a própria carreira. Se travar o processo, será lembrado pela História como aquele que referendou o pacto com o Sete Peles, vendendo o próprio pescoço.

Qual será a próxima obra do Beto?

domingo, 13 de setembro de 2015

Sou contra!

Tatiana Evangelista, Marcus Vinicius Batista e Rafael de Paula

Marcus Vinicius Batista

Tive o prazer de mediar, na noite da última quinta-feira, um debate sobre a redução da Maioridade Penal. O encontro aconteceu no Pátio Iporanga, em Santos, após a exibição do filme “De Cabeça Erguida”, dirigido por Emmanuelle Bercot e protagonizado por Catherine Deneuve.

A conversa envolveu os advogados Tatiana Evangelista, contrária à redução da Maioridade Penal de 18 anos para 16 anos, e Rafael de Paula, favorável ao projeto que tramita no Congresso Nacional. Como mediador, minha responsabilidade era dar o maior espaço possível aos dois convidados, com perguntas abertas, o mais próximo possível de isenção. O debate, que se estendeu após a meia-noite, foi um momento cristalino de liberdade de expressão.

Por isso, escolho me manifestar nesta coluna, um espaço individual. Pelo título do texto, você já deduziu qual é meu posicionamento sobre o tema. Entendo que o projeto é mais uma manobra política dos parlamentares do que uma preocupação real e consistente com as causas e consequências que envolvem a violência no Brasil. 



Mais uma vez, os políticos pensam de olho nas urnas eletrônicas e com os ouvidos colados nas enquetes que pipocam na imprensa. A resposta em favor da redução solidifica um eco popular, a partir da postura da própria imprensa, incapaz – na maioria das vezes – de acompanhar histórias de maneira estrutural, de ir além dos registros pontuais do caso da semana. Falta contexto, sobra espetáculo.

Discutir a redução da Maioridade Penal é como saborear a cereja do bolo, tapando o nariz para a massa e o recheio que azedaram. É como ministrar aspirinas para um enfermo em estado terminal, cuja UTI – no quadro clínico atual – é o último endereço antes do velório.

Menores de idade não representam mais do que 10% dos crimes brasileiros. Dois terços do total são roubos e tráfico de drogas, boa parte assinou a “bronca” de criminosos adultos. Quando falamos em crimes hediondos, os menores são réus em 3% dos casos.

É claro que ambos os lados – e a existência de somente dois lados me preocupa – podem despejar pilhas de dados estatísticos para confirmar suas teses. O que me incomoda é que não testemunho parlamentares, imprensa, Poder Executivo e sociedade civil se movendo para debater, diagnosticar e propor saídas para o caos da segurança pública no país. Foco temporariamente perdido.

Preferimos eleger um dos atores da trama e culpá-lo pelos problemas da violência urbana. Apelamos para argumentos simplistas e individualistas como “e se fosse sua família?”, sem a capacidade de refletir socialmente, compreendendo que segurança pública não é uma questão isolada ou eleitoreira. Violência e segurança são temas diretamente conectados com má qualidade dos sistemas de saúde, de educação, fora a perpetuação da desigualdade social, dos preconceitos de classe e de cor. Assuntos que renderiam cada um deles uma coluna. 

Mallony, personagem principal, e a mãe
Observação final: assistam ao filme quando estiver no circuito comercial, a partir do dia 17. “De Cabeça Erguida” – guardando as proporções – é capaz de nos fazer refletir sobre o problema dos menores infratores no Brasil. O filme expõe variados ângulos, de assistentes sociais a psicólogos, de problemas familiares à gravidez adolescente. Ótimo cinema, que ajuda a pensar.

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

O biquíni e a política




Marcus Vinicius Batista

Uma rotatória transformou-se em vilã do trânsito, em Santos. E uma pichação tornou o VLT uma vítima do vandalismo. Duas situações, em tese, distintas, mas que nos indicam como o umbigo pode ser o ponto mais importante do corpo.

Na rotatória inaugurada no canal 7, dois acidentes em dois dias fizeram com que a nova sinalização fosse responsabilizada por muitos motoristas. Não tenho competência para avaliar a (im)perícia dos condutores envolvidos, mas é possível refletir sobre dois comportamentos comuns, seja no trânsito, seja no entendimento da política pública de transporte.

O primeiro deles é a ausência de educação para conviver com outros seres humanos motorizados. Testemunhamos viúvas de Ayrton Senna, artistas do xingamento, mágicos capazes de tagarelar ao celular e pilotar ao mesmo tempo. E todos, por coincidência, creem ter razão sempre, como fregueses das vias públicas. Um patinete no tapete da sala.

Os alunos mal educados desconhecem que a rotatória funciona em endereços onde há cortesia, responsabilidade social, noção dos riscos que se corre quando se senta dentro de um carro. Não há pontuação para quem sai primeiro da rotatória. Só há a preferencial para quem entra nela antes.

Muitos motoristas, politizados até a página 3 da cartilha do Detran, choram e batem o pé, com queixas de que faltam semáforos no local. É a criança mimada, que sempre transfere os deveres. No caso, o hábito de ser tutelado pelo Estado para se fazer o mínimo como cidadão. Vamos encher a cidade de semáforos para reduzir acidentes, conter a sanha selvagem dos (outros) ases ao volante. Aí o trânsito fica mais carregado, como no Canal 4, e os motoristas pedem a volta da liberdade de ir e vir (desde que eu primeiro).

Por trás da polêmica de final de semana, a ausência de um debate consistente sobre o cenário do trânsito municipal. Queixas sobre congestionamentos, soluções paliativas e localizadas, por vezes revertidas, e ninguém se atreve a conversar (ou planejar) sobre a qualidade do transporte público e a mentalidade de endeusar e sonhar com o consumo do transporte individual.

A pichação de vagões do VLT ganhou ares de terrorismo. Vândalos destruíram o patrimônio público e aumentaram os gastos com o veículo. Não carreguem nas tintas que decoram os vagões. Se a pichação é um ponto negativo, o VLT está sempre no mesmo ponto de parada. Parado!

Ao contrário de reportagens ufanistas que indicam uma cidade colorida com a obra, o cotidiano retrata a morte do planejamento urbano, a inexistência de um projeto definitivo, a condução paquidérmica dos trabalhos. O trecho da avenida Francisco Glicério, entre a avenida Conselheiro Nébias e o canal 3, já foi pista de atletismo para estudantes de Educação Física. Hoje, é estacionamento de carros, alguns talvez dos mesmos universitários.

O VLT nos foi vendido como um projeto-símbolo da metropolização fictícia, cujo cenário são nove cidades. Depois, foi reduzido a um ferrorama de origem espanhola entre Santos e São Vicente. O trem de brinquedo vai para frente e para trás, até porque as curvas seguem indefinidas pela política, enquanto o dinheiro alheio escorre pelos trilhos, como brincadeira de criança.

Nessas horas, me lembro do jornalista Fernando Gabeira e sua definição de biquíni. Para ele, biquíni é – sarcasticamente - a roupa que “mostra tudo, mas esconde o essencial.” Na política, acidentes e pichação vestem roupas novas para velhos problemas, os acessórios que camuflam o que interessa.

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

"O melhor café é o que você gosta"



O empresário Michael Timm (Foto: Marcos Piffer)

* Entrevista publicada na revista Guaiaó, n.8 (novembro/2014).

Marcus Vinicius Batista

Até os 25 anos, Michael Timm não pensava em café. Apenas tomava a bebida. Não analisava variações do produto e a concorrência internacional. Não quebrava a cabeça para compreender as oscilações de mercado do principal cartão postal brasileiro de exportação. Até então, jurava que seguiria carreira no mundo corporativo: um ano no Banco Francês e Brasileiro e mais três na General Eletric do Brasil.

Era a primeira metade da década de 80. Final da ditadura militar, inflação alta, instabilidade econômica e política. Em janeiro de 1985, há pouco mais de 30 anos, Michael atendeu a um pedido do pai e mudou o curso da própria biografia. “Esperava quebrar o ciclo da família.” Tornou-se a terceira geração da família, tanto paterna quanto materna, no setor cafeeiro. Uma história com início na Alemanha.

Os irmãos não seguiram a mesma carreira. Christian é fazendeiro, criador de gado e cavalos, na região de Marília, no interior de São Paulo. A irmã Sylvia é proprietária da escola Verde que Te Quero Verde, em São Vicente.

Em 1988, Michael assumiu a gerência da Stockler Comercial e Exportadora. Em 1995, alcançou a diretoria. O Grupo Stockler é, hoje, a quarta maior empresa do setor no país. Possui 180 funcionários diretos, entre escritórios e armazéns. Michael representou a empresa fora do Brasil por duas vezes. Trabalhou em Nova Iorque durante um ano e meio e em Hamburgo, na Alemanha, por outros seis meses. O mercado atual exige, pelo menos, três viagens anuais ao exterior.

Em 2009, Michael experimentou liderar uma entidade de classe. Ele assumiu a presidência da Associação Comercial de Santos, cargo que ocupou até o primeiro semestre deste ano. “Acabei ficando cinco anos por mudança de estatuto. Minha saída foi tranquilíssima.”

Pai de um casal de filhos, Michael Timm, de 55 anos, tem rosto de estrangeiro. Mas só não é brasileiro de certidão de nascimento. Nasceu na Alemanha e veio para o país com três meses de idade. Formou-se em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo.

Após três décadas entre grãos e números financeiros, Michael Timm ainda enfrenta 10 horas de trabalho diárias. “Mas quem trabalha com commodities precisa pensar no negócio 24 horas”. Ele se diverte quando avalia a hipótese de se aposentar. “A gente pensa desde que começa a trabalhar.”

Ambos os filhos, Sabrina e Marcelo, estudam Administração de Empresas. Michael não sabe se eles serão a quarta geração da família no negócio. “Eu brinco com eles. Se quiserem entrar no negócio de café, dou para vocês um torrador. Vocês vão torrar café e vender.”

A conversa com a Guaiaó aconteceu na sede da Stockler, uma casa branca de dois andares, com detalhes em amarelo, na rua XV de Novembro, a menos de uma quadra do prédio da antiga Bolsa do Café. O escritório dele fica no andar superior. Entre fotos de família, papelada da empresa e cinco xilogravuras na parede, Michael se orgulha de livros antigos sobre a indústria cafeeira. Abre dois deles para mostrar as origens da família no negócio.

Na entrevista a seguir, Timm analisa o mercado de café, da produção à prateleira de supermercado, e as mudanças que aconteceram na cidade a partir da década de 80.

Guaiaó: Como era o cenário cafeeiro quando você começou? O que mudou em 30 anos?

Michael Timm: Em 1985, havia o Acordo Internacional do Café. Tinha cotas de exportação, baseadas em performance, estoque. Éramos engessados pelo Governo. Um sistema político demais. Não havia como crescer. Diminuíamos de tamanho por causa das regras do jogo. Muitos exportadores brigando contra estas restrições, até 1990. Os preços subiram muito. Houve intervenções desastrosas do governo brasileiro. O Governo até hoje não pagou a conta, do que fez em 1986. Em 1990, com a entrada do (Fernando) Collor, acabou o Instituto Brasileiro do Café. Ficamos livres para crescer. Pagávamos até 70% de impostos sobre o café exportado. A partir de março de 1990, o mercado de café ficou mais livre, o que tornou o Brasil mais eficiente.

Guaiaó: As condições atuais são satisfatórias?

Michael Timm: Sou da opinião que quanto menos o Governo se mete melhor. É lógico que temos que ter uma política de financiamento para o produtor nas horas que necessita. Dar condições para o produtor estocar café para vender em épocas melhores. Todas as intervenções são feitas em horas erradas. São feitas por causa de lobby. Mas há lobbies e forças políticas sempre.

Guaiaó: Ano de eleição é um ano difícil por conta das pressões políticas?

Michael Timm: Não. O café tem uma vantagem. O café não é elástico quanto ao consumo. A produção de café não aumenta ou diminui por causa de consumo. Uma recessão não afeta o consumo de café. O café, no Brasil, está atrelado ao valor do dólar. É claro que há a Bolsa de Valores. Mas é difícil um político atrapalhar o negócio de café. Não existe risco hoje porque não existe mais a vontade de intervenção, de se criar cotas de exportação.

Guaiaó: Como você vê o café brasileiro em um cenário cada vez mais globalizado, com disputas acirradas por novos mercados?

Michael Timm: A Europa Ocidental está consolidada, com crescimento estável de 1% ao ano. Os Estados Unidos são a mesma coisa. Crescimento sustentável, mas pequeno. O crescimento é forte na Ásia. Há aumento de consumo em mercados produtores, como Indonésia e Índia. Mas não são adversários. O interessante no mercado de café é que não existem adversários. Na verdade, quando acabaram as cláusulas econômicas, ficaram aqueles que possuem competitividade. Há uma demanda mundial equilibrada com a oferta. Então, você não compete com outros países. Somos, de longe, os maiores exportadores. As crises internacionais, como a de 2008 e a da Rússia, não têm impacto no setor. Os preços não oscilam por causa de crise. Em 2008, chegamos no pico do preço por causa de especulação de fundos de investimento, mas depois caiu.

Guaiaó: Qual é o tamanho do Brasil neste mercado?

Michael Timm: A produção mundial anual é de 150 milhões de sacas. O consumo mundial também é de 150 milhões de sacas. O Brasil produz um terço disso, entre arábico e robusto, e é o segundo maior consumidor do mundo atrás somente dos Estados Unidos. Tem mercado para todos. O consumo cresce 2% ao ano, basicamente por causa da Ásia e Leste Europeu.

Guaiaó: Por que cresce nestas regiões? Há alguma mudança cultural específica?

Michael Timm: Mudança cultural, mudança no gosto. Aumento no número das cafeterias. Aumento de empresas como Starbucks. No Japão, há o consumo de café gelado, que concorre com os refrigerantes. Vende-se muito café solúvel. É o que normalmente abre mercados, pela facilidade de preparo. O café solúvel não é, em geral, de qualidade tão alta. O consumidor, depois, começa a aprimorar o gosto. É como vinho.

Guaiaó: Qual é o papel da Colômbia neste tabuleiro?

Michael Timm: A Colômbia possui um café de altíssima qualidade. Sofreu muito nos últimos anos com o envelhecimento do parque cafeeiro. Mas investiu em inovação da produção. A Colômbia está voltando a patamares do passado, de 11, 12 milhões de sacas por ano. Nos anos 80 e 90, havia marketing demais em torno do café colombiano. O café deles é bom, com volume e qualidade.

Guaiaó: Você mencionou a Starbucks. E o crescimento dos cafés gourmets, inclusive na linha solúvel, nas prateleiras dos supermercados? Como você entende a convivência entre o café fast food e os mais refinados?

Michael Timm: No Brasil, tem uma coisa engraçada. São poucas as redes. Elas se instalam, mas falta algo para continuar a crescer. É minha impressão. É diferente dos Estados Unidos e do Canadá. Não sei o porquê. Uma das razões pode ser a dificuldade de se trabalhar no Brasil. Impostos, relações trabalhistas, burocracia, tudo é complicado. Não acredito que seja por falta de demanda. Aqui é difícil entender. Outro ponto é supermercado. As prateleiras de café me atraem. Hoje, há uma variedade enorme, fica até confuso para o consumidor. De onde saiu tanto café?

Guaiaó: O consumidor tem como diferenciar os cafés?

Michael Timm: O consumidor tem que experimentar. A questão é que, no sachê, o consumidor paga a grama do café muito mais cara do que no pacote de 500 gramas. São nichos de mercado. Nós temos sete mil marcas no Brasil. Café especial, orgânico, com certificação. Há diferenças entre eles. Qual é o melhor café? É o café que você gosta. O importante é manter a qualidade. Café é como vinho. Cada garrafa é diferente.

Guaiaó: No final da cadeia produtiva, há o cafezinho. O preço no Brasil é ou não é elevado?

Michael Timm: Não acredito que seja elevado. O pó de café não é caro. Cara é a estrutura para você colocá-lo na xícara. Quantas xícaras se tem que vender a R$ 2,00 para pagar aluguel e mão-de-obra? A bebida sempre foi baratíssima.

Guaiaó: Santos tem parte da história atrelada ao café, que provocou mudanças substanciais no espaço urbano desde o século 19. Qual é o papel do café em Santos hoje, apesar de um porto bastante caro?

Michael Timm: O Porto, mesmo sendo o mais caro, ainda é atraente por estar mais perto da zona produtora. O custo total da logística ainda compensa. O frete rodoviário é muito caro. Quanto à comercialização, mudou. Antes, você tinha que estar em Santos, ter escritório e armazém em Santos. Hoje, você não precisa de nada disso. Tem outras praças importantes. Santos perdeu importância na comercialização do café, nos últimos 30 anos. Minha empresa tem escritórios espalhados por regiões produtoras, no interior de São Paulo e Minas Gerais e, em Vitória, no Espírito Santo.

Guaiaó: Por que Santos perdeu este espaço?

Michael Timm: Um fator foi a evolução tecnológica das comunicações. O centro de produção mudou. Antes, São Paulo e Paraná. Hoje, 50% da produção está em Minas Gerais. Lá, surgiram centros de comercialização. Faltou também modernização dos corretores, pensar a longo prazo. Os corretores do interior estão mais perto dos produtores. Faltou investir em infraestrutura no interior. Tive que ter acesso ao café para ser competitivo. No meu caso, o escritório central é Santos, mas poderia estar em qualquer lugar. A questão é que estamos aqui há 70 anos, consolidados. (Ele consulta o computador e liga para um funcionário. Quer confirmar o tamanho do mercado na cidade) Das 185 firmas de exportação de café, só 20 estão em Santos. Das dez primeiras, seis têm escritório aqui. Mas algumas não fazem a venda aqui.

Guaiaó: Santos pode ser atraente para quem quer começar no setor?

Michael Timm: Pode. Mas no ramo do café é difícil atrair talentos. Porque precisamos de poucos e bons. Não se consegue pagar salários altos e competir com o mercado financeiro. As empresas de café são normalmente familiares, que parecem grandes, mas são pequenas. Não é difícil começar, mas poucos querem fazer isso.

Guaiaó: Os provadores de café são uma profissão em extinção?

Michael Timm: Sempre vamos precisar dos provadores de café. Escuto falar em língua eletrônica, mas nada substitui o provador. Não é um equipamento que define a qualidade do café. Cada cliente quer uma qualidade específica. E só o provador consegue distinguir os cafés. Santos tem cerca de 80 provadores, cem talvez. Ninguém vai longe no mercado se não tiver um bom classificador de café. O provador faz o curso, mas aprende fazendo no dia a dia.

Guaiaó: E a história de que o café exportado é sempre melhor do que o cafezinho da esquina? É real ou senso comum?

Michael Timm: Em geral, eu diria que sim. Dependendo de onde você for, você até consegue café melhor do que o exportado. No supermercado, é possível encontrar cafés iguais ou melhores do que aqueles que são exportados. Depende do que você gosta. Não podemos falar que existem cafés ruins. O mercado interno usa mais o café robusto, produzido em Minas Gerais, Espírito Santo e sul da Bahia. Representa por volta de 60% do mercado interno. Os asiáticos também consomem café do tipo robusto. O consumidor estabelece a diferença por marca. O consumidor não sabe a diferença entre os tipos de café. O importante é que quem fornece o café forneça sempre igual. Não pode haver flutuações grandes no sabor. Há lealdade às marcas.

Guaiaó: Como você foi parar na Associação Comercial de Santos? Como é sua história lá, como presidente?

Michael Timm: Por insistência dos pares. A experiência como presidente foi boa, mas poderia ser melhor. A função da associação é trabalhar para os associados. É a casa do associado. Me escolheram para tocar a casa. É difícil atrair o associado. Como te disse, Santos tem 20 exportadores, uma parte importante dos associados. Tem os outros setores de porto, petróleo e gás. As pessoas só procuram a associação para resolver problemas. Eu era contra o aumento de tempo na presidência. Era tempo demais para se dedicar à Associação Comercial.

Guaiaó: A Associação Comercial perdeu força política no contexto da cidade ou apenas no setor cafeeiro?

Michael Timm: Na área do café. É uma entidade importante, que trabalhou muito com o Governo Municipal. Teve bastante contato com o Governo Estadual, que chegou a fazer da Associação Comercial – simbolicamente – a casa dele. Politicamente, está muito bem. A associação perdeu importância na área por causa do Conselho dos Exportadores de Café. A Associação Comercial era o interlocutor do setor de café com o Governo Federal. Hoje, deixou de ser.

Guaiaó: Qual é a perspectiva para o mercado de café?

Michael Timm: Penso nisso todo dia. O Brasil continuará sendo um participante importante do mercado mundial. Em 1994, nossas safras eram menores, na média, do que 30 milhões de sacas. Vinte anos depois, estamos em 50 milhões de sacas. Só não é maior por problemas climáticos. O mercado interno é grande, com 20 milhões de sacas. Você tem bastante espaço para tentar crescer.

Guaiaó: Você toma muito café? Prepara o próprio café?

Michael Timm: Tomo muito café, sim. Faço quando é expresso, o que qualquer um sabe fazer. Não sou expert em café de coador, mas tomo todos os dias pela manhã. No passado, não pensava nunca em comprar um café no supermercado. Hoje, os torradores apresentam bons cafés para o meu paladar. Gosto do café do sul de Minas, Mogiana, do cerrado. Você consegue coisas que gosta. Não tive tempo de provar este aqui. (Ele mostra dois sacos de um lote específico de Minas Gerais)

Guaiaó: Seu olhar é sempre profissional, de ler tudo na embalagem?

Michael Timm: Sempre leio tudo. Me assusta ver que algumas marcas não estão nos supermercados. É falha impressionante na distribuição. Tomo café todo santo dia. Tomo entre cinco e dez cafés por dia. Consigo viver sem café, mas eu gosto. Dizem que faz bem para saúde (neste momento, Michael ri). Tomo café bom ou ruim. Se tiver só ruim, tomo o ruim.

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Osasco somos nós!


Quando criança, me lembro de uma vizinha – uns 10 anos mais velha do que eu – que tocou a campainha de casa para pedir à minha mãe uma xícara de açúcar. E qualquer barulho mais forte no prédio significava portas abrindo e vizinhos procurando o problema, seja para resolvê-lo, seja para fofocar sobre ele.

Hoje, muitos de meus vizinhos se esforçam para soltar grunhidos quando cruzamos na escadaria ou no corredor principal do prédio onde moro. Na madrugada, qualquer som mais forte ou repentino não provoca reações. Apenas ouvimos atônitos, viramos para o lado e retomamos o sono. Desconfio que as paredes ficaram mais grossas ou que prevaleceram os produtos zero e as dietas contra o açúcar.

Estamos em guerra! Vivemos um conflito que fingimos ser invisível ou silencioso. Um combate que não tem nada a ver conosco, pois ocorre em outros edifícios, ou melhor, em terras distantes, reinos que muitos só visitam pela televisão, nos programas de final de tarde.

As chacinas na Grande São Paulo, particularmente em Osasco e Barueri, vem desaparecendo com discrição do noticiário. Quase ninguém investiga, fica a impressão de que o assunto perdeu a relevância. Isso em um país que registra 50 mil assassinatos por ano. Desde a Segunda Guerra Mundial, só Ruanda – com um genocídio de 800 mil pessoas em 100 dias (números oficiais) – conseguiu ser mais violenta.

O número de chacinas dobrou no Estado de São Paulo em 2015. Foram 10 chacinas, com 38 mortos. Lembre-se de que, para ser chacina, são necessários três assassinatos no mesmo local. O número de mortos, também não se esqueça, aumentou três vezes. Dados extra-oficiais, como da Ponte, agência independente de Jornalismo, falam em 72 corpos. Não importa a matemática; casos assim seriam alvo de investigação internacional.

No entanto, o Governo do Estado prefere brincar de faroeste. E muitos jornalistas engolem a bravata. Enquanto o governador Geraldo Alckmin posa de xerife, estipula recompensa e insinua que se trata de uma ação isolada, muitos jornalistas são rápidos em estender o microfone e o gravador, e cegos em enxergar as histórias das vítimas e daqueles que ficaram para carregar os caixões.

Tudo se resume à ausência de passagens de polícia. Números e falta de humanos, seus nomes, suas trajetórias. E o governador, o mesmo que negou a falta de d´água e ignorou as reivindicações dos professores, adota o silêncio na bagunça da segurança pública.

É perfeitamente compreensível pedir ajuda aos cowboys. 90% dos homicídios no Estado de São Paulo não tem o autor identificado. A Polícia Técnica vive à míngua. Em Osasco, por exemplo, o Instituto Médico Legal levou 12 horas e meia para chegar ao local de uma das chacinas.

Na Polícia Militar, existem pilhas de casos de policiais que sofrem de problemas de saúde mental diante das pressões do trabalho. No outro lado da corda, PMs matam e morrem – em serviço ou não - como saldos de uma guerra negada. Em 2015, 11 policiais morreram. 358 pessoas foram mortas pelas Polícias Civil e Militar, segundo a Folha de S.Paulo.

No ano passado, 926 pessoas foram mortas pela PM – uma a cada 10 horas. 72 policiais morreram. O ano de 2014, em números, foi o mais violento desde 1995, quando o Governo do Estado passou a divulgar as estatísticas com regularidade.

Não basta somente esclarecer as chacinas de Osasco e Barueri, como disse Alckmin. É como detectar o barulho no vizinho e voltar a dormir, à espera de novos sons saltitantes. Às vezes, pode-se fingir que era o barulho da geladeira. Mas não dá para negar quando várias campainhas tocam ao mesmo tempo, por conta de gritos, de tiros, de sangue a ser lavado na calçada, como naquele bar de Osasco.

sábado, 15 de agosto de 2015

Quanto valem os partidos?




Marcus Vinicius Batista

Em democracias mais maduras, partidos ainda são capazes de representar um conjunto de ideias e construir uma agenda de propostas, a serem seguidas por seus políticos com mandato. Em democracias mais jovens e pouco confiáveis, partidos atendem às desconfianças do eleitor, da imprensa e da própria classe política, que os vê como portos provisórios para projetos individuais, quando não como legendas de aluguel.

O eleitor, bobo só de vez em quando, sabe disso e – quase sempre – vota em pessoas, e não em siglas partidárias. Até porque, em um país com 34 partidos, as próprias legendas nada cumprem o que esbravejam ou sussurram.

A eleição para a presidência da Câmara de Santos simbolizou o carnaval partidário brasileiro. O vereador Manoel Constantino, do PMDB, foi eleito com 14 votos. Era candidato único. Sete vereadores não votaram e, portanto, não houve abstenções.

A votação coroou o teatro político da semana. Embora ninguém fale abertamente, a costura já estava pronta quando o ex-presidente Marcus de Rosis foi enterrado. Na segunda-feira, dois dias depois da morte do vereador, 12 vereadores anunciaram a escolha de Constantino como novo presidente do Legislativo. Ele havia presidido a casa em 2011/2012.

O outro parlamentar do PMDB, Antônio Carlos Banha Joaquim, não fazia parte do time. Chiou, mas votou em favor do colega na quinta-feira. Hugo Dupreé, do PSDB, integrava o grupo, ignorou os colegas de partido e confirmou seu voto em Constantino.

O problema é que os demais parlamentares tucanos, mais os do PR, reclamaram que não foram consultados da “eleição” antecipada de segunda-feira e se retiraram do plenário antes da votação. Mas não apresentaram uma alternativa ao longo da semana.

A bagunça se estende nas relações com o Poder Executivo. O PMDB é da base aliada do governo Paulo Alexandre Barbosa e se sabe que De Rosis sonhava com uma candidatura à vice-prefeito em 2016. Ou, pelo menos, um representante do PMDB. Agora, a ideia perde impacto e outros jogadores mostrarão as cartas. Entre os vereadores, os que votaram e os que saíram do plenário, pode ter certeza, haverá paz em breve.

A morte de Marcus de Rosis, na prática, faz com que o PMDB, que teve dois dos cinco prefeitos anteriores à Paulo Alexandre, fique ainda mais fraco. Constantino é o vereador mais antigo, é visto como conciliador, mas não poderá fazer verão sozinho diante da saída de tantos militantes.

A vaga de Marcus de Rosis reforça a fragilidade do sistema partidário. Geonísio Pereira Aguiar, o Boquinha, seria o primeiro suplente. Mas, com o final do governo Papa, voou para o lado de quem venceu. Ele pleiteou a vaga, mas perdeu provisoriamente o lugar para Fabio Duarte, hoje sem partido.

Duarte assumiu com uma liminar nos braços, alegando infidelidade partidária de Boquinha. Duarte ficaria com a vaga por ser do PSD, que integrava a coligação. Mas, como é PM, não pode ser filiado a partidos, exceto em períodos eleitorais. O segundo suplente, Fabiano da Farmácia, está hoje no PHS.

Diante de uma briga jurídica, quem perde é o PMDB. O partido perdeu, de fato, um vereador, pois qualquer um dos substitutos não têm vínculos com a sigla. O PMDB, que protagonizou as lutas políticas da cidade no século passado, hoje é um desenho nítido do que se transformaram os partidos, principalmente pelas ações dos próprios políticos.

E olha que nem mencionei as relações entre PT e PMDB no Governo Federal e na Câmara dos Deputados, sob as asas de Eduardo Cunha.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

O político clássico

O ex-presidente da Câmara de Santos, Marcus de Rosis
Marcus Vinicius Batista

O ex-presidente da Câmara de Santos, Marcus de Rosis, tinha o perfil clássico do político. O vereador, falecido no último sábado, reunia uma série de características comuns aos parlamentares da velha escola. Não é o caso de entrar no mérito de suas gestões como comandante do Poder Legislativo nem endeusá-lo, como se faz usualmente quando há a morte de uma liderança, e sim tentar compreender qual papel ele exercia dentro do contexto político contemporâneo da cidade.

De Rosis tem a herança genética, a exemplo dos Barbosas, Franças e Bargieris. Ele era filho do ex-vereador Oswaldo De Rosis, que dá nome ao plenário da Câmara Municipal; aliás, nome escolhido pelo próprio Marcus. Como em muitos casos na Baixada Santista, o filho perpetua a carreira do pai.

Marcus de Rosis tornou-se vereador aos 28 anos e presidiu o parlamento de Santos pela primeira vez, aos 33. Foi o mais jovem presidente da história da cidade. Ele não era um político da velha escola somente pela longevidade como vereador – cumpria o sexto mandato e, provavelmente, se candidataria para o sétimo -, mas também porque foi picado pela mosca azul, gíria para os políticos sempre próximos do poder.

Ninguém se sustenta como presidente do Poder Legislativo por tanto tempo à toa, sem a capacidade de transitar pelos diversos órgãos do corpo que movimenta a política. Embora tivesse um temperamento explosivo, traduzido pela fala em tom mais elevado, Marcus de Rosis era o articulador clássico. Sabia costurar uma aliança, com amigos e adversários. Elegeu-se, por exemplo, presidente da Câmara pela última vez com 18 votos, de colegas de sete partidos, inclusive do PT.

O lado temperamental aflorava nos debates histéricos no plenário, como as brigas com a então vereadora Cassandra Maroni Nunes, do PT. Discussões que entraram para a história e o folclore da política recente.

De Rosis também soube canalizar para si o foco das relações com o Poder Executivo. Representou o governo Papa no Legislativo, assim como manteve o nível das relações com o atual prefeito, Paulo Alexandre Barbosa. Por conta disso, chegou a ocupar a secretaria de Esportes na gestão Beto Mansur e tinha voz ativa na composição de uma aliança com o PSDB para as eleições de 2016. O PMDB lutava para indicar o vice-prefeito.

O ex-presidente da Câmara era, como manda a cartilha da escola tradicional, um homem de partido. Filiou-se ao PMDB no tempo em que Oswaldo Justo não apenas era prefeito, como o homem-forte da sigla. De Rosis resistiu como uma das últimas lideranças de um partido enfraquecido, mesmo depois da saída de Papa e da debandada de muitos militantes para a terra dos tucanos.

Como adepto do estilo antigo, Marcus de Rosis havia se adaptado ao novo cenário, sem abandonar as velhas teorias. De vez em quando, ao se sentir preterido, ele esbravejava publicamente e nasciam os boatos de que o PMDB poderia ter candidato próprio ou até lançar o próprio De Rosis à Prefeitura. Os balões de ensaio se quebravam quando ele conseguia o que desejava e a gritaria esvaziava em palavras de conciliação.

Quem acompanha política sabe que até poderia haver o sonho de ser prefeito, mas De Rosis jamais embarcaria numa aventura, com o risco de perder o lugar onde cresceu e se desenvolveu na política, a Câmara Municipal. Ali, ele praticava outro tipo de poder, capaz de diálogos horizontais com o Poder Executivo e obter ganhos secundários em termos políticos.

Marcus de Rosis também carregava outra característica comum aos políticos que nasceram eleitoralmente no século 20. O ex-presidente da Câmara estendia seu exercício político para o futebol, outra esfera em que se misturam paixão e poder, arquibancada e plenário. De Rosis, irmão do ex-jogador Rui, presidiu a Portuguesa Santista no início dos anos 90, época do retorno ao futebol profissional.

A partir de quinta-feira, a Câmara de Santos terá novo presidente. 12 vereadores se comprometeram a votar em Manoel Constantino, outro político da velha guarda, com três décadas de Legislativo. O tom de voz pode diminuir em plenário, mas o jeito de fazer política se manterá nos mesmos decibéis.


segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Por que estupramos?

Mulheres indianas protestam contra a cultura do estupro

Marcus Vinicius Batista

O Tribunal de Justiça de São Paulo não aceitou recurso e manteve a condenação de um homem, na semana passada, por sucessivos crimes de estupro. O sujeito, cujo nome não pode ser divulgado por segredo de Justiça, estuprou a filha durante 18 anos. A sentença foi de dez anos e nove meses de prisão.

Pai e filha moram no Guarujá. Do relacionamento que o desembargador Luis Soares de Mello considerou “verdadeira escravidão sexual”, nasceram três filhos-netos, dois meninos e uma menina, conforme comprovação de paternidade por exame de DNA.

A violência sexual aconteceu entre 1991 e 2008. A defesa do réu pedia prescrição dos crimes. Em parte, conseguiu. Os abusos sexuais entre 1991 e 1995 foram prescritos, como se fizesse alguma diferença. Os estupros, de acordo com relatos da vítima no processo, começaram quando ela estava com 16 anos. O pai alegou também que o relacionamento era consensual.

O horror não terminou aí. O sujeito responde a outro processo, desta vez em 1º instância, no Guarujá. A vítima, neste caso, é a filha-neta. O avô-pai, se é possível denominar assim, responde às acusações em liberdade.

A história descrita acima tem que provocar repulsa por si mesma e jamais ser encarada como uma exceção, como um desvio único no comportamento humano e daí gerar indignação. Este sujeito tem muitos semelhantes no Brasil e em outros endereços pelo mundo. Aqui, em sete de cada dez casos de violência sexual, o agressor é uma pessoa próxima da vítima, seja parente, vizinho ou amigo da família.

Na semana passada, também, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo divulgou o balanço da criminalidade no primeiro semestre de 2015. Sabemos que os números, por conta da falta de muitas notificações, tendem a ser maiores. Os casos de estupro, estatisticamente, caíram na Baixada Santista. Foram 114 casos, contra 163 no primeiro semestre do ano passado, redução de 30%.

Das nove cidades da região, apenas Santos registrou crescimento, de 20 para 21 estupros. Guarujá – coincidência? – se mantém na liderança, com 28 casos.

Francamente, os números são tão frágeis quanto necessários para pensarmos sobre esta doença social. 114 casos no primeiro semestre! É um estupro a cada 36 horas, a cada dia e meio. E não nos esqueçamos que muitas histórias de violência sexual são marcadas pelo silêncio do agressor e da vítima, como o exemplo de pai e filha no Guarujá.

O estupro representa mais do que uma epidemia. É uma pandemia, com registros elevados em todos os continentes. O que muda é somente o endereço e o pano de fundo cultural. Índia, por exemplo, com sua sociedade de castas e tolerância em muitos locais. Países escandinavos e o silêncio social. Nações africanas e o estupro como arma, para demonstração de poder contra os adversários em guerras civis. Mulheres simbolizam, de maneira explícita, propriedade e moeda de troca.

As sociedades contemporâneas, com particularidades culturais, fazem vistas grossas para a violência sexual. Em muitos cenários ditos civilizados e desenvolvidos economicamente, as mulheres não são vítimas, e sim encaradas como estímulo ao agressor. As roupas viram argumentos para justificar o estupro, inclusive com conivência e discursos agressivos de outras mulheres.

Não é incomum ouvirmos frases como: “Mas ela estava de shorts curto!”, “Se ela se vestisse melhor, não seria estuprada!” São variações que, na prática, se traduzem numa placa que deveria estar, na opinião dessas pessoas, pendurada no pescoço da vítima: “Por favor, me coma!”

Voltarei ao assunto, por causa da complexidade e também porque o caso de Guarujá acontece mais perto do que nós imaginamos (ou ignoramos).

Obs.: Caro leitor, há outros dois textos sobre tema, escritos por mim em 2013. São eles: Cultura do Estupro I e Cultura do Estupro II

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Onde os fracos não têm vez


Thaís Moraes Macedo

Quantas e quantas vezes não ouvimos a expressão: “Estude, pois a caneta é mais leve do que a pá”? Curiosamente, para aqueles que nos ensinaram durante toda a vida e tentam diariamente nos mostrar o real significado dessa expressão, pode não ser bem assim. Professores estudam, se aprimoram, montam aulas, corrigem provas em casa, comem o pão que o diabo amassou e sentem a caneta, ou melhor, o giz pesar cada vez mais.

Quem quer ser professor?, perguntavam os mestres no Ensino Médio e ninguém levantava a mão. Acredito que pensavam o seguinte: “Estudar muito para ganhar pouco e ainda encarar uns pentelhos feito a gente? Tô fora!”. Para ser professor, tem que ser muito corajoso, pelo menos aqui no Brasil. Essa falta de interesse dos jovens é explicada pela indiferença que os governos dão àqueles que estão na linha de frente dessa batalha chamada educação.

Salários baixíssimos, falta de estrutura e ausência de plano de carreira, na maioria das vezes, deixam a profissão ainda menos atraente. Só os fortes sobrevivem. Enquanto nos países nórdicos, como a Suécia, tornar-se professor é muito mais difícil do que passar no vestibular de medicina e ser a profissão mais respeitada, aqui os mestres são tratados por como meros seres que ensinam as crianças a escrever e decorar a tabuada e devem, segundo muitos pais, dar educação, no sentido familiar da palavra.

A falta de investimento faz com que professores não se dediquem integralmente à profissão, não por opção, mas por mera necessidade. Em Santos, a segunda melhor cidade do país para se criar filhos (???), de acordo com ranking divulgado pelo Exame.com, em levantamento com 100 cidades brasileiras, quase metade (44,5%) dos professores da rede básica são obrigados a ampliar a jornada para conseguir pagar suas contas. Trabalhando com educação ou não. E ainda reclamam quando fazem greve.

Em pleno 2015, na Era do Conhecimento, para muitos a caneta tem sido mais pesada do que a pá.

sábado, 4 de julho de 2015

Somos todos racistas


Não me surpreendo com a comoção urgente em torno dos ataques racistas contra a jornalista Maria Júlia Coutinho. A Internet, com foco nas redes sociais, funciona também como instrumento para exercícios de intolerância, das mais variadas ordens. Ofensas e desqualificação do outro são regras no território onde os valentões de teclado se escondem.

Se a intolerância é um exercício de estupidez, agredir uma apresentadora de TV da maior emissora da América do Sul ultrapassa os limites da imbecilidade. O racismo ganhou, obviamente, contornos de cruzada moral, virou bandeira de ocasião, provocou reações – muitas delas – politicamente corretas e, como historicamente se esperava, atiçou o espírito de corpo de jornalistas e outros profissionais de mídia.

Em dez anos que leio e estudo discriminação racial, que inclui um trabalho de pós-graduação sobre o tema nas escolas públicas, testemunho sempre a mesma ciranda. Vi professores negros usando vocabulário ameno para sobreviver nas redes de ensino. Vi docentes exigindo Dia Nacional da Consciência Branca. Vi professores qualificados como professores negros, e não somente como professores. Ou você já identificou alguém como professor branco, médico branco, dentista branco, amigo branco?

Vejo ainda uma minoria de docentes negros nas instituições privadas. Vejo alunos negros nas salas de aula de cursos de baixo ou médio prestígio acadêmico (ou que dão menos dinheiro). E esbarro diariamente em funcionários negros, quase todos de baixa hierarquia e quase sempre invisíveis aos olhos de quem deveria agradecê-los.

A repetição pós-caso novo de racismo traz, de imediato, os indignados de plantão, que repetem a ladainha de democracia racial e do país mestiço. Em muitos casos, se recorre a argumentos simplistas e de autopreservação, como apontar parentes, amigos, ex-namorados negros como prova de que o sujeito não é racista. Não ser racista é ser humano, independentemente da cor da pele de quem quer que seja!

O segundo passo do espetáculo é criar e difundir a campanha da semana nas redes sociais. “SomostodosMajú” é a bola da vez, como foi com Neymar – um apresentador de TV ganhou dinheiro à beça vendendo camisetas com um slogan. Causa-me fadiga observar mais uma campanha para envolver pessoas em bolhas de plástico, sem efeito político real, com impacto nas instituições.

A mobilização é retórica, no discurso indignado da vida editada do planeta Zuckerberg. No microcosmos cotidiano de cada indivíduo, a vida segue no mesmo ritmo, preconceituosa, de palavras leves para um crime. O quintal do vizinho é sempre mais machista, homofóbico, racista, entre outros adjetivos plantados no solo alheio.

O mundo está muito além das redes sociais e da forma como a televisão o conta, de olho na matemática da audiência. Não desmereço de maneira algumas as reações (caso um sabe onde dói o calo da hipocrisia), mas o passado recente e remoto nos indica que a campanha dará lugar a outra, e à outra, e mais outra.

Continuaremos racistas enquanto sociedade, sem admitir que o somos. Como disse o sociólogo Octávio Ianni, o brasileiro tem preconceito contra o próprio preconceito. Apontamos o dedo para o lado na prática do moralismo burro, incapazes de nos olharmos no espelho e tratarmos nossas feridas culturais.

Por mais que intelectuais, inclusive com cargos importantes em TV, escrevam obras que negam o racismo no país, a rotina diária das relações sociais e trabalhistas escancaram como somos um país que segrega. A crueldade, aliás, reside exatamente neste ponto: negamos que somos uma nação impregnada de preconceitos, creditamos ao outro a construção de estigmas e, quando a situação aperta, preferimos não tocar no assunto.

A própria história da TV brasileira se construiu pelo olhar branco e de costas para a diversidade dos Brasis. Refiro-me a todos os canais, de todas as épocas. Maria Júlia Coutinho é exceção na TV nacional. Os negros são exceções na mídia brasileira, como são na elite educacional, na política, em diversos esportes, entre as lideranças religiosas (tirando as religiões afro-brasileiras).

A TV brasileira, como qualquer linguagem de mídia, é ressonância da dinâmica social brasileira. O centro nervoso – e o olhar cultural decorrente disso – é o eixo Rio-SP e, a partir daí, se tem a criação de um Brasil via TV, com seus padrões estéticos europeus e a redução da diversidade. Um alienígena, caso ligue um aparelho de TV, jurará que se fala português na Dinamarca.

Maria Júlia Coutinho respondeu com elegância, não vestiu o manto de vítima, e a empresa em que trabalha deu a ela respaldo jurídico. O Poder Judiciário saiu com cinismo da inércia e abriu linha de investigação. Teremos réus quase em tempo real, aposta ganha. Mas me fica a dúvida: e os milhares de casos de racismo que ocorrem todos os dias? Por que muitos delegados registram discriminação racial como agressão para evitar o crime inafiançável ou minimizam (quando não tripudiam) a fala das vítimas?

Recentemente, o goleiro Aranha - quando atuava no Santos – acusou a torcida do Grêmio de racismo. As câmeras de TV eram a prova cabal do crime. Uma jovem foi a única indiciada. Aranha foi o herói da semana. Parte da imprensa, cartolas, jogadores e até muito torcedores do Santos tentaram dias depois transformar o goleiro em vilão, buscando apagar ou distorcer suas palavras e atitudes. Sempre os panos quentes.

O racismo no Brasil vai além das fronteiras da TV e de uma de suas apresentadoras. O racismo é um tumor que persiste no organismo social brasileiro. Nasceu com ele, desenvolveu-se com ele e achou um cantinho para viver por mais de cinco séculos. Temos estrutura jurídica para investigar, julgar e condenar os selvagens, porém praticamos a seleção natural, separando quem tem direito à lei e quem tem direito ao não institucionalizado. Discriminação racial e social caminham de mãos dadas.

Azar daqueles que se expuseram seu racismo em redes sociais e produziram provas contra si mesmos. Se fossem mais espertos, teriam se escondido atrás de instituições de todos os poderes, inclusive da imprensa. Nestes lugares, o racismo não é pauta, é tão invisível quanto suas vítimas. Exceto quando uma pessoa famosa é alvo da idiotice inerente ao intolerante.

Só seremos melhores quando etnia e raça deixarem de aparecer na mesa de debates. Não é ignorar o problema, mas desconhecê-lo por que – num Brasil utópico – ele deixou de existir, tornou-se um conceito incompreensível.

Maria Júlia está certa, repito, mas só alcançaremos o patamar descrito acima quando nos indignarmos com Josés, Joaquins, Aparecidos, Severinos e outros nomes, em quaisquer funções sociais.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

Em qual Papa acreditar?


O quintal de Eduardo Cunha? 
O deputado federal João Paulo Tavares Papa, quase sempre discreto, ganhou os holofotes por ter votado contra a redução da maioridade penal, ignorando a correnteza indicada pelo PSDB. E permaneceu no foco porque mudou o voto 24 horas depois, no golpe armado pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha. 

No tribunal de gritos das redes sociais, Papa reuniu elogios e críticas com corpo de ofensa. Passou de traidor a sujeito coerente e vice-versa. Papa, até o momento, nadava junto com a esquadra de partidos conservadores, dominante na Câmara Federal. Ele seguia com os colegas Beto Mansur e Marcelo Squassoni, demais representantes da Baixada Santista no Congresso Nacional, em votações como terceirização e financiamento empresarial de campanhas eleitorais. Um parênteses: Bruno Covas têm domicílio eleitoral na Capital e sempre foi turista político por estas bandas.

Apenas o tempo e o restante do mandato vão dizer os porquês das duas decisões tomadas pelo ex-prefeito de Santos. Não me arrisco a especular os motivos e tampouco cogito a utopia da convicção ideológica (artigo extinto na política brasileira, salvo os guetos nanicos). No caso de Papa, é preciso paciência, pois seus passos nunca respondem pelo dia de hoje, embora a segunda votação pareça sobrevivência parlamentar.

Afilhado de Oswaldo Justo, Papa aprendeu que a política é a arte de trabalhar em silêncio, sem jogar palavras ao vento. Como aluno de muito bom nível, ele compreendeu que política eficiente é aquela que possui projeto de poder e que os holofotes da mídia devem ser domados, com doses homeopáticas de vaidade.

Apesar de terem perfis diferentes, Papa e Márcio França talvez sejam os peixes grandes que melhor digeriram a dinâmica do aquário político-eleitoral. Papa foi o maior vencedor da eleição municipal em 2012, na região. Adiou a construção de um sucessor – Sérgio Aquino – para confirmar a vitória do sucessor que desejava, de fato.

Foi a cartada para assegurar a própria eleição, dois anos depois. Neste tempo, sumiu por três meses, reapareceu com a saída do PMDB e filiação ao PSDB, manteve-se nas sombras numa diretoria da Sabesp e só retomou o caminho da luz ao se candidatar à deputado federal. Isso sem receber farpas por conta da crise hídrica, na qual a Sabesp representa um dos papéis principais.

A visibilidade controversa por causa da votação em Brasília é um acidente de percurso, perfeita e infelizmente contornável. Acompanho a carreira política de Papa desde a superintendência regional da Sabesp, no início da década de 90. Ele é um político de passos lentos, porém seguros.

Papa se encaixou no perfil de gerente, desejado pelos eleitores a partir do século 21. Nunca perdeu uma eleição e soube deixar outros políticos, que poderiam atrapalhá-lo, no acostamento. Muitos dos problemas atuais da cidade, como trânsito, esquizofrenia imobiliária e população de rua, nasceram ou se agravaram em sua gestão, mas Papa nunca foi associado a eles. E jamais teve o nome aliado à má gestão financeira ou corrupção.

Três fatores vão desviar, em breve, a navalha do pescoço do deputado federal. Seriam golpes de sorte? O primeiro, em caráter nacional, é o comportamento do presidente da Câmara Federal, Eduardo Cunha. Em mais um golpe, o déspota do Legislativo pautou o mesmo projeto com maquiagem, o que tirou de cena a votação anterior, em urgentes 24 horas.

Depois, na região, Papa poderá sofrer um pouco mais com a choradeira concentrada em redes sociais, que não altera o cotidiano da rua que se veste conservadora para se fingir progressista. E, como terceira variável, o eleitorado sofre de amnésia, ainda mais sobre o Poder Legislativo, onde a desinformação é convidada vip da casa.

Todo político precisa de sorte? Talvez. Não sei em qual Papa acreditar, mas os políticos que sobrevivem sabem que informação, planejamento e projeto de poder são o coquetel da vitória nas urnas. Tanto para o deputado que votou SIM como para o deputado que votou NÃO, prefiro esta última hipótese.

sábado, 20 de junho de 2015

A rola e os intolerantes


Ao mandar o pastor Silas Malafaia “procurar uma rola”, o jornalista Ricardo Boechat acendeu uma série de fogueiras inquisitórias. Não me cabe aqui cair na armadilha de fugir do assunto e discutir inutilidades como Boechat baixou o nível, merece ser processado ou perdeu a razão. Boechat falou o que muitos pensam, foi o porta-voz de muita gente e, se for preciso uma palavra forte para mover os acomodados, que se diga rola e que se traga o restante do dicionário!

No entanto, a fogueira que mais arde não é a dos palavrões, mas a da intolerância religiosa. Somos um país que mistura, desde o nascimento, religião e política. Sempre, aliás, em prol de uma ou mais religiões que ditaram moralidade e usufruíram das mamas do poder. Atualmente, parte do Congresso Nacional forma a bancada da Bíblia, nada coesa em termos de doutrina, mas unida para perseguir vozes dissonantes, exalar preconceito, trabalhar contra a cidadania e a favor de benefícios próprios.

A discussão entre o jornalista e o pastor deveria colocar na mesa o fato de que todas as religiões, cedo ou tarde, se defendem a partir do ataque ao outro. É uma guerra pela fé, poder e dinheiro alheio, que transformou as religiões em produtos, empresas e negócios bilionários. Marketing religioso é, hoje, uma área estabelecida e especializada.

Atacar os adversários atende também a duas exigências de um projeto de poder. Para crescer, qualquer religião ou seita precisa roubar fiéis de instituições adversárias. Para que isso aconteça, não valem somente pregações, discursos e intepretações do texto sagrado “que puxam a sardinha” e os outros peixes.

No boxe por Deus, prevalece um dos princípios básicos da Propaganda de Guerra: envolvimento emocional. Este envolvimento se sustenta no amor à alguém ou a uma causa e, de forma simultânea, à criação e personificação de um inimigo, que precisa ser odiado e, se possível, destruído. A simplicidade maniqueísta – expressão que nasce na religião, por sinal – é o motor da desinformação, do desrespeito e da truculência.

A História das Religiões é recheada de prateleiras com exemplos. Das Cruzadas à Jihad Islâmica. Das Igrejas neopentecostais ao Estado Islâmico. Da catequização indígena à perseguição contra judeus. Todas as guerras em andamento no século 21 têm, direta ou indiretamente, fundo religioso, a imposição de fé e doutrina via armas e mortes.

Frequentar uma igreja, templo, terreiro ou outro tipo de imóvel nunca salvou ninguém. Conheço espíritas que sorriem e falam sereno enquanto te prejudicam. Conheço evangélicos que vomitam preconceitos enquanto repetem comportamentos condenáveis entre quatro paredes.

Conheço católicos que falam em Jesus Cristo para, em seguida, prejudicar o próximo e lutar pelas migalhas do poder. Conheço gente que pede proteção aos orixás e, por conveniência, exala segregação e racismo no cotidiano. E conheço pessoas que são adeptas destas e de outras doutrinas e convivem conforme os preceitos que abraçaram, quando colocam a humanidade e o humanismo acima de textos e retóricas. 



A segunda fogueira, menos ardente, é a do politicamente correto. Ô gente chata, sempre disposta a podar pela moral e os bons costumes. A rola, cá entre nós, excita tantos que não conseguem parar de falar nisso. Pouco importa se Boechat chamou Malafaia de homofóbico, tomador de grana, explorador da fé alheia, otário, paspalhão, entre outros qualificativos, a maioria mais relevantes para que se compreender o sentido dado ao pênis em questão. Interessa se comportar como crianças na escola: “olha, tia, ele falou palavrão!”

Além disso, a patrulha também tenta desviar o foco, insinuando que Boechat teria sido homofóbico. Uma pitada de contexto nesta salada pornográfica. Ao mandar o pastor “procurar uma rola”, o jornalista usou um sinônimo para “vá para a casa do caralho”, “vá tomar no cú”. Para as senhorinhas horrorizadas, a legenda: “Malafaia, arruma alguma coisa para fazer. Vai ver se estou na esquina!”

Em vez de se analisar o contexto de um problema social extremamente grave que provocou essa semana casos de violência contra crianças, ficar procurando moralismo em uma palavra é se tornar tão intolerante quanto os líderes religiosos – não apenas neopentecostais – que constroem projetos de poder em cima da alienação, da ingenuidade e da hipocrisia.

A maior ironia desta imbecilidade dos intolerantes que falam em nome de Deus é que não conseguem perceber que vivem em um Brasil misturado pela fé. Basta ver que, quando o calo aperta, se acende vela para todos os santos, entidades, deuses e afins.

Ah, a História das Religiões está infestada de perversões sexuais, de várias maneiras, com e sem rola, mas sempre com o gôzo pelo poder!

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Terra das tartarugas




Santos se comporta, por vezes, como o retrato do sonho brasileiro. É a terra onde se planta e tudo dá. A cidade do futuro. E outros clichês de um lugar onde suas lideranças políticas insistem em vislumbrar o amanhã, sem pavimentar o presente e aprender com o passado.

Inflacionamos o mercado imobiliário e multiplicamos as placas de vende-se e aluga-se, quando a bolha estourou. Prometemos ser o endereço da sustentabilidade e precisamos de mobilização popular para salvar uma árvore cujo assassinato beneficiaria uma empresa. Juramos ser o CEP do turismo de negócios e seguimos dependentes de veranistas três meses por ano e feriados prolongados.

A megalomania costuma apontar quem somos (ou como pensa a classe política que nos governa). No entanto, são as pequenas ações, as sutis alterações na paisagem e na rotina da cidade que simbolizam – de fato – o que desejamos ou até onde caminha nossa cegueira. E mais: escancara a ausência de compreensão do que significa a palavra Planejamento.

Um dos exemplos de que o microscópio amplia as entrelinhas da doença foi a instalação de um semáforo na esquina da rua Ministro João Mendes com a avenida Siqueira Campos (canal 4). É o quarto semáforo num trecho de quatro quadras. Um semáforo que trava ainda mais o trânsito numa via que deveria ser um corredor.

A faixa de pedestres é a cereja no bolo. A faixa permaneceu onde estava, antes do equipamento ser instalado. Em outras palavras, atravessar nela significa encarar sempre sinal verde para os veículos. Sempre! Das duas, uma: ou quem autorizou a instalação do semáforo está cego ou é mais um exemplo de que se entrega um serviço pela metade, calam-se os críticos, e os ajustes são feitos na base do quando dá?

Ampliando um pouco o problema, andemos pelas ruas do bairro onde fica o semáforo. O Embaré, principalmente nas ruas internas, virou uma salada de política de trânsito. A rua São José é mão para a praia a partir da Frei Francisco Sampaio. A partir da avenida Pedro Lessa, a rua tem duas mãos. Muitas ruas do bairro têm rotatórias, política defendida por gestores passados e que reduziram acidentes na região. Outras receberam semáforos, olhar de quem governa em dias atuais.

Se encostarmos o microscópio e abrirmos o telescópio, veremos que o semáforo novo no canal 4 e a situação do Embaré refletem a cidade em vivemos. Todo mundo sabe que a malha viária é esta aí. Não há como crescer e, por conta disso, uma política pública de trânsito e transporte seria ainda mais necessária.

É claro que a mentalidade de ter carro como objeto de consumo está além das fronteiras do município. Só que vivemos de ações paliativas que apenas adiam o retorno do problema. São aspirinas para um paciente em metástase.

Proibir o estacionamento em avenidas nos horários de pico alivia, mas não corta o efeito do vírus chamado congestionamento. Sair do centro e chegar à Ponta da Praia ou à divisa com São Vicente no final da tarde pode levar uma hora. Na segunda, passam a valer restrições de estacionamento nas ruas Machado de Assis e Lobo Vianna, no Boqueirão. Por que este cronograma não é público para que as pessoas saibam o que ocorrerá mês a mês, por exemplo?

O coração do problema é, todos sabem, o transporte coletivo. Ônibus grandes demais para vias apertadas. Pontos mais distantes que travam os coletivos para beneficiar os carros. Sistema de linhas circulares que ninguém mexe há 30 anos. Um preço de passagem que não condiz com o serviço prestado e o quilômetro rodado.

Diante de todos estes problemas, ainda somos carnavalescos em crer que o VLT será uma saída metropolitana. De nove cidades, virou um projeto para dois municípios e olhe lá! Um projeto refém de interesses empresariais com quem os políticos ficam arrepiados só de ouvir o nome.

Por enquanto, os ciclistas conseguem se salvar. As faixas exclusivas aumentaram, embora as ciclovias mais antigas sofram com buracos e saliências do piso.

Debater transporte e trânsito é perceber, entre outros aspectos: 1) não é possível enxergar uma política de quatro anos, quanto mais de uma década, prazo mínimo em países mais adiantados; 2) que os problemas do setor devem se agravar em prazo curto, como acontece em dezenas de cidades com densidade populacional alta e baixo planejamento; 3) que falar em metropolização é acreditar em Papai Noel.

Santos, realmente, é um símbolo do que assistimos fora daqui e para quem, com cinismo, apontamos o dedo do moralismo rasteiro.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Os donos do amor



O filme publicitário de O Boticário sobre o Dia dos Namorados é um exemplo de criatividade. Não se trata do conteúdo, da narrativa em si, que mostra diversas pessoas se preparando para encontrar seus namorados e namoradas, pessoas de diversas opções sexuais, de idades diferentes.

O filme de O Boticário entrou para a História da Publicidade brasileira pelo circo, e não pelo número de um dos artistas. O filme em si, aliás, é convencional, sutil, discreto até. Nem beijo há! O Boticário somente escapou do clichê tradicional de casais heterossexuais, que representam a família feliz, aquela que depois vai gerar um casal de filhos na publicidade de margarina.

O Boticário não revirou valores, prática coerente com o papel da Publicidade. Esta linguagem sempre se baseia em um cenário idealizado, de venda ilusória de felicidade e de liberdade. Os valores nascem de percepções do público, e não o contrário. Por essas e outras, a Publicidade pouco se arrisca diante de certas certezas, como o Dia dos Namorados.

A grande sacada de O Boticário foi perceber antes uma mudança gradual de comportamento em diversos setores da sociedade. Legislação, mídia, representantes políticos, movimentos sociais, apareceram diversos sinais de que a homofobia (e seus sintomas doentios) e a liberdade sexual ganharam outros olhares nos últimos anos.

A intolerância, um exercício de ignorância, misturado à virulência com pitadas de falta de inteligência, caiu no pulo do gato. As reações foram truculentas e previsíveis. As manifestações de homofobia, apoiadas no moralismo religioso, saltaram como veias alérgicas. Os preconceituosos de Bíblia nas mãos – desconfio que leram, mas não entenderam – fizeram exatamente aquilo que a empresa de cosméticos desejava.

A informação deixou de ser necessária há décadas na Publicidade, salvo certos segmentos como o varejo. Na Era da Imagem, a ordem é envolvimento emocional. Mais do que dados sobre a marca e o produto, a obviedade é fazer com que o consumidor traga as mercadorias para dentro de casa. Defenda-as. Integre-as às próprias lembranças. Chame-as pelo nome a ponto de considerá-las parentes. E, acima de tudo, rejeite a concorrência. Como a Coca-Cola e a campanha pela refeição em família!

O Boticário conseguiu o que queria. Não tinha como medir o tamanho da tempestade, mas poderia prevê-la. Em primeiro lugar, visibilidade para a marca. Depois, o apoio incondicional de consumidores, que elevaram a imagem da empresa ao defendê-la contra os inquisidores medievais. E, por tudo isso, os cifrões deverão se multiplicar em sua conta bancária, no mínimo, até dia 12 de junho. Comprar no Boticário, para os ingênuos, virou ato político.

Os intolerantes, agarrados à escuridão da própria visão de mundo e ao individualismo, são os melhores servos pela incapacidade de se colocar no lugar do outro. São os melhores servos porque tagarelam como matracas as palavras de um líder religioso repleto de interesses político-econômicos. São os melhores servos porque dão visibilidade a uma empresa, que lucrará como poucas vezes em sua história.

Homofóbicos, essa semana seu Deus chamado Mercado se perfumou com O Boticário. Sentiu a fragrância? Feliz Dia dos Namorados!