sexta-feira, 25 de março de 2011

Filme debate condição feminina


Por Cidinha Santos

O filme Domésticas, dirigido por Fernando Meireles, será exibido neste sábado, às 16 horas, na Estação da Cidadania, em Santos. O evento é uma iniciativa do Curso de Cultura Afrobrasileira em homenagem ao mês em que se comemora o Dia Internacional de Luta da Mulher. A apresentação é gratuita.

O cine debate tem como objetivo abordar o universo das empregadas domésticas pela ótica do trabalho e a situação da mulher negra nesse mercado, que sempre foi e tem sido ocupado por ela. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), em 2009, no Brasil, a quantidade de trabalhadoras domésticas com registro em carteira profissional era mais de 7 milhões. Isso porque houve um crescimento de nove por cento, em relação ao ano anterior. No entanto, as mulheres ainda são maioria entre as/os trabalhadoras/os domésticas/os sem carteira assinada.

Para Augusta França de Oliveira, militante do movimento de mulheres negras e coordenadora do Núcleo Pai Felipe, da Rede de Pré-vestibulares comunitários e Educação de Afrodescendentes e Carentes (Educafro) na história de desigualdade, discriminação e direitos relacionados ao trabalho da mulher. “É preciso fazer o corte racial nesta discussão com o olhar voltado para o período colonial, de modo a resgatar a história do trabalho da mulher negra escravizada.” 

Após a apresentação haverá debate sobre o tema, com a participação das professoras e dos professores do Núcleo de Estudos “Quilombos Urbanos”.

Núcleo de Estudos Quilombos Urbanos – Foi criado em 2009 e é constituído por um grupo de pessoas que vem acumulando conhecimento, estudos e materiais de pesquisas sobre a temática da população negra, sua história e raiz.

Tem como objetivo a discussão de questões relevantes sobre o negro no universo cultural brasileiro, enfatizando a historiografia em torno de temáticas como história do povo negro; africanidades; o papel da escola como local de transmissão de conhecimento, de preservação da condição de vida e também como o de ação transformadora e reflexiva da condição humana; a Lei 10.639/03 (que trata do ensino de história da África e dos afrodescendentes e indígenas nas escolas); a condição da mulher negra e as relações de poder e de cidadania.

A Estação da Cidadania fica na avenida Ana Costa, 340, no Campo Grande, em Santos.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Entre os muros, vítimas e carrascos


Sentado atrás da mesa, o professor segue o ritual de final de ano: perguntar aos alunos sobre o que aprenderam no período. As perguntas são mecânicas, à caça de reações previsíveis. No máximo, a falsa reação de surpresa. As respostas parecem variadas, de Ciências a Matemática, mas gravitam em torno de temas específicos, de interesse particular do aluno, que o professor não se interessa em detalhar.
Os questionamentos terminam ao toque do sinal. O professor François Marin se dá por satisfeito, termina a aula e – por convenção – deseja boas férias. A última a sair da sala é uma garota negra, descendente de imigrantes africanos, calada, invisível, a aluna perfeita. Seria a estudante perfeita pela disciplina, mas jamais será lembrada, pois cumpre o destino de irrelevância traçado pela escola.

O professor se esquece de perguntar o que ela havia aprendido. A aluna o aborda e diz, de maneira direta:
— Eu não aprendi nada.
O professor, surpreso, insiste no argumento de que a garota deve ter aprendido algo. E recebe o diagnóstico – com ares de definitivo, incontestável:
— Eu não entendo o que estamos fazendo aqui.
O diálogo é, para mim, a síntese da relação entre professores e alunos de uma escola pública francesa, retratada no filme “Entre os muros da escola”, direção de Laurent Cantet.
O filme apresenta, de saída, um grande mérito: não repetir o olhar norte-americano das produções sobre escola. O olhar no qual um professor representa o herói capaz de modificar o cotidiano de todos os alunos, como se fosse um processo natural e irreversível, sem choques. Neste filmes, alunos e professor não tem particularidades, somente desejos coletivos em conjunção com o sonho americano. E ainda não o alcançaram pela origem estrangeira ou por pertencerem à outra etnia, mas serão preparados pelo professor para o “American Way of Life”.

“Entre os muros”, nome original francês, indica como a escola – em muitos endereços – é a reprodução dos preconceitos, das segregações, das disputas mesquinhas de poder e da repressão social do mundo além da sala de aula. Professores e alunos, via de regra, são espécies diferentes e se encaram como tal. Possuem características próprias, valores diferentes e espírito de corpo que não inclui a solidariedade perante a outra espécie.
Unem-se somente por interesses políticos, quando ambos são prejudicados pelo sistema escolar ou quando precisam da aliança para solucionar uma questão específica. Uma relação de cinismo, de ética de interesses como exemplos comuns ao cotidiano.
Se o filme fosse dublado em português, talvez enganasse o espectador menos avisado. A escola brasileira não é apenas cercada por muros como ação de segurança pública. Os muros ressaltam os papéis: alunos, internos; professores, carcereiros; e gestores, a direção da cadeia.
Todos os atores envolvidos se comunicam somente quando necessário, a partir do script previsto pela hierarquia. Na rotina de uma unidade escolar, uns se queixam dos outros, e todos mantém o pacto de espinafrar o sistema. Prevalece o comodismo, já que o sistema é distante, impessoal, a entidade abstrata.
Indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro, “Entre os muros da escola” é uma obra que não permite a torcida. Não há bons e maus. Impossível adotar a visão maniqueísta das relações entre os personagens, com o risco de enfiarmos a cabeça no buraco da ilusão. O espectador que tem ligações diretas com a educação escolar pode ficar confuso. Professores, principalmente. Se isso acontecer, a provocação do diretor Cantet se materializou além da tela.
Professores foram alunos. E muitos se esquecem desta história. O filme faz questão de nos lembrar quase todo o tempo, exceto nas discussões entre os docentes na sala dos professores. Não é permitida a identificação rápida e indolor. O filme nos joga de um lado para outro, como se mandasse o recado: não se posicione! Você é ambos. Os erros também pertencem a você. Se os cometeu, prepare-se para sofrer as tentações das saídas inócuas e posteriormente dolorosas. A garantia de sobrevida ao modelo.  
“Entre os muros da escola” esfrega no rosto do homem europeu o conflito contemporâneo da imigração. Na classe de François Marin, os alunos são filhos de imigrantes. Muitos são franceses de nascimento, e estrangeiros pela cultura. Neste ponto, Marin não os compreende. O professor – cujo sobrenome é traduzido por marinheiro – ressuscita o símbolo do colonizador europeu, incapaz de perceber que o outro é o rosto da diferença cultural, jamais a inferioridade por causa da origem.

O professor ensina francês, a língua da Metrópole, o que aumenta o distanciamento dos alunos. Ele tenta o diálogo, ora por aproximação, ora para reforçar o próprio poder, por meio da arrogância de quem vomita superioridade. François seria melhor por ser nativo e pelo papel que interpreta na escola.
Um exemplo é a aluna Esmeralda, que o questiona com freqüência. Quando ela diz que leu “A República”, de Platão, o professor não acredita, e também ironiza. Como uma aluna considera chatos os livros escolhidos e ainda por cima lê uma obra que não poderia, em tese, entender?
Nas escolas de periferia de São Paulo, será que não existem professores que desprezam – por exemplo – a cultura dos migrantes nordestinos? Políticas públicas de educação são comprometidas com a cultura popular ou propagam o poder da erudição? A escola sempre abre as portas para movimentos culturais, como o hip-hop?
O filme, embora escolha o ambiente mantido pelo Estado, permite olhar para as escolas privadas brasileiras, com adaptações. As escolas particulares não são exatamente ilhas de excelência. Menos diversa do que a pública, a escola privada também é caixa de ressonância de preconceitos. É evidente que ali se sobrepõe o olhar sócio-econômico, no qual vale a conta bancária dos pais do “cliente-aluno”, nesta ordem de importância. Professores são personal-teachers, que podem ser trocados no final de ano, como um boneco da moda.
O filme, premiado no Festival de Cannes, é baseado em livro de mesmo nome. O autor, François Bégaudeau, interpreta o professor. Os alunos não são atores profissionais. Muitos dos diálogos são improvisações, que elevam o grau de naturalidade e permitem o flerte com a escola “real”.

“Entre os muros da escola” é o nosso espelho, que indica os defeitos e as cicatrizes de todos os envolvidos. Indica a intolerância coletiva e a ditadura dos padrões de comportamentos. Analisa como o processo educacional repele os diferentes, cerceia a liberdade e valoriza os iguais. Iguais por serem submissos. Iguais por aceitarem o enquadramento, mesmo que sua subjetividade seja um detalhe.
Neste caminho, há o aluno Carl, descendente de antilhanos, que se vê como caribenho, apesar de nascido na França. Carl, visto como problema em outras unidades, não se importa mais com as decisões da escola. Passa o tempo dentro dela, com fantasias além dos muros.
A escola de François pode permitir o cinismo do espectador, distante pela língua, distante por um oceano cultural. Mas o espaço cai a zero quando olhamos para os conflitos dos personagens, para a desilusão dos professores, para o deslocamento dos alunos, para a ausência de conexão entre as partes. Escolher um lado é esconder-se atrás do muro. É mantê-lo em pé, sólido como as paredes que transformam as escolas em prisões ou castelos.
Observar por ambos os papéis (professor e aluno) traz a luz a culpa e a resignação. Os muros não escondem as vítimas. Os muros geram sombras, mas não protegem os carrascos e suas foices. Vítimas e carrascos estão nos dois lados dos muros. Não é preciso olhar de cima, pois eles não se deram conta do que estão fazendo ali!

sábado, 12 de março de 2011

Capítulos de uma aula decadente

Ao entrar na biblioteca da universidade, encontrei um ex-aluno. Recém-formado, ele é o típico sujeito pronto para exercer sua profissão sem grandes problemas. Boa formação, ético, antenado em questões sociais, preocupado em se atualizar por meio dos estudos. 

Estava contente ao saber que, por ter diploma de ensino superior, não precisaria prestar vestibular. Bastava esperar pela sobra de vagas. O rapaz pretendia fazer o curso de Direito, pois havia abandonado a sala de aula após seis meses como professor de escola pública.

A pergunta óbvia: - Por que largou?

A resposta imediata: - Desisti!!! Não dá para trabalhar à noite sob ameaças dos alunos.

Dois dias depois, uma aluna de Jornalismo veio me procurar para tirar dúvidas. Ela pretende fazer uma reportagem sobre Hiperatividade, doença da “moda” nos sistemas de ensino. Palavra da moda por duas razões.

1)  o termo foi banalizado. Muitos falam sobre a doença sem ter a menor ideia dos sintomas e do tratamento. Qualquer criança mais agitada, bagunceira ou que deseja um pouco mais de atenção pode ser classificada como hiperativa. O carimbo na testa que a tornará marginal na escola.

2) as escolas, além de não terem pessoas com formação – em muitos casos – para diagnosticar crianças com problemas de aprendizagem, não as encaminha para um profissional competente. Quando não ocorre o exercício da negação, por acordo velado entre instituição e pais para preservar da imagem da escola.

A aluna estava com dificuldades de conversar com escolas privadas sobre o tema. As equipes pedagógicas relutavam em reconhecer que poderiam ter crianças com o problema em suas classes. Quando admitiam, transferiam a culpa para os pais. No beco sem saída, tocar no assunto significa automaticamente o estigma. Desconfio que o parecer talvez fosse exercício de auto-imagem.

Escolas públicas e privadas são irmãs gêmeas diante de um espelho. Podemos localizar diferenças nos acessórios, nas roupas e, principalmente, na maquiagem, mas ambas sofrem de males semelhantes, diagnosticados por médicos diferentes e com poses idênticas de vítimas.

-  Tire esse bicho daí que o problema não é meu!

-  O diagnóstico está errado. Vou procurar uma segunda opinião.

A escola se manifesta pela rejeição ao diferente. Expulsa o sujeito que tenta lutar contra o estado de coisas. Repele quando esconde embaixo de suas carteiras, em seus armários, disfunções que poderiam servir de motor para uma reformulação estrutural.

Em ambos os casos, a escola é violenta. Enxota o professor e outros funcionários por se calar diante da violência verbal e física, interna e externa. Peca ao se calar diante de um problema de ordem médica para se fingir de instituição saudável. Omitir-se é um ato tão ou mais violento quanto assinar embaixo. Ou tomar posição com consciência do erro crasso.

O irônico da cegueira é a teimosia em fingir que enxerga. São muitos pecadores, mas poucos dispostos a se confessar ou se flagelar para “purificar” a escola. O sarcasmo, a acidez na provocação vem, por exemplo, do próprio Ministério da Educação, quando escancara na TV um filme institucional sobre o papel do professor. O tom alegre era previsível, assim como o falso simbolismo globalizante dos depoimentos em vários idiomas.

Descontando-se a falta de contexto ao se comparar lugares tão diferentes, o filme repete a velha ironia do professor como um herói, como alguém que se doa por altruísmo, por vocação em ajudar o próximo. No fundo, uma estratégia tímida para atrair pessoas dispostas a ensinar pela via escolar.

Ingênuos não são os que acreditaram no filme. Esses se encontram em estado vegetativo. Ingênuos são os que se surpreenderam quando o Ministério da Educação informou – em tom de cinismo – que faltam professores no país. O déficit de docentes tende a crescer.

Em outras palavras, professor não fica desempregado. Mas que não se meta a discutir condições de trabalho, seja com o gestor público ou com o patrão da escolinha do bairro. Até porque recebe todo mês para DAR aula!

quinta-feira, 10 de março de 2011

O uniforme fashion

A adolescência, que mescla origens biológicas e culturais, é uma fase difícil. O corpo é instável; o comportamento, inseguro; a necessidade de reconhecimento de grupo, vital. Trata-se de um período de alterações, de contestações de quem tenta se libertar de amarras e buscar a própria trajetória, diferenciando-se dos demais.

A busca pelo reconhecimento envolve também a aparência, numa sociedade de consumo que sonha com a padronização. Neste sentido, o uniforme escolar é um dos grilhões mais cruéis para o cotidiano de um adolescente. Por mais que se vistam de maneira parecida, eles jamais aceitam que essa imposição venha de terceiros, ainda mais da escola.

É preciso quebrar as regras e desafiar o senso de autoridade, desde modificações no corpo como piercings até outros acessórios da moda como bonés, casacos, calças rasgadas e mudanças no próprio uniforme.

As escolas com alunos mais ricos sempre trabalham ao gosto de freguês. Os indivíduos matriculados seriam clientes e teriam sempre razão. Faz parte do processo ilusório de fornecer uma pseudo-interatividade ao comprador.

O uniforme existe desde a Idade Antiga. De origem militar, servia para reforçar a identidade dos soldados, estabelecer a hierarquia entre os homens e seus posicionamentos no campo de batalha. Controle!

Atualmente, o uniforme atende aos mesmos propósitos, porém em um número maior de áreas. É o atendente sem nome de um restaurante fast-food, identificado apenas pelas cores. É o funcionário terceirizado de uma universidade, que se diferencia de professores e demais “colaboradores”.

A escola adotou – mesmo que de maneira simbólica - o uniforme no século XX pelas mesmas razões militares da Idade Antiga. Controlar alunos com mãos-de-ferro é o sonho de pseudo-educadores.

As instituições de ensino, muitas delas alicerçadas nas relações de consumo, perceberam que as algemas podem ser ornamentadas com flores, sem que o preso se dê conta do cárcere. É a máxima weberiana: o mecanismo de dominação ocorre quando o dominado não nota o processo de controle e auxilia na própria relação de submissão.

As escolas, localizadas em grandes capitais, notaram que o uniforme influencia no cotidiano de seus alunos adolescentes. Como a moda é preocupação recorrente de seu público, bastou terceirizar o serviço e lançar uma espécie de “coleção outono-inverno escolar”. Ou seja: o uniforme ganhou uma linha de camisetas e acessórios. O público expeliu mais uma vez a faceta consumista, com a coleção de uniformes, de várias cores.

Nesta relação de consumo, a escola lucrou novamente. Os jovens foram iludidos pela diferenciação, mas caíram de quatro na arapuca dos padrões de comportamento. As cores e os modelos das camisas são para todos, sem margem para criações autorais.

Assim, a sociedade de consumo – impregnada em um tipo de instituição que deveria primar pela cidadania – persiste em perseguir a própria utopia: o consumidor único, com pensamento único, servil aos produtos idênticos e sem as resistências tribais. A felicidade exterior e a falsa liberdade numa camiseta.

quarta-feira, 9 de março de 2011

O endereço errado


Depois de alguns anos de afastamento, provocado pelos compromissos da vida, a amizade entre nós foi retomada. Para cumprir uma promessa, fui conhecer o ambiente de trabalho dela, recém-conquistado por quem estava cheia de planos para alterar o entorno de seu universo.
           
Ao chegar no local combinado, o primeiro estranhamento. Os muros eram altos, com três metros de altura, pintados de cinza, sem vida. Talvez fosse uma nova corrente artística! A pintura era uniforme, sem identificações do lugar, sem quaisquer particularidades que dessem pistas do anônimo autor das pinceladas.
            
O recepcionista do portão de entrada estava armado de cassetete e vestia um típico uniforme de guarda. O próprio portão assustava pela imponência e por estar trancado àquela hora do dia com vários cadeados, dos mais variados formatos.
            
A justificativa do guarda para tanta preocupação eram as constantes fugas. Muitos dos internos escapavam com a luz do sol. Houve um que até sorriu para os guardas enquanto pulava o muro. Simplesmente desapareciam, às vezes com a ajuda de familiares e amigos.
            
Após a devida identificação, fui encaminhado para a recepção da unidade. Outro portão, este menor e com apenas uma tranca. Um funcionário me atendeu mecanicamente. Não foi necessária revista, pois minha amiga avisara a respeito do visitante.
            
O funcionário não foi grosseiro, mas manteve a pose. Tive que informar o que carregava na bolsa. A explicação dele foi imediata: como o lugar enfrenta diversos casos de violência, tornou-se necessário se precaver. E desconfiar de todos. Muitos dos internos têm históricos de agressão. Até armas de fogo passaram pelos mecanismos de segurança, embora os conflitos mais freqüentes envolvam socos e pontapés. Se é que isso refresca o clima.
            
Nos corredores, vários funcionários, muitos deles uniformizados. A roupa padronizada indicava um grau mais baixo na hierarquia. O trabalho consistia numa simples tarefa: monitorar os garotos o tempo todo, independentemente do que fizessem de forma oficial (limpeza, cozinha etc.). 
            
Os monitores foram treinados para compreender que – sempre, sempre - o objetivo dos homens engaiolados é sempre escapar. Qualquer aproximação, qualquer relacionamento gera desconfiança de ambas as partes. Posicionam-se como adversários no mesmo campo de batalha. Acordos informais mantém a paz temporária.
            
O tempo ali passa mais devagar, com o ar pesado, monótono, em permanente estado de tensão. Um monitor mais antigo lamentava que um dia pensou-se em recuperar ou desenvolver o indivíduo. Hoje, significava somente passar um período de suas vidas (neste caso, para todos os envolvidos).
            
O uniforme tinha outra serventia, embora a desculpa oficial consistia em sustentar o argumento de que a unidade era exemplar. O uniforme assassinava nomes. Viravam números. E ai de quem quebrasse a regra da boa aparência. Imagem é tudo, dizia a cartilha.        
            
Os indivíduos de bom comportamento – ou de bom relacionamento com a direção, que pode significar a mesma coisa – ganhavam regalias como recompensa. Conheci um deles durante a visita. Parecia um garoto de futuro. Vinha de família desestruturada, porém a mãe fazia questão de que ele se recuperasse a tempo de viver bem no mundo externo. Ela comparecia regularmente à unidade e cobrava providências da equipe diretora. Era vista como petulante e intrometida por muitos dos profissionais que trabalhavam ali. Quem era ela – na concepção deles – para criticar e dizer o que deveria ser feito, mesmo que tivesse razão?
            
O garoto fazia parte de um programa que incluía uma série de atividades extras, visando – na retórica da política pública – elevar a formação dele e assegurar que pudesse realmente sair dali com uma chance no mercado de trabalho. Ao conversar com minha amiga, no entanto, ficou claro que o programa não abria margem para a criação humana.
            
Criatividade era um empecilho. O que valia era cumprir adequadamente as regras, manter a aparência, apresentar bom comportamento e – se possível – não pensar sobre o funcionamento do sistema. E jamais questioná-lo.
            
Segundo uma das monitoras, aqueles indivíduos não tinham nada na cabeça. E repetia: cabeça vazia, oficina do diabo. Estavam ali para sair após prazo definido e – quem sabe? – mudar de instituição. Não seriam livres e – como bem frisou uma das integrantes da equipe diretiva – críticos, palavra excomungada do dicionário.
            
A filosofia que me foi apresentada se confirmava na agenda do dia. Tudo seguia a rigorosos horários: refeição, atividades físicas, visita ao pátio, encontro com familiares. Todas as tarefas – este era o nome usado de forma corriqueira – eram supervisionadas à risca.
            
Falhas eram inadmissíveis. Punições, constantes. Contagens aconteciam várias vezes ao dia, durante as filas e entradas e saídas dos pavilhões. Em muitos casos, o diálogo se mostrava peça de ficção. A conversa caminhava na base de gritos, claro que oriundos de quem tinha mais poder. 
            
Após um par de horas, minha amiga me acompanhou até a saída. Notou meu semblante decepcionado e assegurou que acreditava numa mudança. Que o local seria menos violento! Que os profissionais seriam melhor preparados para lidar com os jovens que ali estavam!
            
Que era possível pressionar os políticos para implantar mudanças estruturais de longo prazo!  E que faria o que fosse para alterar ao menos aquele micro-cosmo, aquela unidade que aprisionava pessoas!
            
Acreditei nas palavras dela, mas saí de lá com a estranha sensação de ter ido ao endereço errado. Com a devida licença poética, ela trabalha numa escola. 

terça-feira, 8 de março de 2011

O professor e o bode

Moralismo se faz com pressa. E política rasteira se pratica com desinformação. Quando os dois se juntam, para deleite dos hipócritas, julgamentos acontecem sem tempo de avaliação. Culpados e inocentes, vítimas e agressores, têm seus papéis definidos no calor da hora.

A Escola Estadual João Octávio do Santos, no Morro do São Bento, se envolveu num episódio impregnado de moralismo barato. Um dos professores de Matemática do ensino médio foi afastado por causa de uma aula. O professor utilizou exemplos de criminalidade, como tráfico de drogas e prostituição, para criar problemas aritméticos para seus alunos.

A história viraria fofoca nos bancos escolares se o assunto não chegasse à imprensa. A partir daí, as “autoridades”, em ritmo de prova de 100 metros rasos, correram para mostrar serviço e exerceram – sem assumir publicamente - os papéis de carrasco e juiz. Sequer cogitaram avaliar os riscos de um estigma, de uma execração pública para qualquer um dos atores da trama.

Os moralistas sempre agem com base em problemas pontuais. Jamais o colocam no contexto. Nunca esbarram na estrutura. Ignoram o entorno. Operam como se o mundo funcionasse no preto e no branco, sem considerar os diversos tons de cinza que transitam entre as duas cores. Reproduzem o enredo de uma novela no horário nobre, na qual mocinhos e vilões são claramente definidos, sem espaço para a contradição e as nuances.

É evidente que os exemplos utilizados pelo professor de Matemática são exagerados, reprováveis em termos pedagógicos. O professor poderia trabalhar o problema da segurança pública de inúmeras maneiras, sem dar margem a ataques histéricos e atabalhoados. É fundamental deixar cristalino que o objetivo não é defendê-lo, e sim colocar alguns aspectos que me parecem fundamentais para a compreensão mais aguda do episódio.

Embora tome decisões sozinho, um professor não é independente em absoluto. Se atua assim, é porque houve confiança ou negligência da equipe pedagógica. Quando o professor comete deslizes, a equipe tem a obrigação de orientá-lo e corrigir a rota das atividades dentro e fora da sala de aula.

Para evitar constrangimentos, é prática recorrente no planeta educação afastar o docente. O bode expiatório recebe o carimbo na testa, e a sujeira é enterrada embaixo do tapete. Não há co-responsáveis ou a percepção de oportunidade para transformar um erro em avaliação de um problema social.

Em Santos, existem escolas públicas e privadas que proibiram professores de discutir política em sala de aula às vésperas das eleições, no ano passado. Em uma das escolas, no Boqueirão, a diretora alegou que opção política era uma questão familiar e que os alunos poderiam se tornar rebeldes. Rebeldia e alienação, que poderiam ser palavras antônimas, foram costuradas como gêmeas.

No caso da Escola João Octávio dos Santos, o professor de Matemática, ao falar de criminalidade, não discorreu sobre alienígenas ou temas absolutamente distantes dos estudantes. Quem já foi ao Morro do São Bento sabe que os moradores convivem diariamente com a violência física e psicológica imposta pelo tráfico de drogas. Muitos dos adolescentes, que deveriam estudar, deixam a escola para se transformar em aviões ou vigias dos traficantes locais.

Na outra ponta da corda, a Polícia Civil anunciou – segundo reportagem do jornal A Tribuna – que investigaria possível apologia ao crime. Parece-me sensato acreditar que um professor, quando aborda a criminalidade, tem a intenção de despertar em seus alunos a consciência sobre o problema, e não formar uma geração de consumidores de cocaína e crack. Ou alguém apostaria na teoria de que um professor debate tráfico de drogas ou prostituição para recrutar soldados e garotas para o crime?

Esta história, infelizmente, engrossa o coro do delírio social. Perde-se a oportunidade de expor a frágil infra-estrutura do bairro, e permite-se que o Poder Público, omisso de carteirinha, se esconda por trás da máscara do politicamente correto. Neste festival de cinismo, prevalece o estigma – a “aula do crime”, como o caso foi intitulado –, e o principal envolvido é silenciado para assegurar que o estado de coisas sobreviva, sem maiores estragos.

Obs.: Este texto foi publicado originalmente no blog Conversas e Distrações, em fevereiro de 2011. É republicado neste espaço, a pedidos de leitores.

segunda-feira, 7 de março de 2011

Professor: esperançoso e reclamão

Quando atravessava o pátio de uma das universidades de Santos, encontrei-a pela enésima vez, mas mantive minha distância platônica. Uma professora pequena, cansada, com feições sérias. Ao mesmo tempo, rápida, agitada, ela transmite a sensação de que sempre há algo por fazer. Talvez para não quebrar a aura que construí em torno dela, nunca me aproximei para agradecê-la. A professora foi uma das responsáveis pela minha paixão por livros, embora não concorde – 25 anos depois – com muitos de seus métodos. Mas o “estrago” estava feito: a leitura como combustível de liberdade.

A lembrança pessoal é simplesmente o ponto de partida para a reflexão sobre este trabalhador contraditório, demasiado humano. É justo fazê-lo provar do próprio remédio? Sim, avaliá-lo sempre, e não enaltecê-lo um dia por ano. Distorção infeliz seria se apagássemos do quadro negro o antagonismo de suas qualidades e defeitos, elementos que o completam.


A cultura latina recomenda: mortos devem ser beatificados e dias comemorativos jamais devem servir para críticas. Assim deveria ser a reação diante de valores culturais: respeita-se, compreende-se, mas não necessariamente se aceita.

A história brasileira é desfavorável à figura do professor. O Brasil, durante a colonização e o período imperial, caminhou sem um sistema de ensino. A educação não fez parte dos planos durante quase 400 anos. A nação montou seus alicerces sem a presença de livros e educadores formais.

A elite brasileira sempre estudou fora do país. Ainda hoje o faz. Os endereços apenas se alternam. Inglaterra, França, Estados Unidos, Austrália. Depende do período histórico e dos cursos da moda. É claro que há exceções, mas que se mostram frágeis ou paliativas para mudar o cenário. O professor é personagem afetado diretamente; figura desvalorizada, vista muitas vezes como um empecilho para o desenvolvimento de um grupo de pessoas tuteladas por ele. Um entregador de informações para aqueles que visualizam os alunos como clientes e a escola como shopping center.

Pensar no papel social dele é o mínimo que se espera diante de um quadro tradicional de descontinuidade de políticas públicas. Este profissional é algoz e vítima da crise (eterna – podemos chamá-la assim?) da educação brasileira. O professor é vítima quando se mostra fruto do próprio sistema público, desmantelado a partir de 1964, inchado a partir dos anos 90 e que hoje se enxerga diante de uma encruzilhada: apostar na qualidade e perder parte dos alunos ou direcionar os recursos para mantê-los por mais tempo na sala de aula a qualquer preço.

O capuz de algoz lhe cabe bem quando o sistema o posiciona como ator principal de um teatro de sombras, no qual o jogo de cena tem valor substancial, e a essência entra como elemento de figuração. Neste momento, veste o papel de operário no sentido de apenas cumprir programas genéricos, sem o tom de pessoalidade que deveria estar presente na rotina de um processo de ensino-aprendizagem.

Ser professor é uma atividade desconectada ao reconhecimento do outro. O puro contra-senso do ser humano, que busca nas outras pessoas seu próprio caminho. Isso fica mais evidente numa sociedade calcada nas aparências, na qual ser julgado e absolvido pelos pares é inerente às relações sociais.

A falta de reconhecimento se manifesta pelo próprio trabalho dele, incapaz de ser demonstrado em períodos curtos e normalmente percebido – inclusive em momentos ruins – pelo exercício da memória do aluno quando fora da rede escolar.

O professor se caracteriza, por outro lado, pela insatisfação inerente a si mesmo. Todos os motivos anteriores o levam a reclamar do terreno a sua volta. Faz parte do exercício de crítica. Todo professor se julga um crítico social. O que ocorre, às vezes, é que muitos se deleitam com este exercício e se contentam em apenas ouvir o som da própria voz. Um prazer narcísico e doentio. A partir daí, sua figura se deteriora e ele sobrevive graças ao mero ritual mecânico de vomitar conteúdos para uma platéia disforme, desumanizada.

Na mesma universidade, outro professor me chama a atenção. Tive aulas com ele e somos colegas
. Suas opiniões ultrapassam os limites das salas, ganham corredores e pátios. Ele personifica a esperança no discurso para formar novos jornalistas, em tempos de pressões do mundo do entretenimento e do marketing. 

Por outro lado, não deixa escapar a chance de se queixar de todos os atores envolvidos nos universos acadêmico e jornalístico, inclusive ele próprio.

Os dois professores, de português ou de jornalismo, têm seus métodos, seus paradoxos, suas esperanças. Levam com eles a consciência – cristalina como água – de que formar pessoas é um território que ultrapassa as frágeis fronteiras da transmissão de informação e conhecimento. Formam seres para o mundo. E, acima de tudo, carregam e exibem com orgulho as cicatrizes de suas contradições. São humanos e – por que não? - educadores.

Obs.: Este texto foi publicado originalmente no blog Conversas e Distracoes em outubro de 2007. Caro leitor, não precisamos de datas comemorativas para remexer em boas lembranças.


domingo, 6 de março de 2011

Uma escola possível

Da janela da sala de aula, as crianças se sentem dentro de um helicóptero imaginário. Quando viram a cabeça para a esquerda, enxergam o Porto de Santos. Quando mantém os olhos à frente, vêem a orla da praia. Um pouco à direita, a Ilha Porchat. Com uma dose de paciência, testemunham o voo das asas deltas e dos paragliders.

As crianças passam boa parte do dia no alto do Morro do José Menino, entretidas em inúmeras atividades na Unidade Municipal de Ensino (UME) Padre Lúcio Floro. A escola é uma das três que trabalham em regime de tempo integral. Mais do que depositar alunos dentro dos muros por todo o dia, a Padre Lúcio Floro faz educação com poesia, assim como o religioso que – com coerência – dá nome ao espaço. (In)felizmente, o lugar é a concretização mais próxima do modelo ideal de educação, com dinheiro público.

A escola existe desde 2008. Todas as áreas são acessíveis a pessoas com deficiência física. O piso é demarcado com referências em borracha para ajudar deficientes visuais. As salas possuem placas em braille, assim como o elevador, que atende os três andares do local.

O número de grades e portões é reduzido, o que ameniza o caráter prisional que a maioria dos colégios carrega nas costas. As cores, mesmo longe da vivacidade que brilharia nos olhos de uma criança, escapam ao padrão “azul-calcinha-de-velha”, marca da rede municipal que reforça o ar cadavérico das fachadas escolares.

As salas da educação infantil não têm carteiras. No início, a construção do espaço chocou professoras, acostumadas ao modelo repressor para crianças de 3 a 5 anos. A ausência de mesas e cadeiras aproxima os alunos e dá maior liberdade para que possam conviver numa relação mais coletiva.

No ensino fundamental, até o 5º ano, as salas têm capacidade para 25 alunos, um terço menor do que a média das classes inchadas, inclusive nas escolas privadas. Na aula de informática, as crianças têm à disposição um número de computadores – todos em LCD - quase para proporção de uma máquina por aluno. Há até uma sala específica para crianças com necessidades especiais.

Conheci a escola Padre Lúcio Floro há poucos dias. A visita aconteceu com certa desconfiança. Pensava que os relatos de uma escola possível eram exagerados. Ou um exercício de legislação em causa própria, tão comum quando se fala de educação. O mais do mesmo predomina em um universo onde um enfeite adicional é alardeado como a invenção da roda.

A escola Padre Lúcio Floro vestiu, de forma efetiva, o modelo construtivista, aclamado por nove em dez educadores, praticado por poucos beatos no deserto. O construtivismo funciona como uma espécie de oxigênio na educação: todos sabem que existe, mas ninguém o vê. No final das contas, prevalece o modelo tradicional de ensino mais a política de resultados e as obsessivas estatísticas que robotizam o estudante.

Em dois anos de existência, as sementes começaram a incomodar. Os casos positivos se multiplicaram. Alunos de 1º ano, por exemplo, produzem textos com coesão e coerência, fato raro na rede pública nesta fase de aprendizagem. Crianças da educação infantil constroem conhecimento de culinária ou aprendem noções de finanças por atividades lúdicas, dentro e fora da sala de aula.

Outro exemplo: uma aluna de nove anos ficou em 4º lugar em um concurso municipal de redação. A proposta era adaptar uma notícia de jornal para conto de fadas. Dois detalhes: 1) Beatriz, a aluna, era a única do sistema público; 2) ela era a única do 4º ano. Os demais estudavam a partir do 6º ano.

A prática pedagógica é rígida, não no sentido militar disciplinador, mas para adequar um discurso coerente com a teoria. Este discurso decorre do diálogo entre equipe pedagógica (detesto o termo gestora, uma herança corporativa) e professores. A escola faz valer a autonomia diante da Secretaria de Educação, o que facilita inclusive a aplicação de recursos que chegam diretamente do Governo Federal.

Por essas e outras particularidades, a escola Padre Lúcio Floro se fortificou como uma exceção no cenário carente da educação pública. E, infelizmente, expôs as contradições do próprio sistema. Feridas que gritam e sangram diante da mesma janela do helicóptero.

Logo abaixo, no mesmo bairro, a UME Irmão José Genésio, onde equipe e professores sofrem com as políticas públicas tão instáveis quando enfermas. Mais antiga, virou em dois anos o primo pobre do morro. O cartão postal às avessas de um governo que sabe como fazer, mas opta pelo piloto automático da inércia. A paralisia que impede a metamorfose da exceção em rotina, com vista natural e panorâmica, como a admirada pelas crianças do alto da montanha.