sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Casa dos horrores, depósito de loucos


Casa de Saúde Anchieta - foto em 2007


Gabriel Rosário e Victória Simonato*

“Dentro de poucos dias será inaugurado em Santos o maior e mais moderno hospital particular da América do Sul. Trata-se da Casa de Saúde Anchieta, presentemente funcionando à Av. Ana Costa, 168, e que será instalada em edifício próprio, especialmente construído à Rua São Paulo, 55. Terá o mais completo serviço médico do Brasil, no gênero. Modernamente equipada para oferecer assistência e tratamento de doenças do sistema nervoso, sob os cuidados de seis neuro-psiquiatras de São Paulo e dois clínicos de Santos - Serviço especial para pessoas idosas e para casos de alcoolismo. Enfermagem especializada sob a direção de enfermeira diplomada e ambulatório para doentes externos.

A própria fachada do edifício da Casa de Saúde Anchieta é o exemplo típico do arrojo e empreendimento desses psiquiatras que, antes de qualquer objetivo monetário, procuraram concretizar um velho sonho: dotar Santos de uma casa especialmente construída para oferecer o máximo de conforto aos enfermos da mente.”


- Trecho da matéria publicada em 1º de Maio de 1953, no Jornal A Tribuna

Fundada em 1953, a antiga Casa de Saúde Anchieta era um hospital modernamente equipado, como vendia a propaganda, mas proporcionou durante anos um circo de horrores, onde pacientes, confinados e amontoados eram torturados com eletrochoques e espancados pela equipe de enfermagem especializada.

Em 3 de maio de 1989, foi decretado o fim do hospital, marcando o início da luta antimanicomial no país. Com o fechamento, decretado pela Prefeitura, profissionais da saúde, com aval da justiça, ocuparam o local, libertaram das correntes aqueles que ali estavam e puseram fim à angústia e ao sofrimento. Acontecia, naquele momento, a interdição do lugar.

“Antigamente todos os pacientes com problemas da mente, da cabeça eram tratados como loucos e perigosos, então, tinha essa medida de segurança. Onde se pegava todo mundo que tinha problema na cabeça, era louco, retardado mental e colocava no mesmo lugar para segurança dele e de outras pessoas. Hoje se acredita que isso não é mais aceito e que o paciente com problema da cabeça pode fazer o tratamento em casa e ter benefícios. Essa é a diferença de hoje pra antigamente”. As afirmações são do psiquiatra Mario Ileki Junior, que trabalha no Pólo de Atenção Intensiva em Saúde Mental da Baixada Santista (PAI) há um ano.

Inaugurado há três anos, o PAI Baixada Santista tem o objetivo de tratar o paciente em surto sem os tratamentos que eram usados antigamente. Os novos métodos usados pela unidade envolvem terapeutas ocupacionais, psiquiatras, assistentes sociais e professores de educação física.

“O que eles faziam era: ‘surtou? Então tira da sociedade’, era mais ou menos o que acontecia. Pegava e colocava dentro de um hospital como esse, trancava. Você tinha um excesso de paciente com um mínimo de médicos, um mínimo de profissionais, então você não tinha como tratar”, afirma o assistente social Alexandre Cruz, que trabalha no PAI há mais de três anos, como coordenador de atendimento e apoio.

Os eletrochoques

O símbolo deste período, anterior aos anos 90, era o eletrochoque. “O paciente fez uma “malcriação”, então vai e dá um choque.”

Cruz explica que hoje a eletroconvulsoterapia pode ser um instrumento positivo. “Ela é utilizada em hospitais tops, como Albert Einstein, somente para determinados casos, então, essa é a grande diferença. Em Santos, esse tipo de tratamento é proibido”.

A terapia de eletrochoque é aplicada desde a década de 30. As doenças psiquiátricas provocam alterações de atividade cerebral. O psiquiatra Mario Ileki Junior explica que “hoje em dia essas atividades [eletrochoques] ainda existem com intensidade diminuída, não são esses que você vê pelos filmes, uma voltagem muito grande, e sim micro voltagem, onde o paciente é sedado, com uma descarga elétrica na região encefálica, onde há um alteração na ativação elétrica do cérebro”.


O fechamento simbolizou a luta antimanicomial

O tratamento nos dias de hoje

Cruz exemplifica o trabalho do PAI. “Para se ter uma ideia do trabalho de primeiro atendimento com a família, tivemos um paciente que era um andarilho em São Vicente. Ele ficava pelas ruas da cidade, abrindo sacos de lixo e comendo. A família, composta por três irmãos, não cuidava dele, que morava sozinho. Os irmãos estavam unidos para cuidar da mãe, que estava com câncer, e faleceu em dezembro de 2010 ou de 2011. Então dois deles se juntaram e começaram a cuidar desse quarto irmão [o andarilho]. A princípio, levaram no CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) de São Vicente, mas não deu jeito, porque lá é porta aberta, e aí pediram encaminhamento pra cá. No primeiro atendimento, ele não falava nada com nada, então a família veio aqui para conversar com o médico. No atendimento, é feita uma série de questões, pegando várias informações do paciente, que, pra nós, é muito relevante”.

O andarilho tinha sido maestro e funcionário público em Praia Grande. Estas informações, fruto da anamnese (a entrevista inicial), serviram para que os terapeutas se aproximassem do paciente. “As terapeutas ocupacionais trabalham muito com pintura e direcionaram pra ele notas musicais. Começou um interesse por parte dele. Antes ele ficava no quarto, e com o decorrer do tempo começou a sair, a participar das atividades.”

O paciente apresentou também mudanças na relação com os irmãos. “Na hora da internação, esses dois irmãos comentaram que tinha um terceiro que o paciente odiava. Então, um dia estou na minha sala e esse outro irmão veio visitar. Sentei com ele, conversei pra entender como é a situação, que com ele o paciente era meio agressivo. Chamei um técnico de enfermagem, contei a situação e acompanhamos a visita. Foram chamar o paciente, e quando ele viu quem era essa visita, ele voltou pro quarto. Pedi pra ele aparecer mais vezes, e, num outro dia ele voltou, e foi diretamente no quarto, onde o paciente estava deitado. Eles conversaram um pouco, mas foi rápido e com o tempo esse vínculo voltou.”

Depois da alta médica, o paciente retornou para uma atividade do Dia Mundial da Saúde Mental, quando tocou piano. “Ele tocou para os pacientes, fizemos um coffee break e foi bem legal”, conta o assistente social.

“Temos que tratar a família”

O contato com a família é essencial para o que o paciente volte a si e saia do surto. As mesmas atividades que são feitas no hospital, como pintura e colagem, podem ser feitas em casa. Muitas famílias não sabem o que fazer quando o paciente recebe a alta.

Além de pacientes com transtornos mentais, o PAI também recebe uma demanda de usuários de drogas. Segundo o assistente social, os dependentes químicos não tem a visita familiar tão frequente em relação àquele paciente com algum tipo transtorno. “O ideal é a família estar participando, não adianta você tratar só do paciente, você tem que cuidar da família, explicando como continuar o tratamento, como levar, onde levar. Inclusive, o paciente sai daqui com cinco dias de medicamento, para dar tempo de procurar o serviço”.

Depois do fechamento da Casa de Saúde Anchieta, alguns pacientes se juntaram ao Grupo Tam Tam, projeto criado por Renato di Renzo, de teatro solidário e se dedicaram à criação da Rádio Tam Tam, onde os loucutores eram os próprios “doentes da cabeça”. O grupo Tam Tam completa 25 anos em 2014.

No entanto, o fantasma da Casa de Saúde Anchieta não se dissipou por completo. Não se trata somente das lembranças, mas de outro problema, também de ordem social. O local onde ficava o Anchieta se transformou em um cortiço, onde residem 15 famílias.


* Este é o décimo-segundo e último texto da série "Os Indesejados", projeto de estudantes de Jornalismo da Universidade Católica de Santos (Unisantos). 

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Da pílula azul à estética: o aumento da Aids em idosos




Thaís Garcia e Thaís Ursini*


“Era como se fosse assinar uma sentença de morte. Todos tinham consciência que não sobreviveriam por muito tempo. Sempre acreditei que eu venceria, nunca imaginei que iria falecer naquela época. Hoje, para mim, é super comum, encaro como uma informação médica fundamental. Se teve um resultado positivo para mim, quero passar para os outros. Hoje é um assunto que não é mais tabu. Eu era muito fechado, tinha problemas psicológicos de aceitação, mas por causa da doença me tornei mais aberto”. Essas são palavras de Rubens Barbosa Reche, portador do vírus HIV, de 61 anos.

Nascido em 1952, solícito, bem humorado, otimista, contador aposentado, solteiro, Rubens é soropositivo há 22 anos. Em 1992, a doença era um estigma muito grande criado pelas pessoas que, por ignorância, evitavam encostar e até chegar perto de pessoas infectadas.

Naquela época, ele estava se relacionando com um amigo e ambos não usaram preservativo. Por ser uma doença recente no Brasil, Rubens não acreditava que poderia acontecer com ele. Mas começou a suspeitar quando apareceu herpes zóster em seu peito e suas costas, um dos sintomas mais comuns da AIDS.

Quando descobriu que foi infectado pelo vírus, sentiu medo e ao mesmo tempo teve um choque, pois já tinha perdido amigos por causa da doença. Apesar disso, sempre teve fé que iria vencer. Para ele, a sobrevivência se deu devido à combinação do tratamento médico com o bom estado psicológico.

Após os primeiros casos de morte, Rubens passou por uma mudança comportamental. Ele decidiu pela abstinência sexual ao perceber que a doença era séria. Depois, aderiu às formas de proteção.

Rubens disse que sempre tratou da AIDS com métodos alternativos como o chá que tomava de “cipó milagroso”, junto ao coquetel de medicamentos retro virais.

"Cultura anti-camisinha"


O número de idosos contaminados pelo vírus cresceu entre 2000 e 2011. Segundo o boletim epidemiológico do Ministério da Saúde de 2012, entre homens com 60 anos ou mais, a taxa de incidência (por 100 mil habitantes) de casos de AIDS, em relação a sexo e faixa etária por ano de diagnóstico, subiu de 6,8 para 10,4. 

Para o professor de anatomia e fisioterapeuta Elton de Freitas, o problema do vírus na população mais idosa ocorreu a partir da produção de medicamentos como o Viagra, que fez com que procurassem profissionais do sexo para se satisfazerem. “A cultura deles é de não usar preservativos. As doenças que existiam na época em que eram jovens eram 100% curáveis”.

Mestre em Saúde Coletiva, Elton realizou uma pesquisa, em 2011, sobre Síndrome Lipodistrófica em pacientes com HIV/AIDS com ou sem utilização de terapia antirretroviral. Ele analisou casos na cidade de São Vicente, no litoral de São Paulo.

Aliado aos novos medicamentos para desempenho sexual, outro fator é que os idosos acreditam que não vão se infectar depois de tanto tempo. “As pessoas acham que no fundo, no fundo, estão imunes na velhice”, afirmou Rubens Reche.

Santos é líder de casos

Entre as cidades da Baixada Santista, Santos é a primeira cidade com mais pessoas soropositivas, com maior incidência nos bairros da Aparecida, Boqueirão e Vila Nova. Esses três bairros apresentam mais pessoas infectadas devido ao uso de drogas. Em segundo lugar na região, está São Vicente.

Elton de Freitas afirma que a maioria dos pacientes de preocupa com a estética, com medo de serem percebidos. Essa preocupação social é um reflexo de termos uma sociedade ainda ignorante e que tem medo do contato com as pessoas portadoras do vírus. Geralmente, as pessoas se afastam, evitando encostar ou abraçar quem tem AIDS. No entanto, já foi comprovado que não há risco de contaminação apenas pelo contato.

* Este é o décimo-primeiro texto da série "Os Indesejados", produzida por estudantes de Jornalismo da Universidade Católica de Santos (Unisantos)



terça-feira, 28 de janeiro de 2014

As paçocas e as pedras




Bruno Biazotto e Willians Pereira*


Entre vários acessos aos morros de Santos e às lojas tradicionais de móveis, na avenida Senador Feijó, uma pequena rua, no centro da Cidade, chama a atenção pelo vai e vem de pessoas. A maioria delas exprime cansaço, se veste com simplicidade e exala odores distintos daqueles que povoam lojas de perfumaria. O sobe e desce do morro é a busca pelo prazer momentâneo.

É lá que Alessa Gonçalves Mota, de 22 anos, costuma fazer sua jornada diária. Ela sai de um quarto alugado em cortiço e caminha pelo contraste. Entre o cortiço e o pé do morro, um corredor de vitrines, que expõe móveis e mobílias luxuosas.

Antes de subir o morro, Alessa para em uma banca de jornal, na avenida Senador Feijó com a praça Largo 7 de setembro. Lá, troca rápida entre o dinheiro e o tablete. R$ 1 na mão. Passos largos em direção contrária à banca e para o morro seguirá Alessa, que acaba de comprar as duas paçocas para mantê-la em pé ao longo do dia.

O doce de amendoim intercala-se com os diversos cigarros fumados diariamente. E este não é o pior dos vícios. A droga, mais especificamente, o crack, tornou-se a substância que altera a velocidade do tempo, que a faz aparentar mais do que a idade atual.

Usuária há mais de seis anos, a jovem começou nas drogas por causa de um namorado da adolescência. A partir dali, nunca mais parou. A vida dela se resume em conseguir dinheiro para manter o vício. Para isso, trabalhou em diversas lojas como vendedora.

Entretanto, nunca conseguiu se firmar em nenhuma delas por causa do crack. Perdeu os empregos por excesso de faltas ou atrasos ou por não aparentar estar bem fisicamente.

Entre uma conversa e outra no ponto de ônibus da rua Brás Cubas com a praça 7 de Setembro, Alessa conta que essa aparência pouco agradável gera tristeza. Ela diz que as pessoas a olham de modo diferente. “Procuro me manter limpa e arrumada, mas não tem jeito. A droga faz a gente perder a noção do ridículo até mesmo de chegar ao cúmulo de um morador falar que você está fedendo”.

Quatro filhas em cinco anos

Ela toma banho e troca de roupa em um quarto alugado com seus avós, num cortiço na Rua Chile, próximo ao Mercado Municipal. Além dos seus avós, vivem lá as quatro filhas que Alessa teve nos últimos cinco anos. E o tempo com elas é curto, assim como sua felicidade, pois poucas vezes dorme à noite com as crianças em virtude de fazer programas para conseguir dinheiro. Antes, cometeu assaltos. Chegou a ser presa e, por conta disso, preferiu parar.

Alessa deixou de estudar no oitavo ano do Ensino Fundamental. Ela não pretende mais estudar, já que afirma não conseguir ficar mais de 15 minutos na sala de aula.

Ela jura que pretende largar o crack. E sonha. Arrumar um bom emprego, sair da casa dos avós e comprar um apartamento para morar com suas filhas são alguns dos sonhos dela. “Se eu falasse que não queria abandonar as drogas estaria mentindo. Todos querem abandonar, mas se torna muito difícil sem o apoio de sua família e sua própria força de vontade”.

As duas paçocas compradas em uma banca próxima ao trajeto para o crack ganham um gosto amargo. Há mais de seis anos percorrendo este mesmo rumo, a jovem sabe que é difícil tomar um caminho para bem longe do circuito de sobe e desce das pedras.

* Este é o décimo texto da série "Os Indesejados", produzida por estudantes de Jornalismo da Universidade Católica de Santos (Unisantos).

Crack e o vício eleitoral




Em ano eleitoral, tudo se pode. Tudo se aceita. Tudo se fala. O destino dos viciados em crack na cidade de São Paulo virou campanha eleitoral camuflada. Parece um jogo de batalha naval, com a diferença que as peças representam vidas humanas, inclusive as que afundam.

Analisar a questão da perspectiva Fla-Flu, ou PT-PSDB, é mais do que ressuscitar velhos maniqueísmos político-partidários. De saída, afronta a inteligência, simplifica um problema demasiado complexo e desvia os holofotes de um quadro social bem mais profundo do que tirar um cachimbo das mãos de um viciado ou simplesmente atirá-lo numa jaula.

Tanto a Prefeitura de São Paulo como o Governo do Estado deveriam dialogar para combater um dos mais graves cenários urbanos do país. Uma epidemia que dispensa classes sociais, endereços e, acima de tudo, preferências de voto. Crack não é droga apenas de pobre, muito menos de vagabundo! E, cá entre nós, a experiência cotidiana nos mostra que os dois partidos são quase gêmeos, de mesmo idioma.

Ambos transformaram a tragédia de milhares de vidas em política rasteira, baixa, tão suja como as roupas de um viciado de moradia ao ar livre, na cracolândia de São Paulo. A polícia de Alckmin, como dizem os adversários dele, manda bater e prender, misturando sem critério usuários e traficantes.

A Corregedoria da Polícia Civil investiga denúncias de que dois policiais comandam o tráfico na região. Um deles seria do Denarc, justamente o departamento responsável por coibir o comércio de drogas.

A partir da ação desastrosa na cracolândia, nasce o segundo passo da baboseira político-eleitoral. O jogo de empurra entre as chamadas autoridades, aqueles sujeitos que deveriam colocar a mão na massa para reduzir o cenário de ruínas de guerra. A briguinha retira o foco sobre a ação da Prefeitura, que visa assegurar empregabilidade aos viciados, para se debater se foram balas de borracha ou bombas de efeito moral, como se ambas não fossem violência.

A ação da polícia na cracolândia também acendeu os gritos de que o Governo do Estado pretendia jogar água fria no trabalho da Prefeitura. Tanto pode ser outro escorregão da Polícia, por falta de diálogo com outras áreas, como uma tática política de fato. Nessa hora, prevalecem, infelizmente, a especulação e a aparência retórica sobre a apuração detalhada dos fatos.

Se considerarmos que se trata de um movimento no xadrez eleitoral, ocupar a cracolândia com sirenes e viaturas seria estupidez ou falta de memória. Até porque o próprio Governo do Estado é pai do projeto Recomeçar, que visa encaminhar usuários de crack para tratamento. O paciente recebe R$ 1350 mensais, repassados às clínicas credenciadas. O projeto foi apelidado pela imprensa, e espalhado como fofoca pelos adversários, de Bolsa-Crack.

O crack não representa somente um problema de segurança pública. Antes de tudo, merece a atenção como doença, como caso de saúde. Independentemente do fundo religioso, as clínicas têm feito boa parte do trabalho que os poderes institucionalizados não conseguem fazer.

Cidades como Nova Iorque reduziram o consumo e venda de crack com tolerância zero. Há usuários condenados a 25 anos de cadeia. Mas não apagou o tráfico de drogas, sempre conectado aos altos escalões. Aliás, quem ouve os discursos de políticos americanos e acompanha as mudanças de legislação percebe que os Estados Unidos já reconheceram que a política de repressão das últimas três décadas falhou por completo.

O crack deve ser tratado como um problema político. Como política pública, e não política eleitoral. Enquanto os engravatados virarem as costas para uma epidemia além da cracolândia, sobreviverá a visão de limpeza social, que mistura ignorância, preconceito e intolerância. Nada como um olhar retrógrado conforme a urna eletrônica e os votos se desenham no horizonte.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Do Congo a Santos: a história de um refugiado



Letícia Souza e Rhayssa Nascimento*

"Vou lutar como sempre" é a frase proferida por Pitchou Luhata Luambo. Refugiado há dois anos no Brasil, ele saiu de seu país, República Democrática do Congo, pela insegurança que a guerra tinha depositado na vida de todos por lá. A guerra civil, iniciada em 1994 na vizinha Ruanda, ultrapassou a fronteira e não tem data pra acabar. Mas a insegurança, fato primordial para pedir refúgio em outro país, já não assusta tanto e ainda há o desejo de voltar para casa.

Pitchou não teve boas notícias nos últimos meses. Apesar da dificuldade em receber informações dos familiares, soube da morte do irmão. E os rebeldes não se restringiram a essa ação, sequestraram outro irmão, de apenas 16 anos. O sequestro durou 2 meses e só teve fim com a fuga dele.

Essa história obrigou Pitchou a trazer irmão, filha e mãe para perto dele. Residindo em São Paulo desde a chegada ao Brasil, a cidade recebeu mais três estrangeiros, mas não os acolheu. Assim diz ele, com uma vontade de sair de um país ao qual pensou poder recomeçar a vida.

A viagem, moradia e outros custos foram bancados por ele, único que possui emprego. O Cáritas, ligado à Igreja Católica, é a instituição que auxilia no tratamento do irmão sequestrado. Uma vez por semana,o rapaz menino faz terapia.

Na República Democrática do Congo, o cotidiano era outro. Pitchou, formado em Direito, lecionava em uma universidade. O irmão, assassinado, era médico. Um padrão de vida superior ao encontrado no país de refúgio.

Desejo de voltar

A mudança drástica de rotina despertou na mãe dele a vontade de retornar ao Congo. Retornar ao padrão de vida anterior, e esquecer o quão foi difícil viver no Brasil. E o conflito não a assusta mais que a falta de assistência e oportunidades encontradas em dois meses. Ela argumenta que, no Congo, apesar do perigo, caso tenha sorte pode se salvar, mas aqui não há opção, a vida não vai mudar.

Entidades internacionais sofrem com a corrupção local

O Brasil é um dos países que mais recebe refugiados na América do Sul. Os últimos dados da Agência da ONU para refugiados (ACNUR) indicam 4600 refugiados de 70 países.

Pitchou não esconde a vontade de ir para outro país. O que vem em mente é a Argentina, lugar onde parou antes de chegar a São Paulo. E sonha em se mudar para o país vizinho e aprender espanhol. Depois, voltaria para o Congo.

Universidade em Santos


Apesar de uma lei sancionada em 1997, Lei Federal n. 9474, que criou um órgão para analisar e julgar os pedido de refúgio, o Comitê Nacional da Justiça (CONARE), a inclusão social é difícil. A língua diferente, o não reconhecimento de suas antigas profissões e a denominação de refugiado são impasses para conseguir emprego. Ponto essencial a quem pretende construir uma nova vida.

Apesar de ter sua vida no Brasil constituída em São Paulo, Pitchou encontrou em Santos uma oportunidade, o retorno à Universidade. Conseguiu uma bolsa destinada à refugiados na Universidade Católica de Santos e cusrsava Ciências da Computação. Mas o reinicio foi interrompido após ao ocorrido com sua família.
Santos foi um segundo lugar a Pitchou. Para muitos é apenas o ponto de entrada, principalmente por possuir um Porto. Mas dificilmente acolhe os refugiados.

De acordo com o CONARE, desde 2008, 158 estrangeiros chegaram pelo Porto de Santos na condição de refugiados, porém só três solicitaram refúgio na própria cidade. A maioria preferiu se deslocar para outras cidades.

A situação é confirmada pelo delegado do Núcleo de Imigração da Polícia Federal, Gesival Gomes de Souza, que complementa que desde fevereiro do ano passado não houve casos de refugiados no Porto.
Guerra civil deixou mais de 3,5 milhões de mortos
Foto: ONU

A Guerra

A República Democrática do Congo, ex-colônia belga, está em guerra civil por divergências étnicas, interesses comerciais e políticos. O cerne do conflito foi o genocídio em Ruanda, no conflito entre as etnias hutu e tutsi. Em 1994, ano desse genocídio, estima-se que os hutus mataram 800 mil tutsi e hutus moderados, cerca de 10% da população.

Após esse conflito em Ruanda, houve grande fluxo de refugiados que entraram no Congo, o que aumentou a instabilidade política e levou à queda do ditador Mobuto Sese Seko em 1997, depois de 32 anos no poder. A rebelião foi liderada por Laurent Kabila, com apoio dos regimes de Ruanda e Uganda. Ele se tornou presidente.

A República Democrática do Congo foi palco da chamada "Primeira Guerra Mundial na África", no período de 1998 a 2003. Um conflito entre tutsi, de origem ruandesa, contra o governo de Kabila. Nessa rebelião, cerca de 3,5 milhões de pessoas morreram de fome, doenças ou em razão de violência.

Mas o mandato de Kabila durou até 2001, quando foi assassinado. No lugar dele, assumiu o filho Joseph Kabila que, em outubro de 2002, assinou um acordo de paz com os rebeldes. Porém os conflitos entre as duas etnias, tutsi e hutus, permaneceram. Por isso, o país obteve ajuda da ONU, tanto aos campos de refugiados no país, como a formação da maior força de paz, com 17 mil soldados.

Em consequência da guerra civil, a economia nacional sofre com a redução de investimentos estrangeiros, crescimento da inflação e falta de infraestrutura. Além da economia, a população vive com problemas socioeconômicos, como uma dos piores índices de mortalidade infantil do mundo: 15 óbitos a cada mil nascidos vivos.

O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é de 0,239, a segunda pior média mundial. O analfabetismo atinge 32% dos habitantes; cerca 76% da população é subnutrida; a maior parte das pessoas vivem com menos de 1 dólar por dia, portanto, abaixo da linha da pobreza.

Obs.: Este é o nono texto da série "Os Indesejados", produzida por estudantes de Jornalismo da Universidade Católica de Santos (Unisantos). 

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Sofrimento e superação: os ingredientes contra o alcoolismo




Bruno Giufrida e Henrique Seiscenti*

Santos, principal cidade do litoral de SP, registrou dois acidentes graves no último final de semana. Ambos aconteceram na madrugada de domingo e envolveram motoristas dirigindo embriagados. Por sorte, eles não feriram ninguém. Um bateu o carro em um muro e o outro, numa árvore.

Além da direção perigosa, os dois motoristas tinham comportamentos semelhantes quando saíram de seus carros destruídos. A voz era pastosa. O bafo, desagradável. As reações, agressivas. E a negação de que estavam bêbados.

O desfecho também foi idêntico. Ambos se recusaram a fazer o teste do bafômetro, foram autuados em flagrante, pagaram fiança de R$ 1 mil e R$ 2 mil, respectivamente, e responderão ao Poder Judiciário em liberdade.

A sociedade brasileira costuma colocar em pauta o alcoolismo quando acontecem tragédias; em outras palavras, mortes. As pesquisas reforçam que os brasileiros não conseguem lidar bem com o álcool. O último Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (LENAD) é de 2012.



O estudo, feito em parceria entre o Instituto Nacional de Políticas Públicas de Álcool e outras Drogas (INPAD) e a Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), ouviu 4607 pessoas. 64% dos homens e 39% das mulheres consomem álcool regularmente. Ou seja: pelo menos uma vez por semana. E dois entre cada 10 entrevistados apresentaram características de abuso ou descontrole em relação às bebidas alcoólicas.

Criado em 1935, em Ohio, nos Estados Unidos, os Alcoólicos Anônimos são a principal instituição para o combate à doença. No Brasil, existem 4900 grupos. Na Baixada Santista, há 38 cadastrados nas nove cidades. Santos possui a maior concentração, com 11 grupos.

Todos os frequentadores apresentam biografias marcadas por tristeza, conflitos e perdas. Mas muitos deles alcançam a superação. Uma delas está no Grupo Doze Passos, em Santos. Um caso que não é único e mostra a atual realidade de muitos adultos.




Perda de amigos, problemas dentro de casa

Aos 53 anos, João (nome fictício) é pai de três filhos – duas meninas e um menino – e encara com bravura o alcoolismo, frequentando, de segunda a domingo, as reuniões dos Alcoólicos Anônimos.

“Hoje, posso dizer que me sinto vitorioso”, conta a vítima de uma doença que assola, direta e indiretamente, milhões de pessoas no país. E a situação poderia ser pior. Antes de procurar apoio do AA, ele passou por sérias dificuldades familiares, que não aceitava os problemas quase diários, como brigas com a esposa na frente dos filhos.

“Cheguei a dormir várias noites fora de casa. Eu bebia, achava que ia solucionar todos meus problemas, mas acabava piorando tudo depois. É algo sem fim. Eu precisava tomar essa atitude para continuar vivendo. Eu renasci”, explica, emocionado.

E a ausência repentina acabou se agravando. Além de ficar fora de casa por alguns dias, proporcionava cenas de violência dentro do ambiente familiar, afastando filhos, vizinhos, amigos e parentes. “Cheguei a perder a cabeça e jogar coisas na parede. Eu estava sem rumo”, lembra.

Mas, hoje em dia, devidamente amparado pelos Alcoólicos Anônimos, ele mantém vivo o sonho de poder viver normalmente, sem restrições. “Falta pouco pra eu voltar a ser uma pessoa confiante, normal. Quero estar livre de tudo isso rápido”.

As reuniões do AA funcionam como um grupo de entreajuda, formando uma roda de bate papo, em que os integrantes contam histórias que viveram por conta da bebida. Uns falam e outros preferem só ouvir, as histórias muitas vezes são comuns na rotina deles. Problemas familiares, brigas e perda de emprego estão entre as mais citadas.

Apesar das histórias ruins, existem também as boas, os membros contam suas vitórias na luta contra o vício, há quanto tempo não bebem e principalmente o que melhorou após ingressar no AA.

Obs.: Esta é a oitava reportagem da série "Os Indesejados", produzida por estudantes de Jornalismo da Universidade Católica de Santos (UNISANTOS).


segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Entre a rua e a enchente, os rostos dos cortiços

Gabriela Paniago e Isadora Moraes*

A mãe é sergipana e o pai é português. Ela nasceu no Morro da Nova Cintra, em Santos, e hoje cria dois filhos junto com o marido, que veio de São Paulo. Adriana Jesus Pereira tem 30 anos, foi mãe pela primeira vez aos 17. A filha de 13 anos mora com os avós.

O marido Leandro Gonçalves da Silva é pai desde os 14 anos, hoje trabalha na reciclagem e também é pedreiro, além de consertar calhas e telhados. Aparentemente, a carroça dá mais lucro, sendo que Leandro consegue ganhar até R$ 200 em dois dias, em situações excepcionais.

Adriana parou de usar drogas há 3 anos. Consumia maconha e crack. O marido ficou preso por três meses. Neste período, a esposa teve que pedir dinheiro na rua.

No tempo que estão juntos, mudaram de casa duas vezes. Hoje, moram em um cortiço no Centro da cidade. O Conselho Tutelar já tirou as duas crianças deles, quando moravam em um local com muitos usuários de drogas. Hoje, eles são orientados por assistentes sociais e pagam R$ 280 por mês no quarto. Recebem R$ 164 do Bolsa Família.

Enchente e migrações

A rua São Francisco está loteada por cortiços. Silvia Maria de Oliveira mora ali há 3 meses. Morava em Cubatão, no bairro Água Fria, e por causa da enchente teve que se mudar. Ela mora com o filho que trabalha como entregador de água, a nora e três netos, entre três e nove anos. Todos os adultos dividem o aluguel, exceto Daiana, a nora, pois o quarto pertence à irmã dela.


Mofo e umidade são sinônimos de cortiços
Rosevaldo dos Santos também mora há três meses nesse conjunto e há dez anos veio de Maceió. Trabalha como eletricista em uma firma e paga R$ 300 por mês no aluguel. Ele diz que tem uma boa convivência com todo mundo e que conhece muita gente dali. “Tudo tem o tempo certo”, disse Rosevaldo, que – antes do cortiço – morou sozinho. Ele já foi casado por cinco anos e tem uma filha de 12 anos de idade.



Maria Tereza Vicente veio de Recife há 34 anos. Ela conta que já chegou a morar na rua. Quando perguntada se gostaria de morar nas novas habitações (leia reportagem sobre o projeto de conjunto habitacional), ela diz que “já não tenho mais paciência pra reunião. Já corri muito atrás”. O sonho é sair um dia do cortiço e buscar um lugar melhor pra morar.


Obs.: Esta é a sétima reportagem da série "Os Indesejados", projeto conduzido por estudantes de Jornalismo da Universidade Católica de Santos (Unisantos). 

sábado, 18 de janeiro de 2014

Do cortiço ao apartamento, um sonho em construção


Cortiço no Centro de Santos

Gabriela Paniago e Isadora Moraes (texto e fotos)*

Os casarões que antes abrigavam a elite da cidade de Santos, no litoral de SP, atualmente dão lugar aos cortiços. Cerca de 16 mil pessoas se espremem neste modelo de habitação. Cada quarto abriga uma família que, na maioria das vezes, divide um só banheiro com outras pessoas.

Um projeto de construção de moradias de mais qualidade está sendo realizado em um terreno doado pela União, situado na Rua General Câmara, na região mais pobre do município. É um mutirão idealizado inicialmente pela Associação dos Cortiços do Centro (ACC), que hoje tem auxílio financeiro por parte do Governo e da Caixa Econômica Federal.

A ex-presidente da associação Samara Faustino contou que foi um processo longo até que o plano saísse do papel. “O CNPJ estava para ser cancelado. Se não tivessem corrido atrás teria acontecido”. O projeto começou a dar certo depois de várias audiências públicas e fóruns, onde os integrantes da entidade aprenderam a planejar, manejar e lidar com a burocracia de uma obra deste porte. 


A obra se arrastou durante meses 
Serão construídos 181 apartamentos de quatro tamanhos diferentes, principalmente no número de quartos. “A obra ficou parada por causa da troca de assessorias”, contou Samara. Os moradores que serão contemplados com a obra foram divididos em grupos chamados vanguardas. A Vanguarda 1 possui 750 pessoas e a Vanguarda 2, cerca de 900 pessoas.

Quem trabalha mais, escolhe primeiro

Todos trabalham na construção dos prédios de alguma forma. Existe um sistema de pontuação. A participação conta pontos. Quem tiver mais pontos, escolhe primeiro os apartamentos.

Jackson Nunes, que trabalha na condução do projeto, explica que – em 2013 - a associação contratou uma nova assessoria, obteve novo laudo técnico e captou mais recursos. “O orçamento é de 2007. De lá pra cá, o dinheiro não foi recalculado”.

Segundo ele, o próximo passo é obter o dinheiro com a Prefeitura e que tudo depende do laudo para ter uma previsão de término. “Quando a gente foi construir, conhecemos outros projetos em São Paulo, outros movimentos de moradias para construir em Santos.”



O projeto vai além das moradias e inclui cultura e saúde. Os participantes fazem aulas de dança e recebem palestras sobre tuberculose. Aqui, um parênteses: a região onde ficam os cortiços tem os piores índices de tuberculose do litoral de SP. Um dos motivos é a insalubridade das moradias. A maior parte dos pacientes abandona o tratamento, que dura, no mínimo, seis meses.

O projeto cultural também envolve a Biblioteca Comunitária. ”Engajando todo mundo, isso motiva as pessoas. As pessoas começam a ficar mais antenadas em coisas que antes não conheciam”, explica Jackson.

Banheiro e privacidade

Gladsnay Faustino, de 24 anos, é filha de Samara e agora ocupa o cargo de presidente da ACC. Segurando seu bebê, Bernardo, ela conta que a vida vai mudar completamente quando eles se mudarem para as novas edificações. “Não ter que dividir o banheiro, cada um ter sua privacidade. Já é uma mudança e tanto”.

A comunidade tem uma padaria comunitária. Jô, de 64 anos, trabalha voluntariamente, com a carga horária de 8 horas por dia. Ela diz que o lugar foi cedido pela Libra Terminais. O dinheiro das vendas é revertido para a própria padaria e que todo o maquinário foi doado.

Maria Selma Cabral Rodrigues, que cuida de idosos, diz que está aqui por conta de um sonho. “Muito complicado... qualquer coisa que você queira, tem que insistir e não desistir. Somos um só coração.” Ela também afirma que “o cortiço é harmonioso. Um cuida do outro, coisas como se fossem de família. Perde privacidade, mas as pessoas nunca estão sós”.


Obs.: A segunda parte desta reportagem, sobre o cotidiano dos cortiços, será publicada na segunda-feira, dia 20. Esta é a sexta matéria da série "Os Indesejados", projeto conduzido por estudantes de Jornalismo da Universidade Católica de Santos (Unisantos). 

As leis inúteis


A cultura das leis como exercício de poder

O Brasil está infestado de leis, o que não significam redução de impunidade. Pelo contrário. Na cultura nacional, existe a crença de que problemas de todas as ordens, inclusive comportamentais, devem ser solucionados com o inchaço da legislação.

Às vésperas da virada de ano, os vereadores de Santos e Guarujá aprovaram projetos de leis que, acima de tudo, nascem mortos, quando não contaminam o Poder Executivo com burocracia. Isso que podem criar conflitos jurídicos.

A Câmara Municipal de Santos aprovou, no pacotaço de final de ano, que incluiu o aumento do IPTU e a criação de Organizações Sociais, um projeto de lei que proíbe o uso de celulares e tablets em sala de aula. Trata-se, claro, de um comportamento que exige bom senso, por exemplo, dos professores.

O projeto de lei, de autoria de Antônio Carlos Banha Joaquim, é o retrato da desinformação do Poder Legislativo, mais interessado em atender seus currais eleitorais do que discutir corretamente problemas de relevância social. O vereador alegou, no site da Câmara, que o projeto visa colaborar com o “desenvolvimento e concentração em sala de aula”.

Na imaginação do parlamentar, qual o perfil de aluno que frequenta a rede municipal de ensino? Uma lei para evitar que troquem mensagens por celular ou joguem durante as aulas?

Em vez de fiscalizar a Prefeitura, vereadores operam no atacado, entulhando projetos que beiram a inutilidade e que transferem – depois do cumpra-se! – a responsabilidade de fiscalização, sem avaliar se a aplicação da lei é possível.

Neste caso, a Câmara ignorou um parecer negativo da Secretaria Municipal de Educação que, inclusive, apontou contradições em relação ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Com a sanção do prefeito, o projeto de lei obriga a Seduc a alterar o regimento interno. Mais papelada em janeiro, período de planejamento do ano letivo. Depois, todos se fingem de mortos.

A fiscalização ficará a cargo dos professores, como se não tivessem mais o que fazer. É a velha visão de que a escola serve como para-raios social. Não sabe como resolver? Vamos engordar as costas da escola.

Como toda lei prevê punição, os alunos que usarem os aparelhos eletrônicos sem autorização podem ser advertidos, orientados a fazer pesquisas ou até suspensos. Precisa de lei para isso? E a responsabilidade dos pais, que transformam celulares e tablets em coleiras eletrônicas?

Em Guarujá, a Câmara Municipal aprovou projeto de lei que obriga a ocupação de cargos de primeiro escalão por profissionais que residam na cidade. O projeto de lei, de Geraldo Soares Galvão, estabelece 30 dias para que os funcionários comprovem residir no município sob pena de exoneração.

A lei é, no mínimo, provinciana. Morar na cidade, segundo o vereador, representa a garantia de comprometimento com os interesses do município. Secretários como Mariângela Duarte, da Cultura, e Élio Lopes, de Meio Ambiente, seriam afetados pela legislação.

Veja o caso de Élio Lopes. Ele é um engenheiro que trabalha com questões ambientais desde os anos 80. Atuava em Cubatão no tempo em que a cidade era conhecida como Vale da Morte. Comandou a Cetesb. É professor universitário na área. Ele não estaria capacitado para atuar na pasta?

Se residir na cidade fosse garantia, Guarujá não teria prefeitos que acabaram na cadeia, vereadores acusados de receber mensalinho, entre outros escândalos.

As casas legislativas brasileiras colecionam exemplos de que um mandato pode ser burocrático a ponto de virar as costas para a vida real. A paranoia por criação de leis é um exemplo. Não surpreende, portanto, que existam leis que pegam e leis que não pegam. Há dúvidas sobre onde se enquadram os casos acima?

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

30 mil famílias esperam na fila no Brasil (As faces da adoção - Parte II)




Danilo Nogueira e Leonardo Buzo*

A assistente comercial da TV Tribuna, Debora Tirolli, é uma exceção no Brasil. Ela não sofreu problemas na hora de adotar uma criança. Desde o momento em que resolveu entrar para a fila da adoção, Debora não fez nenhuma exigência de raça e sexo. Hoje, é mãe de Camila, de 10 anos, e Bernardo, de quatro.

A adoção de crianças ainda é uma trilha jurídica tortuosa e lenta, por vezes por conta das escolhas dos pais. Em Santos, no litoral de São Paulo, 75 casais esperam na fila. Eles constam no Cadastro Nacional de Adoção (CNA), instrumento que vira acelerar o processo por meio do mapeamento de informações unificadas. O cadastro foi criado em 2008.

Segundo a Vara da Infância e da Juventude de Santos, o número é pequeno, se comparado com o país, que possui 29.440 pretendentes cadastrados. Por que este processo se torna tão demorado?

A resposta é simples. A maioria das pessoas que estão cadastradas nesta fila fazem algumas exigências na hora de escolher o novo filho. As mais comuns são crianças recém-nascidas, do sexo feminino e de cor branca.

Conforme os dados do Cadastro Nacional de Adoção (CNA), hoje no Brasil, 5.426 adolescentes e crianças estão prontos para serem adotados. Desse total, 1.777 são da cor branca (32,75%), 2.575 pardos (47,46%), 1.024 negros (18,87%), 23 de pele amarela (0,42%) e 35 indígenas (0,65%).

Mas crianças que não são recém-nascidas, ou possuem uma cor de pele diferente da branca, também recebem a sua chance de ganhar uma nova família. (Leia a primeira matéria sobre o assunto) Quem deixa as exigências de lado fica pouco tempo na fila.




Visitas quebram exigências

O sonho da assistente comercial Debora Tirolli, de 37 anos, era ter um filho biológico e um adotivo, porém o sangue dela e o do marido não são compatíveis. Com isso, ela não conseguiu engravidar. Debora não pensou duas vezes e foi direto para a fila de adoção.

Quando entrou no processo, traçou o perfil da criança, que seria de 0 a 3 anos, ambos os sexos e qualquer raça. Depois disso, começaram a frequentar a Casa Vó Benedita, onde a idade das crianças é de 0 a 16 anos, para conhecer um pouco mais das crianças mais velhas que viviam nessa situação.

Lá, eles conheceram a Camila, de 10 anos, que estava no local desde os seis. Logo no momento em que o casal conheceu a garota, resolveu adotá-la, e a criança também aceitou ser adotada. A adaptação foi rápida, logo no primeiro dia Camila chamava Débora de mãe.

Há três anos e meio, Debora recebeu uma ligação do Fórum, dizendo que ela era a primeira da fila de adoção e se tinha interesse em um menino de 20 dias. Ela aceitou, e hoje o Bernardo tem quatro anos.

Irmãos de sangue

Outro caso muito comum durante este processo é a separação de irmãos de sangue que foram abandonados dentro de um orfanato pelos pais biológicos. Isso pode se tornar um problema para a adaptação da criança, quando ela estiver no novo lar, já que um laço de afeto foi cortado. A chance de se manter a relação de irmandade de sangue para a vida toda pode ser reduzida.

Obs.: Este é o quinto texto da série "Os Indesejados", produzida por estudantes de Jornalismo da Universidade Católica de Santos (UNISANTOS)

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Atento aos sinais

Dia de rolêzinho ou dia de compras?

Os jovens usam o trajeto como de hábito. Dedos acelerados castigam as teclas, ansiedade para falar em código e combinar o que fazer. Endereço definido, data marcada, causas diluídas entre desejos e queixas. 

Na rua, é fácil localizar os pares. Nomes e origens não representam nada. A aparência e a motivação flexível os unem. Há um inimigo comum: os símbolos que ostentam o que eles não podem ter, o que adorariam conseguir ou o respeito com quem já obteve.

No mundo historicamente separado por muros, estar junto sempre provoca reações negativas. Sacode o modelo mecânico, chacoalha as posições de sempre. O terremoto fica mais evidente quando se percebe que vivemos em tempos de isolamento. Ironicamente, os equipamentos que separam viram as armas da união física paliativa.

À distância, as reações necessitam de rótulos. Escolhe-se um nome, com cheiro de marca, alheio ao grupo de transgressores ou pinçado do linguajar deles. A segunda opção é sempre melhor, porque conecta mais uma característica de inferioridade social. A leitura sobre o que se aproxima é de um blockbuster hollywoodiano. É essencial estabelecer o bem e o mal. O certo e o errado. As regras do jogo à revelia de parte das peças. Individualiza-se a cidadania, como se isso fosse possível. E se fosse você?

O público e o privado se misturam. De quem é o espaço? A rua, o shopping pertencem à quem? Juridicamente, a clareza existe, mas os valores culturais – e o estou pagando - mastigam a letra jurídica. Valores culturais aproximados pelo consumo. Os desejos são idênticos e não distinguem as classes descritas pelos téoricos. O número de prestações, idem. Mas eu moro em bairro bom? Pegamos ônibus diferentes, mas que levam ao mesmo endereço, argumentam.

Para sanar o impasse, convocam-se cassetetes, capacetes, gás e spray de pimenta. Porrada em quem pensa diferente e atrapalha o trânsito, de carros ou de pessoas. Seria tudo por 20 centavos? Ou seria por melhor infraestrutura? Sabemos o que queremos? Ou apenas queremos exalar juventude e zoar? 

Dia de compras ou dia de rolêzinho?

Perdoe-me certo esvaziamento político acima. É provocação pura e simples. O jogo de palavras esconde – mal e porcamente – a ironia diante de tanta violência, tanto de quem participa como de quem assiste, se sente ameaçado e não tolera. É claro, enfurecido leitor, que os protestos de junho e os rolêzinhos de hoje são situações diferentes, com proporções distintas. Mas não deixam de esboçar a decadência do comodismo de muita gente, mesmo em doses homeopáticas, que esgarçaram as amarras que silenciam a desigualdade e as segregações das médias e grandes cidades.

A comparação apenas serve para nos alertar para um dos ensinamentos básicos da História: cautela. Não podemos nos sentar sobre a preguiça mental que nos conduz à leitura rasteira dos fatos. É preciso prudência para não se comprar a primeira versão que vem embalada em retórica de oportunidade.

Nem nos agarrarmos à soberba, mãe da intolerância, que nos permite classificar o que não entendemos e fingimos entender porque colocamos fatos e indivíduos em velhas gavetas, marcadas à fita com rótulos gastos. E muito menos nos deitarmos sobre a cama das certezas, que nos apontam único caminho e camuflam a complexidade do mundo lá fora.

Vândalos, bandidos, baderneiros, filhos do rolêzinho e manifestantes à parte, a História nos ensina também a duvidar do absoluto, que nasce para ser posto em xeque e depois reescrito. Prefiro confiar nela e ficar com as dúvidas. Desconfianças que geram novas perguntas e que nos deixam mais atentos aos sinais, porém certos de que algo nos escapará.

Preciso do principal alicerce da História para solidificar minhas conclusões, quase uma utopia para quem duvida. O tempo – e os novos capítulos que vem de carona – pode fornecer maiores elementos que, contextualizados, indicam maior probabilidade de entendimento. A ausência de tempo, sabe-se, é a arma de quem deseja manter tudo como está. Mata-se a reflexão e encarcera-se a perspectiva de mudança.

A dúvida é, acima de tudo, a muleta que estica o tempo. Que adia a resposta empacotada e permite engrossar o caldo dos porquês. É a vacina que alivia as dores do preconceito e provoca anticorpos de cidadania. Quem sabe o rolêzinho seja um sintoma de um cardápio de novas surpresas sociais? Ou você acredita que se trata apenas de mais um bando de baderneiros que resolveu dar uma volta no shopping?

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

As faces da adoção



Talitha Isabel e Carolina Vidal* 


Andando pelas ruas do bairro Santa Maria, em Santos, chegamos ao número 675 da Rua Carlos Caldeira, poucos minutos antes das 9h. Dali, nasciam os barulhinhos efervescestes de crianças brincando. Em um sobrado de fachada simples, que qualquer pedreiro pensaria em umas dezenas de reparos a serem feitos, funciona uma das três unidades da casa Vó Benedita, que abriga cerca de 30 crianças.

A instituição, fundada em 1976 por Benedita de Oliveira, foi criada com o intuito de abrigar jovens vítimas de abusos, maus tratos ou abandonos. Hoje, com uma equipe de com 35 funcionários, entre psicólogas, assistentes sociais, atendentes de telemarketing, motoboy, motoristas, monitoras, auxiliar de cozinha e limpeza, a Casa é o lar de crianças e adolescentes, na sua maioria, com idade superior a 11 anos.

No Brasil, são 5.400 abrigos como esse. Situação que seria facilmente resolvida se o perfil de criança solicitado por 80% das quase 29.500 famílias inscritas no Cadastro Nacional de Adoção (CNA), fosse mais próximo da realidade de quem espera por um lar.

O CNA, sistema lançado em 2008, com o objetivo de agilizar os longos processos de adoção por meio do mapeamento de informações unificadas, acusa que o perfil mais procurado é de ‘menina, com menos de três anos, de pele branca, sem irmãos e sem necessidades especiais’. É o caso de uma família que está prestes a adotar um recém-nascido que mora na Casa. Eles esperam há oito anos por uma criança que se encaixa perfeitamente às características citadas.

Para adotar uma criança, após preencher uma extensa ficha cadastral, é necessário que o candidato passe por uma maratona de entrevistas com assistentes sociais e psicólogos, aguarde o parecer de juízes, que avaliam o estilo de vida e a situação financeira, o chamado processo de habilitação social. Se aprovados nessas etapas, daí começa a jornada na visita a abrigos e orfanatos em busca do filho. Em Santos, há por volta de 20 técnicos judiciais habilitados para fazer estas entrevistas. 



A assistente social da Casa, Maria Fernanda da Silva Cardoso, diz que o processo de habilitação para adotar uma criança dura por volta de seis meses. O maior problema é a distância entre o desejo de criança ideal das famílias e a realidade das que moram no abrigo. “As crianças que estão aqui, se chegaram bebês, é porque a mãe é dependente química ou moradora de rua. A saúde da criança já está comprometida devido às condições da mãe durante a gestação. Quem é um pouco maior, sempre tem pelo menos um irmão”.

A história descrita no filme Juno (Fox, 2007), onde uma menina de 16 anos, de classe média, tem uma gravidez indesejada e entrega seu filho para adoção, pois se sente despreparada para a maternidade vai contra o cenário relatado por Alethea da Costa Silva, secretária da diretoria da Casa Vó Benedita.

Além dos traumas psicológicos, muitos chegam com a saúde física comprometida, e com a dúvida se a voltarão para a família biológica ou serão encaminhados para outra.

A decisão sobre o futuro dos menores fica por contas dos juízes das Varas de Família. Quando recebem uma denúncia de algum menor em situação de risco, os magistrados suspendem o poder familiar, ou seja, a guarda da criança passa provisoriamente para um membro da família extensiva (avós, tios, primos, irmãos, etc) ou na falta de um parente próximo com condições de manter esta criança (ou crianças, o que é recorrente), a guarda é passada para uma instituição.

Atualmente, em Santos, há em torno de 75 pretendentes a adotar alguma criança, e somente 30 crianças para adoção, sendo que a maioria das crianças está acima dos 11 anos.

O dia-a-dia de quem mora em um abrigo

Pontualmente às 9h30, chega à instituição uma senhora beijoqueira. Por cada criança que passa distribui um beijo, um abraço e um bom dia com um sorriso. Elizabeth Rovai de França, conhecida por todos como ‘Tia Beth’, é a diretora da Casa Vó Benedita e passa o dia dividindo o tempo entre as unidades da instituição. É ela quem ‘segura as pontas’ para administrar o modesto orçamento em torno de R$ 20 mil disponibilizados pela Prefeitura de Santos e complementado por doações.

A instituição ainda conta com ajuda de alguns projetos das Prefeituras da Baixada Santista, grupos de apoio à adoção e ONG’s que também servem de suporte no atendimento, como ‘Projeto Tô Ligado’, Dentistas do Bem, Padrinho Nota 10, Maternizar, CVC, entre outros.



Tratando todos como filhos, Tia Beth faz o possível para que o cotidiano das crianças seja o mais próximo da vida diária de qualquer outra criança. “Todos vão à escola, fazem lição de casa, mexem no computador, brincam, conversam, saem para passear. Quanto aos mais velhos, a instituição sempre busca capacitá-los para o mercado de trabalho, pois assim eles têm maior chance de se dar bem na vida quando chegar a hora de ir”.

Além do cadastro no CIEE (Centro de Integração Empresa-Escola), uma das unidades da Casa é dedicada ao Programa Jovem Aprendiz Petrobrás, que proporciona aos jovens a partir de 14 anos cursos profissionalizantes, palestras e preparação para estágios. Infelizmente, nem todos que vivem na instituição e estão na idade de participar deste programa são elegíveis, pois boa parte está com o calendário escolar bastante atrasado.

A relação entre salário e futuro é discutida antes dos jovens começarem a trabalhar. De acordo com o perfil de cada adolescente, as assistentes sociais e psicólogas preparam cada um para administrar o dinheiro, aconselham e ajudam a economizar. Normalmente, do salário que o adolescente ganha, a casa coloca, em média, a metade em uma poupança. O resto é entregue nas mãos do adolescente.

Além disso, a casa proporciona às crianças e aos adolescentes vários passeios, chamados por eles de ‘Dia Especial’. Vão ao cinema, fazem o dia da pizza ou qualquer atividade para entretenimento. Esses dias só são possíveis graças à ajuda de voluntários ou de instituições públicas ou privadas.

Quando a adoção não dá certo

Érica é um dos adolescentes que moram na instituição. No tempo livre, ela gosta dançar, encontrar com as amigas, e como toda adolescente fica ‘grudada’ no smartphone. Acima de tudo, a atividade favorita é ouvir música, coisa que não parou de fazer nem ao ser entrevistada. Sua paixão pelo funk fez com que a Tia Beth assistisse, junto a ela e outras adolescentes da Casa, ao show do Mr. Catra.

Aos 17 anos, já passou por três tentativas frustradas de adoção, sendo uma delas com membros da família biológica (pai e tia). Érica tem uma irmã, Evelin, de 12 anos, e chegou ao abrigo aos nove. Com dificuldades na escola, ela acaba de terminar o ensino fundamental pelo Ensino de Jovens e Adultos (EJA) e, este ano, começa o primeiro ano do ensino médio paralelo ao curso técnico em enfermagem no SENAC, os primeiros passos para a realização do sonho de estudar Medicina e se especializar em Pediatria.

Apesar da tentativa de reintegração com a família não ter tido sucesso, a adolescente continua muito apegada ao pai. “Ligo para ele toda semana. Ele vem me visitar toda quarta-feira, quando não dá, eu peço autorização e vou até à casa dele.” Sobre a vida após ter que deixar o abrigo, Érica deseja morar numa casa próxima à instituição e ao pai.



Quando a adoção dá certo

Silene Trindade, bancária, 32 anos e Alexandre Barros, empresário, 36 anos, estão casados há apenas cinco anos. Após várias tentativas de engravidar, tratamentos e inseminações que resultaram em cinco abortos nos últimos três anos, Silene se rendeu ao desejo que compartilhava com o marido de adotar uma criança.

O casal já era envolvido com trabalhos sociais em sua igreja e, por um amigo, conheceu a Casa Vó Benedita, onde há um ano é voluntário. Nesse tempo, Silene e Alexandre abriram ficha no Cadastro Nacional de Adoção e começaram a participar dos encontros do Grupo de Apoio à Adoção, todas as primeiras quintas-feiras de cada mês, no Educandário Anália Franco.

Depois de algumas visitas à Casa da Vó Benedita, o casal conheceu Ezequiel, de 12 anos, garoto carinhoso, simpático e meigo. Ele possui dois irmãos, um mais velho e um mais novo, do qual sente bastante falta, pois o caçula foi adotado e a família não quer manter contato com os irmãos, pelo menos por enquanto. Após alguns momentos conversando com o garoto, Silene já havia se decidido que ele era especial, e então o casal decidiu adotá-lo.

Há três meses, Ezequiel possui uma nova família, e ainda faz questão de voltar quase todos os dias à instituição para visitar as tias, os antigos companheiros de casa e o irmão mais velho. Este ano, Ezequiel irá não só viver em uma casa nova, com uma nova família, mas também irá para uma escola particular e para uma escolinha de futebol diferente.

Mesmo com todas as mudanças na vida do filho, o casal não quer que ele perca o contato com os irmãos. Por isso, Alexandre e sua esposa tentam convencer a família que adotou o mais novo a permitir que eles se encontrem.

O casal está surpreso com a aceitação e apoio dos parentes e amigos. O menino é parecido com Alexandre e possui sardas no rosto como Silene. Mesmo com pouco tempo de convivência, essa nova família espera a guarda definitiva, para que Ezequiel se torne filho deles no papel, pois no coração isso aconteceu há muito tempo.

* Esta é a quarta reportagem da série "Os Indesejados", projeto produzido por estudantes de Jornalismo da Universidade Católica de Santos (UNISANTOS). 


sábado, 11 de janeiro de 2014

A descoberta do Maranhão

O único endereço da barbárie?

O Brasil descobriu o Maranhão. Encenou surpresa, dentro de seus próprios domínios, ao localizar um endereço onde imperam o coronelismo, o nepotismo, a corrupção, a pobreza, os baixos indicadores sociais e a violência. Os vídeos que circulam com as decapitações de presos foram a cereja do bolo, recheado com expressões de horror, sangue e reações diante da “novidade”.

O Maranhão é somente a bola da vez, que dava sinais de fazer parte do jogo desde 2009. Um relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apontava, naquele ano, a superlotação dos presídios e que um em cada cinco detentos estava encarcerado de maneira irregular.

Em 2010, uma rebelião na penitenciária de São Luis durou 30 horas e teve 18 mortes como saldo. Em fevereiro do ano seguinte, seis presos foram decapitados na delegacia de Pinheiro, no interior do Estado. As cabeças foram penduradas em grades.

Qual é a diferença entre a matança no Maranhão e as cenas de barbárie que aconteceram em Goiás ou em São Paulo em anos anteriores? Ou nos acreditamos que no sul maravilha as cadeias são suecas ou holandesas? Nestes lugares, presídios foram fechados por falta de gente. Medidas socioeducativas funcionam.

Em Porto Alegre, um presídio com capacidade para 1900 presos abriga mais de cinco mil. Em São Paulo, fingimos apagar as dezenas de mortes em 2006 ou em 2012 nos conflitos com o PCC? Enterramos nossas lembranças junto com os 111 presos mortos no Carandiru?

É revoltante ver, no noticiário, representantes de instituições de todos os poderes sentados em volta da rainha Roseana. A rainha que declarou que 39 mortes até setembro “estavam dentro do limite que se esperava.” Todos, de promotores a juízes, de deputados à governadora, sabiam sobre a matança. E se calaram.

De cada dez presos mortos em 2013, três estavam no Maranhão, que possui somente 1% do número de detentos do Brasil. Os amigos de Roseana se calaram diante de estupros de familiares, de visitas íntimas em ambientes coletivos, de assassinatos. Apenas se mexeram depois que crianças foram queimadas e a chacina invadiu o noticiário internacional.

Da mesa das autoridades, saíram as soluções patéticas do óbvio, assim como as justificativas cujos autores merecem testes de bafômetro. A governadora explicou que “o Maranhão ficou rico.” Por isso, a violência cresceu. Qualquer indicador social a desmente, nem precisava dizer.

Transferir os líderes para prisões federais? São Paulo o fez há cerca de 10 anos, quando o Governo local ainda negava a existência do PCC. As lideranças semearam a metodologia do grupo em outros endereços. No Maranhão, por exemplo, existe uma franquia. O nome é Primeiro Comando do Maranhão (PCM), que possui – assim como a matriz – estatuto, método de cobrança e filiação e níveis implacáveis de punições.

Outra medida anunciada, uma obrigação, na verdade, é regularizar a situação jurídica dos detentos. Qualquer leigo conhece o problema. Os promotores, procuradores, juízes e desembargadores locais se fingiram de mortos, enquanto gente morria aos montes nas masmorras.

Mutirões midiáticos não resolvem a questão. Enquanto isso, sugestões como um ano de estágio obrigatório para estudantes de direito em penitenciárias, visando amenizar o caos jurídico, são ignoradas. E olha que estas ideias vêm de ministros do STF. Cerca de 100 mil presos, estima o CNJ, não deveriam estar encarcerados. Eles não caberiam no novo Maracanã.

Quando envia forças federais para o Maranhão, o Ministério de Justiça joga para a torcida. Como o curral pertence aos Sarneys, o governo Dilma faz o mínimo e privilegia o silêncio. Faz o cálculo político para não arranhar o PMDB nem o coronel ex-presidente em ano eleitoral.

Recusei-me a assistir aos vídeos com as decapitações. Morbidez demais. Bastaram-me as fotos. Os vídeos não me trariam nada novo, além de cultivar o horror instantâneo das imagens. Imagens redundantes diante de um tumor que se espalhou pelo país inteiro. Doença que é tratada com aspirina e remedinho para febre, com olhares de falsa indignação para as câmeras.

Na Baixada Santista, região onde moro, os presídios também estão superlotados. O que o Governo local anuncia como publicidade? Mais obras. Não dialoga com outras instâncias e empurra o problema, com a anuência de parte do eleitorado, para trás dos muros de cinco metros de altura.

Construir presídio e exterminar bandidos traz votos. Sempre trouxe. A limpeza social, ainda que não assumida como tal, agrada a todas as classes, inclusive as que são marginalizadas.

Não é difícil entender os próximos passos, tamanha a repetição de episódios. Os presos serão transferidos. As mortes reduzem temporariamente. O horror se esvai nas ações estratégicas, como dizem os amigos de Roseana. Obras serão anunciadas pelo mesmo Governo que suspendeu a construção de dois presídios no ano passado. E se mantém a média de nove em cada dez homicídios não investigados no país.

O Brasil seguirá como o quarto país em número de presos. São 550 mil pessoas, 40% no Estado de São Paulo. O país só perde para Estados Unidos, China e Rússia.

O sul maravilha ficará mais tranquilo ao saber que o Maranhão ainda está longe daqui. Isso é coisa da terra sem lei, dos coronéis. Até a próxima descoberta territorial, até as próximas cabeças que irão rolar, literalmente.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Lar doce lar


Bruno Almeida e Daniela Fiscarelli*

Alessandra Silva Novais aguentou por anos a violência vinda de pessoas diferentes. “Eu não queria que minhas irmãs passassem o que passei”, conta Alessandra, que nasceu em Mucugê, no interior da Bahia. Mais velha de seis irmãos, ela ajudava mãe em casa. Sempre gostou de estudar para poder ter uma vida melhor.

Acostumada com dificuldades no trabalho, Alessandra diz que era comum ter de “ir buscar água no rio porque em casa não tinha”. Uma tia a convidou para ir morar em Praia Grande e trabalhar como empregada doméstica. Alessandra aceitou, para poder mandar dinheiro para a mãe.

Como não havia mais vagas nas escolas públicas, ela entrou numa particular e teve de pagar com o próprio dinheiro. Sentia diferença na qualidade do ensino da escola daqui com as das cidades baianas onde morou. Passava horas da madrugada estudando para poder acompanhar os outros alunos.

Alessandra estudava da madrugada porque a patroa a obrigava a trabalhar sete dias da semana, sem folga. E ainda tinha de aguentar fofoca das outras empregadas, que a invejavam por conseguir pagar a escola com o próprio salário. “A raiva das pessoas era de ver que eu queria crescer”, diz.

Limpar 16 banheiros - Mesmo fazendo tudo certo, Alessandra foi demitida num domingo quando, depois de limpar os 16 banheiros da casa, tomou um remédio para uma cólica insuportável e precisou se deitar. “Aguentei aquilo por dois anos. Um dia ela [a patroa] me demitiu e disse para eu voltar para minha terra”.


Depois deste emprego, Alessandra trabalhou em mais quatro lugares. Numa loja de móveis, foi humilhada novamente pelo chefe, que era parente dela. O chefe a chamava de burra porque não sabia mentir para os clientes. “As pessoas achavam que eu era incapaz só pela maneira que a voz sai, pelo meu sotaque”.

Em outro emprego mais recente, o supervisor - que, segundo ela, tinha histórico de agressão e humilhação - jogou uma pasta em seu rosto porque não havia gostado de um serviço. Ao responder porque não fez denúncia de nenhum destes casos, Alessandra diz que tinha medo de não conseguir continuar a mandar dinheiro para a mãe e para os irmãos.

“Aprendi muito com as dificuldades e poupo muito. Hoje, posso comprar e comer o que quero, amo viajar e principalmente ajudar as pessoas. Foi até bom passar por algumas situações, valorizo mais as coisas hoje”.

Quando veio para a Baixada Santista para trabalhar e estudar, Alessandra tinha 17 anos. Hoje, com 38, é pós-graduada em Finanças e Contabilidade. Trabalha como analista contábil e viaja sempre que pode. “As palavras ficam marcadas na gente”.

Mais de 1200 casos - Santos registrou, só no ano de 2012, 1207 mulheres sofreram algum tipo de agressão. São quase quatro casos por dia. Os índices sempre são maiores. Muitas mulheres, como Alessandra, não denunciam os agressores, ainda mais quando se trata de violência psicológica.

No mesmo período, houve também 94 estupros, seis tentativas de homicídio e um assassinato. A cautela necessária no tratamento da mulher agredida exige atenção específica para cada caso, já que a situação é sempre delicada.

Aumenta-se ainda mais a atenção se houver perigo do agressor voltar a praticar violência. “Há pouco tempo veio uma mulher aqui denunciar o ex-marido pela segunda vez. Ele não se conformava com a separação, então invadiu a casa dela, pegou tudo que podia e o que não podia ele quebrou. Além disso, ele deixou o gás aberto para quando ela ligasse algo na casa, explodisse”, conta a recepcionista da delegacia da mulher de Santos, Josette Iauatha.

O agressor foi preso, mas a família pagou a fiança e logo ele foi solto. O ex-marido foi atrás da ex-mulher novamente, ficou esperando-a na esquina de casa e a agrediu. “Em casos assim, nós levamos a vítima para o abrigo especial, que só nós sabemos onde fica”, explicou Josette. Para ter direito ao abrigo, a vítima tem de fazer a denúncia na Delegacia da Mulher.



Cultura do Machismo - “Os passos que as mulheres têm de seguir após sofrerem agressão não são muito bem explicados”, diz a advogada e coordenadora jurídica da Central de Atendimento à Mulher de Santos, Inês Maria Toss. Segundo ela, falta comunicação entre as áreas que cuidam da prevenção e do combate à violência contra as mulheres. Para Inês, esta violência resulta de fatores culturais que alimentavam o machismo. Apesar de a sociedade ter sofrido mudanças, ainda é cultivado um pensamento que explora e inferioriza o gênero feminino.

Sobre esta cultura machista, ela cita uma interpretação comum, simplista e machista do livro “Dom Casmurro”, de Machado se Assis: Bentinho, mesmo levando Capitu à morte pela violência psicológica que praticava, é perdoado, porque há a possibilidade de ter sido traído. Assim, “a mulher é tida como culpada por tudo, inclusive por morrer”.

Comercial de margarina - Segundo Inês, ao contrário do que se pensa normalmente, “a violência doméstica e familiar acontece em qualquer setor social. Não há características comuns a todos os casos”. Ela diz ainda que o “lar doce lar ou a família de comercial de margarina nunca existiram”, e que dentro da casa muitos homens se sentem livres para agredir a mulher física ou psicologicamente, sem que isto resulte em denúncias de terceiros, familiares ou autoridades.

No Brasil, em 2006, foi criada a lei Maria da Penha, que, de acordo com a advogada, “tenta atender a mulher na proteção da sua dignidade humana, no seu direito de conviver harmoniosamente e com direitos básicos, sem sofrer violência física e psicológica, sem ofender sua saúde”.

Inês diz que é preciso mudar a estrutura do tratamento, da reabilitação, e incluir nele os agressores, para prevenir a perpetuação da violência. “Os movimentos sociais hoje começam a pedir abrigo para os agressores que não vão presos. E lá eles recebem atendimento para contextualizar cada caso”.

* Este é o terceiro texto da série "Os Indesejados", projeto produzido por estudantes de Jornalismo da Universidade Católica de Santos (UNISANTOS).