domingo, 22 de março de 2015

Os encoxadores




Uma amiga tentava voltar para Santos num final de tarde de muita chuva. Ela estava em São Paulo e entrou no metrô, na Estação Barra Funda. Como sabemos, os temporais desta época do ano provocam congestionamentos, entopem as estações, praticamente paralisam a metrópole.

Ela levou cerca de meia hora para entrar em um dos vagões, lotado como caminhão de gado rumo ao abatedouro. Quando conseguiu se segurar em uma das barras, viu-se cercada por três homens. Do sujeito em frente, protegeu-se com a bolsa. Do homem à esquerda, usou o braço para manter distância mínima. O problema foi o terceiro – e justamente esse era o mal intencionado -, que estava atrás, perto de uma das portas.

O sujeito nitidamente se encostava nela e tentava acompanhar de forma sincronizada os movimentos do trem. Prefiro poupar o leitor dos detalhes sórdidos, mas não havia como ela fugir do encoxador. A única chance foi sair na estação seguinte, contando a ajuda de outra mulher que gritava e pedia passagem.

Segundo a própria empresa que administra os trens, é possível identificar até 30 encoxadores por dia. Eles se vestem de bermuda de tactel, blusas de mangas compridas, muitas vezes não usam cuecas e andam com um agasalho na frente.

A situação não é prerrogativa do metrô de São Paulo. Isso acontece em trens cariocas e em ônibus aqui, em Santos. Por conta disso, a Prefeitura lançou a campanha “Mantenha distância, não abuse” para tentar diminuir o comportamento libidinoso no transporte coletivo. Há, inclusive, um telefone para denúncias: 180.

A diferença é que, na principal cidade da Baixada Santista, não há um perfil-padrão dos covardes. Muitos deles, segundo uma amiga-passageira que já foi vítima dos tarados, são “velhos de pau mole”. Com o perdão dos adjetivos, o problema alcança todas as faixas etárias a partir da adolescência, tanto para agressores como para vítimas.

É óbvio que os encoxadores não têm idade específica ou comportamento. São oportunistas sem vergonha, dispostos a esfregar as coxas ou até os braços e joelhos, com a cara de surpresa quando recebem uma reação agressiva – e justa – das vítimas.

O comportamento dentro dos ônibus representa uma derivação não apenas criminosa, mas também perversa que se tem das mulheres. Muitos homens se julgam no direito de compreendê-las como objetos de uso sexual, porém não tem a coragem de assumir que as enxergam desta forma. Escondem-se justamente na multidão de um ônibus lotado. 



Tais sujeitos, quando resolvem encoxar uma mulher dentro do transporte coletivo, reproduzem a visão recorrente de que a mulher existe como elemento de propriedade masculina, nascidas para servir, vivas para saciar o apetite dos senhores. No entanto, falta-lhes a virilidade de enfrentar – como homens – as consequências de seus atos. Tentam tomar o lugar da vítima quando descobertos. Elas que provocaram, juram.

A campanha tem que ser levada a sério. Mais do que ser denunciados, os encoxadores devem responder criminalmente por abuso sexual, atos libidinosos ou variações jurídicas semelhantes. Precisamos colocar nos holofotes do debate público, inclusive, aqueles que defendem que mulheres estão ali para serem encoxadas, como se as vítimas pedissem por sexo pelas roupas que vestem.

Mulheres não são cabides para covardes se pendurarem. Eles desconhecem a primeira lição: para tratar uma mulher com o respeito e a igualdade que ela merece, é preciso ser Homem!

quarta-feira, 18 de março de 2015

15 de março - um dia para se lembrar (embora fosse muito melhor esquecer)

Fotos: Matheus José Maria

Matheus José Maria*

Certos dias, você já sabe como serão só pela forma que eles começam.

Saindo de Santos para realizar a cobertura do protesto contra a presidente Dilma Rousseff, conheci – no carro - um garoto que seguia para o mesmo lugar, mas com o propósito de protestar. Não vou discordar do direito dele fazer isso – algo incontestável -, mas em dado momento da conversa, ele diz:

— Vamos tirar a Dilma e, se o Maluf se candidatar eu voto nele, porque ele rouba, mas pelo menos faz.

Talvez isso diga muito sobre o povo brasileiro e seus costumes... Que o Maluf não se candidate novamente.

Quando chego em São Paulo, a Rodoviária do Jabaquara já está tomada por gritos, apitos e camisas da CBF (nem durante a copa vi tantos “torcedores” juntos) que se dirigiam ao metrô.

Entro com dificuldade no vagão lotado e, dentro dele, os gritos de “Dilma, filha da puta, vai tomar no cú” se fazem ouvir em alto e bom som.

Desço na Estação Praça da Árvore para encontrar outro amigo e também fotojornalista, o Gabriel Chaim. Entre o momento em que desci e ele chegou, passaram três outras composições até que entramos em outro vagão, mas com o mesmo recheio.

Crianças carregadas pelos pais, idosos com os rostos pintados e usando todo o vocabulário adquirido ao longo de suas vidas e garotas desfilando a última moda em questão de protestos (uma camiseta coberta de lantejoulas que formavam a bandeira do Brasil). 

Manifestantes na Avenida Paulista, em São Paulo

Quando chegamos à Estação Paraíso, onde descemos para trocar de metrô e seguir em direção à Avenida Paulista, eis que escuto a frase de um senhor de cabelos brancos:

— Hoje não deviam cobrar o metrô. Deveria ser catraca livre!

Isso me fez pensar de imediato nos protestos contra os 50 centavos, quando os manifestantes foram recriminados exatamente por pedir a mesma coisa.

A Avenida Paulista estava completamente tomada. Se locomover era extremamente difícil e, com um pouco de esforço, consegui subir em um trio-elétrico para ter uma visão melhor da extensão do protesto. Era um mar nas cores verde e amarelo. Que tipo de associação fizeram essas pessoas, para destacar seu patriotismo, ao usar a camisa da seleção brasileira, ligada à CBF, ícone da corrupção nacional?

Em cima do trio elétrico, encontro outro fotojornalista famoso, que escreve uma coluna em um grande jornal de São Paulo. Ele sorria satisfeito e me disse:

— Que lindo isso.

Ao lado, duas pessoas vestidas com roupas de presidiário e máscaras do Lula e da Dilma montaram uma grade de madeira e simulavam a prisão dos dois. Desci do trio e segui pelo meio da multidão.

Várias mãos carregando latas de cerveja. Corpos sarados desfilando sem camisa exibindo a última tatuagem feita. Rostos maquiados e cabelos bem cuidados. Abercombrie, La Coste, D&G, Apple e outras marcas. Selfies em todos os lugares, poodles e outras raças de pequeno porte no colo.

Estou dizendo que todos eram assim? Não, não estou. Seria uma leviandade achar que posso generalizar um movimento com tantas pessoas, mas me atrevo a dizer que era uma grande parte, senão a maioria.

Reproduzo algumas frases que ouvi:

— O que falta para tomarmos uma atitude? Esperar que vaze um vídeo de sexo com crianças? Não, isso não vai aparecer então temos que agir – (Um manifestante do alto do trio-elétrico falando sobre a necessidade de agir contra o PT)

(som de aplausos conforme policiais da tropa de choque passavam e eram saudados com continências por alguns manifestantes) — Isso é um exemplo de protesto direito, feito de forma ordeira e pacífica. (Resposta de um policial quando perguntei o que ele achava disso).

— Tira essa mochila vermelha, tá querendo apanhar, comunista? (Manifestante nitidamente alcoolizado, que segurava uma lata de cerveja nas mãos e gritava para uma pessoa que passou por ele, sem camisa, mas com uma mochila nas cores vermelha e preta).

— Fiz uma aposta com um amigo e disse que não acreditava que fosse ter tanta gente assim no protesto. Perdi com prazer e agora devo a ele um jantar em Punta del Este. (Manifestante falando ao microfone, em cima de um trio-elétrico)

— A Dilma, com certeza, cortou o 3G para não deixar falar dela. (Manifestante irritado por não conseguir conectar o celular)

Continuando a circular, encontro com um grupo de adolescentes segurando um cartaz que agradecia ao exército pelo golpe de 1964 e, por isso, ter livrado o Brasil da ameaça comunista. Mais à frente, uma bagunça em uma esquina e me aproximando vejo Danilo Gentilli, fazendo a festa dos fãs com fotos, selfies, beijos e abraços.

Que fique claro, mais uma vez, que isso foi o que eu vi e não uma generalização impossível de se fazer dado o número de pessoas que lá estavam.

Encontramos com outro colega fotojornalista, Wesley Passos, que, junto de nós, seguiu até a rua da Consolação. Nela, ouviam-se as buzinas de diversos caminhões que aderiram ao protesto.

Representantes de movimento social, na rua da Consolação
Descendo pela rua, vi o que, para mim, foi a cena mais bizarra, triste e revoltante de todo o ato. Em uma ocupação localizada na Consolação, um grupo de moradores fixou uma faixa com os dizeres: Que os ricos paguem pela crise. Total apoio à greve dos (as) professores (as). Nenhuma menção ao PT, à presidente Dilma, à Petrobrás, nenhuma declaração de apoio aos monstros que estavam sendo caçados pela população ali presente.

Isso bastou para que ofensas tais como vagabundos, petistas, miseráveis, bandidos, pobres, filhos do bolsa miséria, filhos da puta fossem dirigidas a eles. No grupo que ali parou, havia idosos, jovens, mulheres e skinheads. Uma das manifestantes gritou que eles gostavam de mamar nas tetas do governo, mostrou um dos seios e pediu para que, então, mamasse ali. Um dos skinheads socou a porta de aço da casa e desafiou os fotógrafos a registrar a imagem. 

O protesto contra quem também protestava
Enquanto isso, eu, Chaim e Wesley, junto de mais outro fotógrafo e dois jovens que ali estavam, nos posicionamos na porta da casa de modo a evitar uma possível tentativa de invasão. Alguns manifestantes chegavam perto e gritavam outras ofensas e os desafiavam a sair lá de dentro e encará-los.

Por quê? A luta pela moradia e o apoio aos professores é um crime tão grande que justifica essa ação tão cheia de ódio?

Parecia que o grupo de pessoas havia se tornado um touro furioso, que investia contra quem tivesse a ousadia de colocar uma bandeira vermelha na janela do apartamento. De imediato, pensei em um touro correndo atrás da bandeira, pronto a atacar sem saber por que fazia 
isso.

Manifestantes ameaçam invadir imóvel 

— Pula, pula, pula!!!, era o que eles gritavam. Uma divergência política foi o suficiente para desejar a morte a um completo desconhecido. 

Essa parte do protesto seguiu e se encerrou na Praça da República, onde pessoas estenderam faixas azuis, verdes e amarelas pela avenida.

Gostaria de deixar claro que esse é um relato completamente pessoal, baseado no que eu vi e destacando as coisas que mais me chocaram no ato deste domingo 15 de março. Foi um protesto pacífico? Sim, até onde eu sei não houve incidentes envolvendo violência física ou depredação. 

Fim de protesto na rua da Consolação
Mesmo sendo nitidamente um protesto composto por uma parcela mais abastada da sociedade, não questiono em momento algum o direito deles irem às ruas e defendo a liberdade deles se manifestarem, mas é preciso que se preste atenção na ausência de uma consciência política embasada, do ódio cego e seletivo – afinal, o cartel do metrô está aí. Ops, não tá mais, foi arquivado – dirigido à apenas uma pessoa, partido, cor ou extrato social.

Se eu concordo com as reivindicações? Não com as que eu vi ali, mas concordo com a necessidade de ser feita Justiça ou, pelo menos, se fazer valer a Justiça no país, de forma igualitária.

* Matheus José Maria é fotojornalista. 

sábado, 14 de março de 2015

Cidades (quase) paradas


Foto: Luiz Torres - Diário do Litoral

Vamos a três episódios cotidianos, caro leitor. 1) Na última quinta-feira, por causa da chuva, tive que trabalhar de ônibus. Peguei a linha 5, que passa pelo canal 5, vai até o Gonzaga, depois entra no canal 3. Levei 50 minutos para chegar ao trabalho, um trecho de cinco quilômetros. De bicicleta, levo menos da metade do tempo, ainda que parte do caminho não tenha ciclovia. 

Um agravante: o congestionamento tomava as duas pistas da avenida Washington Luiz, entre a Avenida Francisco Glicério e a orla da praia. No segundo semestre do ano passado, a CET se envolveu em polêmica com moradores e comerciantes porque decidiu suspender o estacionamento em parte do canal 3. Medida paliativa para um doente crônico.

2) Na última quarta-feira, fui a São Vicente no final da tarde. Em 30 minutos, sai do Boqueirão, em Santos, e cheguei ao centro da cidade vizinha. Passei mais 45 minutos para cruzar seis quadras no Centro de São Vicente.

3) Recentemente, estava com minha mulher Beth no ponto de ônibus, esquina da rua Carlos Gomes com canal 1, no Marapé. Ambos tínhamos compromisso no bairro do Boqueirão. Por conta do congestionamento no curvão, preferi ir à pé. Cheguei em 50 minutos. Ela esperou pelo ônibus. A viagem durou uma hora e meia.

Não importa o endereço, as principais vias de Santos e São Vicente sofrem com os congestionamentos diariamente. Não é à toa que, de dois anos para cá, emissoras de rádio passaram a informar com regularidade sobre tráfego pesado, onde evitá-lo, alternativas e outras informações antes particulares de São Paulo.

Nos últimos anos, as Prefeituras, através de seus departamentos de trânsito ou empresas como CET, optaram por ações isoladas, sem compreender o problema de trânsito e transporte como metropolitano. E sem avaliar a ineficácia do modelo carro como ator principal. Projetos enterrados como o patético mutirão da carona. Ou atos como reduzir áreas de estacionamento, o que – em diversas circunstâncias – fazem com que os automóveis rodem mais tempo para procurar uma vaga.

Quando não dão aspirinas para um doente terminal, as Prefeituras fazem Carnaval com projetos megalomaníacos. O filho mais corado é o VLT, projeto que começou metropolitano, hoje é um objeto de decoração em São Vicente e uma pista de corrida em Santos. Nem o traçado foi definido. Alguém acredita que a obra estará pronta no prazo da propaganda?

Se há ciclovias se espalhando pelas cidades da Ilha de São Vicente, as administrações não mexem com o monopólio do transporte coletivo. E pior: como o transporte intermunicipal é de responsabilidade do Governo do Estado, ambas fazem silêncio sobre o problema.

Vamos assistir – paralisados – à vida dentro de um carro ou dentro de ônibus? Vamos aceitar que congestionamentos são o preço da ilusão-progresso? Onde está a cidade que se apoia em pesquisas de marketing para afirmar que é a primeira do país em qualidade de vida?


terça-feira, 10 de março de 2015

A pesca e o poeta


A paixão do diretor-técnico do Instituto de Pesca de Santos, Roberto da Graça Lopes, pelo mar rompe as paredes dos laboratórios científicos. É uma relação de amor que ele expressa melhor pelo lirismo, por vezes esculpido em haikais, técnica nascida no século XIII no outro lado do mundo.

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São escritos do passado

Duros

Difíceis

Que o paleontólogo lê



Nos ensinam

Como era o peixe

O dinossauro

O mundo pré-histórico



A morte

O soterramento

A conservação

A viagem no tempo



Fósseis testemunhas

Que o acaso conservou

Vidas pétreas

Querendo a eternidade



Vitoriosas testemunhas

A mostrar ao Homem

Que na imensa esteira da vida

Cada espécie é breve momento


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O pesquisador Roberto da Graça Lopes - Foto: Marcos Piffer
A poesia acima se chama Fósseis e foi a maneira encontrada pelo pesquisador Roberto da Graça Lopes, de 62 anos, para explicar biologia aos filhos, quando estavam no Ensino Fundamental, nos anos 90. Ele a chama, aliás, de Poesia Biológica. Mas o pesquisador e atual diretor-técnico do Instituto de Pesca de Santos só percebeu que havia uma relação de amor entre meio ambiente e poesia na década seguinte, quando conheceu o Haikai, forma poética japonesa de três linhas. Pelo formato, a primeira e terceira linhas devem ter cinco sílabas. Na segunda linha, sete sílabas.

Formado em Medicina Veterinária pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro há 39 anos, ele comanda 69 pesquisadores no instituto, com unidades em Cananéia, Santos e Ubatuba, desde maio de 2013. São biólogos, agrônomos, zootecnistas, veterinários, oceanógrafos, ecólogos e engenheiros de pesca.

É a segunda vez que Roberto exerce o cargo. A primeira foi entre 1989 e 2004, quando saiu para fazer o doutorado em Ictiologia na Unesp, em Rio Claro. Estudou a pesca do camarão sete barbas e a fauna que o acompanha, por meio da produção e biologia da espécie. “O camarão sete barbas é um dos recursos pesqueiros mais exportados do Estado de São Paulo. A captura precisa ser disciplinada.”

Muitas destas recomendações não são novas. Os alertas sobre os riscos de poluição por mau gerenciamento pesqueiro vêm sendo feitos pelo pesquisador há mais de 15 anos em artigos científicos.

Escrever artigos e apostar na difusão da Ciência é uma das atividades que mais o agradam em 37 anos de instituto. “Não me interessava por pesca. Sempre tive interesse por pesquisa. Gosto de ler dados, pensar no que pode ser e descrever com clareza.”

A ciência o aproximou da elevada consciência ambiental. Para ele, pesca é ciência e, acima de tudo, um instrumento de cidadania. “Não pesco e não gosto.”

Roberto nasceu no Marapé, bairro tradicional de Santos, e sempre morou na mesma casa, na rua Saturnino de Brito. “Vim do hospital para aquela casa. Só sai quatro anos para estudar fora.” Ele vive com Roseane, com quem se casou há 35 anos, e o filho Raphael, arquiteto. Possui também duas filhas: Roberta, dentista, e Rachel, que trabalha no ramo de Hotelaria, em Vancouver, no Canadá. Não a vê há nove meses. “Só tenho um celular a mais por causa dela.”

Em conversa com a Revista Guaiaó, Roberto da Graça Lopes fala da situação atual do setor pesqueiro, dos impactos provocados pelo Porto de Santos sobre o ambiente marinho, de aquicultura, da gastronomia e da vida caiçara. O pesquisador também traduz, em voz eloquente, seu amor pelo Museu de Pesca e pela poesia japonesa.

Guaiaó - A produção pesqueira do litoral de São Paulo, nos últimos anos, oscila entre 22 mil e 26 mil toneladas por ano. Chegou a 131 mil toneladas em 1985. É possível falar em estabilidade de produção? É o que você chama de pressão suportável?

Roberto da Graça Lopes - Os números gerais demonstram que, na verdade, não temos condições de ampliar mais a produção. Temos que nos contentar com o que o mar pode nos dar. O mar não responde na porrada. Se exagerarmos na quantidade, o mar nos responde com menos. Então, é o momento de parar para pensar. Como os números são gerais, há flutuações por espécie. E há flutuações influenciadas por mercado. Uma espécie pode deixar de ser rentável, pode oferecer menos biomassa (quantidade total de matéria viva, vegetal ou animal, em um ecossistema). Vários fatores interferem na produção. A estabilidade representa, na verdade, que o esforço de pesca não vai receber maior quantidade de biomassa.

Guaiaó - A estabilidade da produção se refere mais à quantidade de biomassa do que à eficiência tecnológica?

Roberto da Graça Lopes - Entendo que, para poucas espécies, poderia aumentar a produção por mudanças tecnológicas. Alguns pequenos peixes, capturados pela frota de sardinha. Não há muitos recursos para mudar a condição atual. Mas estamos explorando hoje o que os recursos da natureza podem nos oferecer.

Guaiaó - Mas não há pressões da indústria pesqueira para estender os limites da produção?

Roberto da Graça Lopes - Há pressões sim. Os produtores, de uma forma geral, sempre reagem mal quanto às regras para a gestão pesqueira. Vão atrás de subsídios para a atividade. Entendem a necessidade de aumento da frota. Cada um vê a coisa de forma setorizada, segundo a própria ótica e objetivos pontuais. O recurso pesqueiro é da sociedade brasileira. Toda a biomassa que existe na costa brasileira pertence à comunidade de cidadãos do Brasil. O Governo dá uma concessão àqueles que vão pescar e trazem uma parte do alimento. O Governo oferece graciosamente a biomassa. E a natureza a oferece gratuitamente. O que a natureza quer em troca? Ela quer que se mantenha minimamente saudável o lugar onde cria esses animais e que os homens retirem o suficiente para que os animais remanescentes possam retomar os ciclos de reprodução. Se as condições não são atendidas, as respostas são negativas. Alguns ambientes são importantes, não só para o estoque adulto, mas também para os animais mais jovens. Ao destruir o ambiente, o homem interfere no ciclo de vida da espécie.

Guaiaó – No Estado de São Paulo, a maior produção pesqueira, pela ordem, são sardinha, camarão sete barbas, corvina e cavalinha. Quais espécies estão sob risco de sobrepesca? Onde está o desequilíbrio?

Roberto da Graça Lopes - Quase todas as espécies que tiramos do mar. Não é aconselhável mexer com ampliação da pesca. Não é imaginável investir em embarcações, colocá-las no mar e trazer porões cheios de animais. Hoje em dia, é pouco provável para as águas brasileiras, para a produção do Estado de São Paulo. O Brasil não tem águas tão ricas quanto às águas mais frias. As águas mais frias são caracterizadas por menor biodiversidade e maior biomassa de cada espécie. Nós temos maior biodiversidade e, consequentemente, menor biomassa. E a cadeia produtiva do pescado tem certas exigências. Por que não se industrializa a maior parte das espécies? Porque não há quantidade em escala industrial.

Guaiaó - Biólogos dizem que é estupidez o mercado forçar estas relações. Eles defendem que o Brasil precisa adaptar sua gastronomia às condições ambientais, e não o contrário. Você concorda?

Roberto da Graça Lopes - Exatamente. Seria muito mais sábio. Nós poderíamos aproveitar muitos nichos de forma educada, equilibrada e adequada. Variar a exploração de nichos e explorar aquilo que é possível. Precisamos discutir a viabilidade econômica. O que é viável? É a retribuição da sociedade por aquele produto. Se eu consigo tornar um produto interessante como gastronomia, haverá a retribuição da sociedade. Ou posso complementar a alimentação do mar com outros tipos de alimentos. Tem certas coisas que não são para comermos de forma exagerada. No Japão, tem um aquário na peixaria com um camarão vivo nele. O consumidor escolhe e leva para casa. O japonês prepara uma gastronomia que você se alimenta a partir dos olhos. Transforma a gastronomia em arte e se alimenta com o mínimo porque é caro e falta disponibilidade. Nós, no Brasil, exageramos. Vamos comer camarão? Manda 20 quilos porque eu quero comer sozinho um quilo. Tem camarão? Dane-se o resto.

Guaiaó - O brasileiro come muito peixe?

Roberto da Graça Lopes - Não. Existe certa folga. Mas há muito desperdício nas peixarias, por exemplo, porque não se consegue vender. O produto é muito perecível. Mas não dá para transformar numa panaceia. A alimentação brasileira não pode ser baseada em peixe. Não há suficiente para todos. Na minha opinião, a carne do pescado não é relativamente barata. Não dá para competir, por enquanto, com a carne de frango. Não dá para vender peixe a preço de banana. A carne do peixe é nobre. E o produtor precisa ter bom senso, pescar dentro de limites considerados seguros. Temos que equilibrar a oferta e a procura num nível de retribuição da sociedade mais elevado.

Guaiaó - Este desequilíbrio nas relações ajuda a entender porque, numa cidade como Santos, o pescado e os frutos do mar são tão caros nos restaurantes?

Roberto da Graça Lopes - Primeiro, a procura é por carnes mais nobres, que são mais caras por natureza. São capturados em menor quantidade. São para certos pratos. Depois, o que você vê é a transformação em iguarias. Quando isso acontece, o turista vai pagar mais caro. Agora, é no restaurante que o peixe sofre o upgrade de preço mais expressivo.

Guaiaó - Onde entra a questão ambiental neste jogo de forças (biologia, economia, política) em torno da pesca? Há preocupação ambiental entre sindicatos e empresários do setor?

Roberto da Graça Lopes - É assim: como em qualquer coisa, existem os que têm bom senso e os que não têm senso algum. No setor pesqueiro, não é diferente. Há produtores que sabem o que deve ser preservado e estabelecem limites da própria atividade. E existem os interessados em imediatismo. Não há preocupações com estabilidade para 20, 30, 50 anos. É um misto. O mercado, embora seja influenciado pela ganância pessoal, também é controlado pelas forças que têm ligação com a própria natureza. Se não há recurso suficiente, diminui a demanda por causa do preço. Se a gente obedecesse às regulações de um mercado saudável e entendesse as respostas da natureza, seria mais adequado. Subsídio é um veneno mortal. Mas não é a visão que políticos, produtores e alguns gestores têm.

Guaiaó - Por que o subsídio é veneno mortal? É fazer política com o que não existe; no caso, o peixe?

Roberto da Graça Lopes - Alguns termos precisam se decodificados para que não ocorram interpretações erradas. Se o fulano disser que vamos duplicar a produção pesqueira extrativista, eu digo: loucura! Agora, se o fulano disser que vai duplicar a produção pesqueira e investir em aquicultura, então não falo nada. Talvez se torne possível. A pesca extrativista é uma coisa. O cultivo é outra. O mercado de pesca, em parte, é atendido pelo reforço da aquicultura, que complementa a biomassa.

Guaiaó - A aquicultura é essencial para o setor da pesca? E como você vê a região neste contexto?

Roberto da Graça Lopes - Se for mantida a pressão de demanda, sim. A aquicultura é o único caminho de resposta, mas não tão imediata, porque precisamos de investimentos. Posso também tentar a gestão extrativista, mas é mais complicado porque não espero aumento acentuado de produção. Tenho que buscar o aumento de produção na aquicultura, seja de peixe, seja de camarão ou moluscos. O problema de cultivo no litoral é que provoca efeitos no próprio mar. As terras de litoral são muito caras para imaginar o cultivo de peixe. Para peixes de água doce, posso fazer no interior. Há ainda no litoral as áreas remanescentes de Mata Atlântica, que se tenta preservar como pode. São as pressões urbanas. Existem algumas propriedades, mas produção massiva tem que ser fora do litoral, a não ser que haja cultivo direto no mar, com uso de tanque-rede. Para isso, precisamos de autorizações, tecnologia e investimentos, além de cuidados para evitar atritos com outras áreas, como transporte marítimo. Hoje, há inúmeros usos dos ambientes costeiro e aquático que seriam concorrentes. É preciso considerar também concentração de poluição, de resíduos orgânicos. E pensar na poluição visual, inclusive. Em Santa Catarina, o cultivo de mexilhão provoca poluição visual. Todos esses elementos para o uso de águas públicas, de recursos naturais públicos.

Guaiaó - Onde entra o Instituto de Pesca no debate sobre políticas públicas para o setor?

Roberto da Graça Lopes - Não somos uma instância política e nossas respostas não são dadas politicamente. Nossas respostas são técnicas. Mas nenhuma normativa é decidida pelo Instituto de Pesca. Contribuímos com foco numa pesca sustentável. Não nos colocamos contra o setor pesqueiro. Pelo contrário. Mas não queremos que a produtividade seja ameaçada. Temos procurado ouvir o pescador, dentro das câmaras temáticas. O Estado tem que ser mais restritivo, e não permissivo. É o que diz a lei. O foco é sempre a pesca estável, produtiva e sustentável. Nós contribuímos também para as normativas federais e levamos a mesma preocupação.

Guaiaó - A criação do Ministério da Pesca melhora ou atrapalha?

Roberto da Graça Lopes - (Respira fundo e responde) O Ministério da Pesca é atravessado pelo viés político. Pode entender que atrapalha. Pode ser uma faca de dois gumes, como tudo na vida. Pode ser um organismo mais amplo, que recebe recursos específicos. Pode contratar mão-de-obra especializada. Isso é favorável. Agora, existe um grande problema, quando um ministério está numa gangorra entre o fomento e a preservação. É dado ao Ministério da Pesca fazer fomento. E a quem é dado fazer preservação? É o Ministério do Meio Ambiente. Aí começam a dividir as coisas e a interação entre os políticos e seus apoios. De um organismo útil para disciplinar e orientar devidamente a cadeia produtiva passa a ser um lugar onde os interesses políticos são presentes, onde indicações políticas são frequentes. Às vezes, as decisões são contrárias ao que tecnicamente deveria ser indicado. Há choques entre ministérios. O pescador fica no meio como joguete.

Guaiaó - Neste panorama, como fica o pescador artesanal? A cultura caiçara vai resistir a todas as pressões?

Roberto da Graça Lopes - A sobrevivência do pescador artesanal e da cultura caiçara depende menos das coisas da pesca do que da dinâmica da sociedade. Qualquer lugar do litoral tem acesso ao que acontece na Capital. As culturas mais populares são muito particulares. São delicadas e precisam estar envolvidas num ambiente protetor. Este ambiente protetor é muitas vezes dado pelo isolamento. Aí se mantém puras as tradições, passando de pai para filho. Os jovens vão migrar, procurar emprego em outro lugar porque querem ganhar mais, querem tecnologia. Todo mundo quer celular, computador com Internet, o que a sociedade oferece e todos têm direito de almejar. Não vamos discutir se é certo ou errado. O que efetivamente fica?

Guaiaó - Então é preciso estabelecer uma diferença entre cultura e economia?

Roberto da Graça Lopes - Na minha opinião, cultura é herança. É muito complicada a definição de pescadores artesanais. Vamos separar. Comunidades tradicionais de pescadores, que ainda existem em diferentes pontos e muitas vezes existem por conta do isolamento. E que possuem algum tradicionalismo na pesca e nas embarcações. E temos os pescadores de pequeno porte, que genericamente são chamados de pescadores artesanais. Os pescadores artesanais contribuem com 51% da produção de camarão sete barbas, enquanto a pesca industrial contribui em 49%. Agora sabemos que é maioria por causa de um trabalho estatístico mais apurado. É camarão sete barbas, não pesca em geral. Não acredito, a curto prazo, na extinção da faixa de pequeno porte, considerada artesanal. Falando de comunidade tradicional, o uso intenso do litoral, as mudanças urbanas e a dinâmica cultural, a tendência é o esgotamento da resistência destes grupos, principalmente porque os mais jovens migram e cumprem outros papéis na sociedade. Isso acontece na natureza. Quando você tem duas populações diferentes da mesma espécie e quebra a barreira que as separa, a tendência é que elas se misturem com a presença maior de quem possui características dominantes. A homogeneização ocorre pelos dominantes. A sociedade humana, de certa forma, reproduz a natureza.

Guaiaó - Como você vê a interferência do Porto de Santos no ecossistema marinho?

Roberto da Graça Lopes - A expansão portuária hoje está transformando muito a cidade. Não há clareza ou como prever o quanto vai alterar ou deixar de alterar o ambiente. Na minha concepção, temos a destruição do estuário de Santos, principalmente pelo retroporto, pela necessidade de aterramentos, os píeres de atracação. Isso atinge berçários de camarão branco e de outros animais. Os órgãos de fiscalização estão de olho, com exigências, mas apenas paliativas. A tendência é que toda a natureza seja prejudicada. Uma coisa ou outra. Ou impeço o avanço do porto ou imagino que possa causar impactos ambientais. É preciso bom senso. Não dá para pensar porto, porto, porto e o resto que se dane. Mas também não dá para manter intocado. Vamos procurar o meio termo e destruir o menos possível. Há também as favelas, um instrumento altamente degradante. A favela destrói o mangue, exporta lixo em quantidades astronômicas para dentro do meio marinho. É um tremendo problema. Não podemos permitir que as favelas se expandam indiscriminadamente.

Guaiaó - Há solução para o estuário, tão castigado há décadas?

Roberto da Graça Lopes - Não. Temos que evitar a destruição do canal lá para dentro. É necessário manter algumas áreas livres da intrusão tão violenta por parte de favelas e de indústrias. Manter as áreas naturais para ver se mantém a sustentabilidade das espécies dependentes. Usar o espaço com parcimônia para a expansão do retroporto. Problemas mil. Até as estradas que não suportam o escoamento da produção. Não sou favorável a programas governamentais que estimulem o desequilíbrio. Ainda têm algumas áreas intocadas, que podem ser vistas quando você está subindo a serra. Mas as favelas estão comendo a dentadas cada vez maiores. Não é terra de ninguém. A sociedade tem que cuidar do que são bens sociais. As áreas virgens são bens sociais, que dão sustentação para ciclos naturais.

Guaiaó - Como pesquisador, como você vê o papel da Ciência dentro das discussões sobre preservação do ambiente marinho e, consequentemente, da pesca? A Ciência consegue entrar nesta ciranda ou a produção científica demora demais para se aproximar do mundo do pescador?

Roberto da Graça Lopes - O maior impacto é sempre causado por aquele que têm o maior trator. Se eu imaginar que os maiores tratores são as maiores embarcações e elas se voltam para novos recursos marinhos e caem em cima dele de forma descontrolada, haverá um sério problema e a pesquisa vai correr atrás do prejuízo. Se tivermos condição de antecipar as avaliações dos novos cenários, a pesquisa teria condições de orientar. Existem chances de permitir que se defina claramente qual o limite de cada espécie. Isso acontece hoje, em alguns momentos. Normalmente, sempre estamos atrás. É fácil reequipar um barco. O dinheiro é agora. Não dá tempo da gente fazer pesquisa. Dependemos de informações que são passadas pelos próprios ciclos naturais. Num certo momento, temos que esperar as respostas dos ciclos naturais, principalmente os ciclos de reprodução. Se pudéssemos regular barco a barco, provavelmente não levaríamos o recurso à exaustão.

Guaiaó - Mas aí não mora um problema de velocidade, na relação entre o homem e o meio ambiente?

Roberto da Graça Lopes - Sinto muito. Qual é a velocidade ideal para uma espécie? Qual é a velocidade ideal para o recurso natural? Qual é a velocidade ideal para a sociedade? É isso que precisamos imaginar. Antes de autorizar qualquer um a colocar a colher no mar, pesquisa tem que ser feita. Não podemos permitir – e isso infelizmente acaba acontecendo – uma série de embarcações deficitárias que, ao ser descoberto novo recurso, cai em cima de algo desconhecido. Agir com responsabilidade e gerir com responsabilidade seria primeiro um trabalho de prospecção biológica. Vai demorar cinco anos? Sinto muito. Ponto final. Porque os recursos naturais são da sociedade brasileira e é dever do Governo investir na pesquisa de novos recursos para saber como devem ser explorados. É responsabilidade do Governo, dos pesquisadores e dos produtores. Se as pessoas atravessam tudo, quem paga são os recursos naturais. Quem paga é a sociedade. Podemos perder recursos alimentares por má administração. Eu não gosto de bagunça e de desperdício. Todos vão usufruir melhor se as coisas forem organizadas. Não alguns. A pesca precisa ser ordenada porque depende de recursos públicos.

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Depois que os filhos cresceram, Roberto direcionou a criação literária para o Museu de Pesca. O museu é uma de suas paixões, além da difusão científica. Roberto escreveu cartilhas, histórias infantis, sempre com olhar de preservação ambiental. Até que, 13 anos atrás, interessou-se por um curso de Haikai. Hoje, é o coordenador do Grêmio de Haikai Caminho das Águas, que reúne dezenas de poetas. O grupo se reúne todo segundo sábado do mês, no Sesc-Santos.

A produção poética de Roberto chegou a ser exposta uma vez. O endereço, claro, foi o Museu de Pesca. Os textos falavam do mar, com ilustrações do filho Raphael Lopes.

Guaiaó - Como você se aproximou do Haikai?

Roberto da Graça Lopes - Soube de um curso, participei dele e fui convidado para integrar o Grêmio. O Haikai é uma coisa delicada, difícil de ser feita. Não é fazer terceto. É atingir o espírito refinado do Haikai. Gosto do desafio. Fazemos uma reunião numa mesa, em que uns analisam a produção dos outros. Por uns nove anos, a mestra Teruko Oda me cobrava poesia porque eu queria descrever a biologia.

Guaiaó - Sua temática preferida é biológica-ambiental?

Roberto da Graça Lopes - Vamos entender assim. Chega um momento que, não sei o porquê, caiu a ficha. Não faço mais Haikai aqui (aponta para o cérebro). É aqui! (aponta para o coração). Ele vem do coração. Trabalho com o que está dentro. Se ficar só com a mente, a produção é pífia. A temática nem sempre é biológica. Mas falamos das estações do ano, do que percebemos na natureza, as plantas, as flores, os animais, as condições atmosféricas. Na verdade, poesias que demarcam estações.


Obs.: Matéria publicada, originalmente, na edição n.7 da Revista Guaiaó.