segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Pela porta dos fundos


Costumo cometer um erro: crer que os políticos podem ser incoerentes. É como se, em idealização, acreditasse que a classe política pudesse dar mais do que realmente está habituada a conceder.

O prefeito de São Vicente, Tércio Garcia, reforçou este raciocínio inicial. Discreto, de poucas palavras, quase silencioso, Tércio se viu obrigado a tagarelar neste final de mandato. Logo ele, que se encaixou sempre no perfil do técnico-administrador. Mas isso não o faz um sujeito que rejeitou a lógica. Foi uma ação esporádica, de quem se sente acuado.

A política, no caso dele, caminha nas sombras, sem apelo midiático, de se descobrir o que foi feito quase sempre depois que já está resolvido. Coerente, o prefeito de São Vicente terminou sua gestão sem holofotes. Pior: deixou o cargo pela porta dos fundos. E a cidade, de bolsos vazios.

Os funcionários públicos estão com salários e outros benefícios atrasados. Vários serviços essenciais, principalmente na área da saúde, podem entrar em colapso, logo na temporada de verão, quando o município entope de turistas. Os problemas financeiros, como queda de receita e atraso no pagamento de impostos, soam como desculpa esfarrapada porque, acima de tudo, costumam ser previstos pelos administradores.

Por trás do discurso vitimizado, Tércio Garcia responsabiliza a população pela negligência de seus assessores financeiros. Se fala em calote, está embutido em sua retórica a falta de compromisso de parte dos moradores da cidade.

Por outro lado, parte da receita do IPTU – em cota única – já estaria comprometida, segundo a nova administração. Servidores de várias áreas ameaçam entrar em greve; no caso da saúde, seria outra paralisação, pelo mesmo motivo: a torneira financeira secou!

Tércio Garcia e seus burocratas administrativo-financeiros foram coerentes como políticos que não farão sucessores; ou melhor, sucessores que juram ser de oposição. Desde que o barco começou a fazer água, o capitão pareceu largar o leme. A fase de transição, mais uma vez, se transformou em teatro de marionetes, que balança para todos os lados sem se fixar em lugar algum. Um finge que passará as informações, o outro finge que sabe do que passa. Na prática, o futuro prefeito se prepara para encarar uma terra arrasada?

Agora, em condição de náufrago, o comandante contrariou uma das máximas da navegação: não foi o último a abandonar o navio. E nada de se agarrar em tábuas de salvação em alto-mar. O porto seguro já estava definido.

Enquanto o novo prefeito fazia a primeira foto oficial para apresentar o secretariado, Tércio Garcia também tirava retrato, mas como o novo secretário de Administração de Limeira, cidade no interior de São Paulo. No mínimo, um ato de ingenuidade política, carniça para os abutres da política local, mas também passível de análise ética.

O final de gestão do atual prefeito é caso de Ministério Público. Qual promotor vai averiguar o que acontece na cidade? E a Lei de Responsabilidade Fiscal? Esperar investigação por parte da Câmara Municipal significa sonhar com o Papai Noel e suas renas em final de ano. O Poder Legislativo sempre abaixou, nos últimos anos, a cabeça para a Prefeitura, em um exemplo de antidemocracia, com a ausência de vereadores de oposição.

A saída à francesa do prefeito vicentino é também um crime moral. Tércio Garcia se defendeu como um administrador marcado pelo compromisso social. Como justificar, então, a derrota de Caio França na Área Continental, a região mais pobre do município?

São Vicente parece que nasceu para ser violentada por dinastias e limpezas políticas. Vários prefeitos, na biografia da primeira vila, largaram a cidade às traças, quando não apagaram ou distorceram registros históricos importantes. Na política, a última impressão é a que fica. No caso de Tércio Garcia, não é preciso pensar estritamente em dinheiro.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Cárcere privado


Fui deixar um amigo em um destes prédios novos, nas imediações do ferry-boat, na Ponta da Praia, em Santos. Era daquelas torres – autodenominação da construtora – que prometiam, no material publicitário, vista para o mar. O canal do estuário tem água salgada, mas me parece um pouco distante da paradisíaca vista marítima, que – por amor à terra – acreditamos ter.

O edifício era uma fortaleza. Para alcançar o elevador, três portões e a identificação junto a dois funcionários. Imaginei que, em instantes, pediriam carteira de identidade, CIC e comprovante de residência. O nome das torres misturava idiomas, mezzo francês, mezzo inglês. Enrolar a língua para falar onde mora eleva o status. Não estou acostumado com tanto glamour. Meu prédio tem o mesmo nome do bairro, Embaré. É fácil de guardar e homenageia a origem indígena, apesar de desconfiar que o critério para escolha do nome não tenha ligação com o Brasil colonial.

O apartamento segue a tendência: possui limite de capacidade humana, como os elevadores. De tão pequeno, o apertamento lota com meia dúzia de testemunhas. Mas o dono garante que a piscina e a pista de skate foram atrações que pesaram na compra. A piscina permanece como sonho de consumo. Por enquanto, só água quente de chuveiro. E o filho, este não é fã de esportes radicais.

A sensação, diante das chamadas torres e seus parques com nomes em inglês afrancesado, é de que estou em uma mini Alphaville. As mudanças urbanas, sem o planejamento adequado para questões ambientais, tentam forçar um modo de vida ainda incompatível com a cultura litorânea.

Fingimos ser paulistanos naquilo que eles têm de pior. Compramos a vida em bolhas de concreto e ferro. A cidade enfrenta problemas semelhantes, como violência urbana e trânsito, mas obviamente em proporções bem menores. Como descartar a praia e seus jardins para nos enfiarmos em shoppings, os cassinos sem roleta, onde se perde a noção de tempo, dentro da estratégia de aumento de gastos?

Ainda não entramos – pode ser questão de tempo – na era dos condomínios fechados, forma moderna de higienização social, modelo de autoexclusão a pretexto de que o mundo lá fora é perigoso demais. Na cultura do medo, procriamos grades, interfones, correntes e funcionários de terno e gravata que nos observam como tipos suspeitos.

Em grandes metrópoles, como São Paulo e Los Angeles, é possível passar meses sem sair do bairro, adquirindo suprimentos para o bunker anti-fim do mundo. E nada de 21 de dezembro, é no calendário brasileiro mesmo! Viramos seres urbanóides, que compramos acessórios imobiliários inúteis, como mercadorias supérfluas na prateleira do supermercado. “Um dia eu uso”, costumamos dizer.

Percebi o primeiro sintoma desta enfermidade social quando procurava apartamento para comprar, há oito anos. Nesta época, os preços dos imóveis eram para humanos. Seres extraterrestres não se encaixavam no público-alvo. A tática era, depois de ver o imóvel, conversar com o zelador ou outro funcionário do prédio. Sempre depois de se despedir do corretor, claro.

Em uma das visitas, o corretor falava dos enfeites que o prédio possuía. Entramos na academia, vazia e com cheiro de borracha virgem. Quando conversei com o zelador, perguntei se a sala de ginástica – ato falho do século passado – era nova. O zelador me olhou surpreso e respondeu:

— Inaugurou há seis meses, mas vive fechada.

— Nenhum morador faz academia?

— A maioria. Mas todo mundo treina fora. Quem vai querer ficar aqui sozinho?

A sabedoria do zelador é a garantia de que certos valores culturais, felizmente, mudam mais lentamente que o frenesi de consumo. Comprei um apartamento, em outro prédio. A sala e os quartos eram mais confortáveis, inclusive porque prefiro dormir com as pernas esticadas.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Até o fim



Dona Eguimar Mendes tem 61 anos. Sofre de um tipo de câncer que ataca os glóbulos brancos. Esta semana, parou no hospital por causa de uma crise renal. Para ela, dor maior do que os partos dos nove filhos. A ex-funcionária pública Silvia Gonçalves, de 48 anos, convive com a neurofibromatose tipo 1, doença neurológica que levou dois de seus três filhos. Em um sonho, a mãe disse a ela que a vida viraria de cabeça para baixo.

A dona-de-casa Sandra Coutinho tem a mesma idade de Silvia. Também possui um filho, de 16 anos. Sandra sofre de lúpus, doença auto-imune que – silenciosamente – ataca vários órgãos de forma simultânea. Ela perdeu as contas de quantas vezes foi desencorajada pelos médicos a engravidar.

A veterinária Fabíola Perroni, aos 36 anos, luta contra a esclerose múltipla, doença neurológica degenerativa. Casada e com dois filhos, Fabíola entende que Deus lhe deu como presente uma cruz para carregar.

As quatro mulheres têm em comum, além das rotinas em consultórios, laboratórios e hospitais, a vida contada em livro. Três delas – Dona Eguimar estava no hospital - se conheceram na última terça-feira, dia 4 de dezembro, no Cineclube Lanterna Mágica, na Universidade Santa Cecília, em Santos.

Elas estavam lá, com parentes e amigos, para assistir à apresentação do livro “Até o Fim”, sensível reportagem das jornalistas Elizabeth Soares e Jéssika Nobre. As duas repórteres se apoiaram nas histórias destas mulheres para produzir um Trabalho de Conclusão de Curso, em Jornalismo.

“Até o Fim” ilumina uma discussão que muitos homens de branco ignoram. O livro aborda a questão dos cuidados paliativos, tema que começa a ganhar espaço na mídia, ao lado de debates sobre testamento em vida, falta de humanização no atendimento e o complexo de Deus de muitos médicos.

Cuidados paliativos é a especialização médica que trata do acompanhamento a pacientes que possuem enfermidades ditas incuráveis. Não se trata de insistir em medicamentos com fortes efeitos colaterais ou em tratamentos invasivos, com prolongamento da dor. Cuidar de maneira paliativa implica em reunir uma equipe multidisciplinar para acompanhar o paciente no final da vida, permitindo a ele enfrentar o que resta da supervisão médica sem sofrimento, com dignidade.

Embora exista uma associação que reúna médicos especializados, falta convencer o sistema de saúde – o que inclui as empresas de planos -, que se alimenta das doenças, jamais da prevenção ou do acompanhamento humanizado. Em São Paulo, há setores de cuidados paliativos no Hospital do Servidor Público, no Hospital do Jaçanã e no Hospital das Clínicas. No HC, o médico responsável só convenceu a instituição de que cuidar paliativamente era importante quando provou que ficava mais barato do que internar em UTI.

Na Baixada Santista, nenhum hospital implantou serviço semelhante. Em um deles, uma assistente social fez curso em São Paulo por conta própria e assumiu todas as despesas. Cuidados paliativos significa mais do que esperar a morte, representa preservar a vida, no sentido de respirar as experiências do trajeto com lucidez, com humanidade.

Dona Eguimar, por exemplo, tem absoluta certeza de que São Pedro vai recebê-la com samba. “A morte desistiu de mim.” Silvia Gonçalves fala com serenidade da virada de mesa que a vida lhe deu, mas a compreende porque teve coragem – nas palavras dela – de continuar em frente. 

Sandra Coutinho driblou prognósticos negativos. Teve um filho dez anos depois de ser desaconselhada por seis médicos. “Minha fé sempre encontra um jeito.” E Fabíola Perroni garante que a cruz ficou mais fácil depois que instalou rodinhas nela. “Meu nome recebeu um asterisco, o que me torna única.” 

A biografia destas quatro mulheres é, mais do que jornalismo de primeiro nível, um conselho sobre a consulta, dia-a-dia, do cardápio da vida.