terça-feira, 19 de novembro de 2019

Nós falhamos!



Marcus Vinicius Batista

Se falar de racismo no Brasil é chafurdar na lama do óbvio, vamos a duas constatações imediatas. A primeira é que, se você desconhece que existe discriminação racial no país e que ela está ligada de forma umbilical ao preconceito de classe social, só posso crer que existem três alternativas saltitando na sua frente:

a) ignorância absoluta do que acontece além da sua janela e talvez dentro de seu mundo de grades ou bolhas;

b) má fé por quaisquer interesses individuais ou sociais;

c) a História, a Antropologia, a Sociologia, a Filosofia, a Medicina, a Engenharia, o Direito e as demais áreas do conhecimento passaram ao largo da sua formação educacional e cultural, seja por responsabilidade de quem te educou, seja por responsabilidade sua mesmo!

Minha crença: d) Todas as alternativas anteriores.

A segunda constatação é que as instituições brasileiras sempre falharam em seus papéis para enxergar os negros, para combater o racismo ou sequer para dar voz a eles, salvo exceções, de nomes de uma lista pequena a datas comemorativas, que esfregam a regra na cara de todos. Como derivação desta redundância, é fundamental tirarmos o peso absoluto das costas das instituições, como entidades espirituais que aceitam tudo e nunca reclamam como sistema, e assumirmos a cota que nos cabe. Temos que falar sobre pessoas, sobre seres humanos (não representam a mesma gente, muitas vezes) e, principalmente, sobre o que nos faz criaturas selvagens.

Nós falhamos como indivíduos, como grupos sociais, como sociedade, como nação, como qualquer critério que nos lembremos para enquadrar as relações raciais brasileiras. Erramos porque aceitamos o politicamente correto como limite. O oportunismo da convenção social.

O equívoco se repete nas falas adequadas ao momento histórico, nos argumentos “brancos” que soam como sussurros de culpa não assumida ou de medo da retaliação.

Nós falhamos porque aceitamos a conversa mole de que tudo vai passar, de tudo está mudando como se estrada fosse linear até um desfecho de sorrisos felizes, abraços apertados, mãos dadas e arco-íris no pé da serra. Erramos de forma grosseira quando acreditamos que o outro, do alto de sua arrogância racista, vai mudar de comportamento pelo simples fato de que alguém tentou explicar a ele que o mundo é diferente de seu olhar superior.

Errei quando, no mestrado, escrevi uma dissertação sobre racismo dentro das escolas públicas pela ótica do professor que se considera negro – a primeira sobre o tema na universidade onde estudei e sou professor. Quando defendi o trabalho, há 11 anos, só tinha dois colegas negros no curso, nenhum professor, e julguei que cumpria um importante papel social ao escrever sobre um problema crônico que me incomodava desde o tempo das redações jornalísticas de predomínio branco onde atuei. Insuficiente.

Minha falha foi também acreditar somente na força da palavra. Em crer que, em sala de aula, ao abordar todos os anos, nos 17 como professor universitário, a temática do racismo no país, via construção histórica, definições conceituais, tentativa de derrubar o senso comum (exemplo: o racismo no Brasil é mais leve do que nos Estados Unidos), imagens vendidas na mídia. Jurei que poderia alterar raciocínios viciados em poder silencioso de uma plateia majoritariamente branca. Alguns talvez tenham parado para avaliar o som que vinha da lousa.

Desejo o benefício da dúvida, instalado na incapacidade de medição objetiva do trabalho de professor. O mesmo vale para o jornalista que publicou dezenas de textos sobre o assunto e insiste em rascunhar uma reflexão como esta, ciente de que os índices deficientes de medição de leitura vão cair, como acontece com os escritos sobre população de rua e violência sexual.

Nós falhamos porque tentar convencer com palavras parece placebo num momento histórico de retrocesso, de liberdade para a intolerância, para a truculência, para o palavrório que endeusa a ignorância, tanto a violenta como a oca de conteúdo. Tudo com o selo de “qualidade” das lideranças políticas e parte dos coronéis religiosos.

É a hora de não aceitarmos mais os racistas. De ter uma postura – mais do que retórica – antirracista. De não fazer só muxoxo para o papo furado de “tenho amigo negro”, “tenho primo de quinto grau”, “a avó da tia da minha madrinha foi escrava”.

Também não dá para apenas repetir as estatísticas das diferenças raciais/socioeconômicas brasileiras. Os números mudam, porém a ordem das coisas permite que se substituam os dados na mesma tabela. Copia e cola.

Não dá para se surpreender com o ar de surpresa – tão redundante quanto a própria frase - dos jornalistas ao “descobrirem” a existência de um ou outro técnico negro, ou que as torcidas europeias, brasileiras, caiçaras ou do time da faculdade entoam cânticos ou grunhidos animalescos para jogadores de futebol vistos como macacos. Ou quando “percebem” – e se calam - que os dirigentes e as entidades organizadoras literalmente jogam para a torcida.

Sempre vi datas comemorativas como uma contradição. Celebrar é lembrar juntos e isso não significa passar a mão na cabeça e fechar o bico pelo resto do ano. Significa demarcar território e se mexer. Alterar. Punir quem comete crime – racismo é crime, para ser óbvio outra vez! – em vez de engolir as desculpas esfarrapadas que cercam um silêncio misericordioso de quem se beneficia das discriminação em todas as instâncias, em todas as instituições.

sábado, 9 de novembro de 2019

A revolução pela consciência (Escritas do Cotidiano # 75)


Christian Godoi

... então a personagem expirou. Cansada de todo o sofrimento ao qual fora exposta, resolveu reunir seu grupo na quadra da centenária escola de samba do bairro. Ali, discursou, inicialmente, para um pequeno grupo. Dissera que trabalhara por trinta anos com a expectativa de conseguir tranquilidade na velhice. Não levou em consideração o tempo dedicado a outras atividades sem o devido registro...

Crescera ouvindo os adultos pregando um país em desenvolvimento. Este que não se concretizou. A miséria sempre o assombrara, fosse no campo, onde os latifundiários ganhavam cada vez mais poder; fosse na urbe, na qual as periferias tornavam-se cada vez maiores.

Ali, ela discursara; por que deveriam se manter quietos em seus barracos mal iluminados? Por que tinham que viver precariamente? Por que existiam tantos espaços, prédios e apartamentos vazios? Por que necessitavam mendigar empregos em troca de comida, praticamente? Por que deveriam ganhar apenas poucos reais por hora? Por que ver os filhos sem perspectiva de futuro? Por quê?

Por que aquela minoria da Casa Grande tinha imensos quintais, sem ter feito algo para conquistá-los? Afinal, a terra é de todos. Pregam um discurso sobre trabalho, quando a verdade sempre foi a exploração! Pregam a propriedade, quando o fato é que ganharam ou herdaram de alguém a terra, demarcada ou apropriada ainda sob o espectro colonial.

Por que, então, deveriam estes, que escutam a fala contundente da personagem, se aquietarem em seus minúsculos espaços no transporte público, assistindo ao desfile de veículos miliardários emparelharem, com seus proprietários ressecados pelo ar condicionado ignorarem a existência do entorno? Era a hora, então, dissera a personagem, de tomar aquilo que lhes era de direito: a dívida das elites para com o povo. Uma dívida que carregara cada gota de sangue índio, derramado no chão das aldeias estupradas; cada lágrima ou lembrança dos africanos capturados e encerrados no porões negreiros, envolvidos pelo calor fétido das fezes e da urina, das infecções e das mortes assistidas.

Era hora de as elites pagarem pelas chibatadas aplicadas sadicamente às costas dos revoltados pela condição de bichos que lhe eram impostas. Estes agora tinham as armas, tinham o motivo, tinham vontade. Bastava a consciência. Nenhuma casa, apartamento, ou mansão, em qualquer lugar que fosse, ficaria sem morador. Toda e qualquer propriedade seria deles a partir de agora.

O Estado não poderia mais segurá-los, desde que tivessem a consciência de que deveriam estar juntos, não em busca da conquista individual, mas do bem comum. Não precisavam de piscinas para uma família, mas sim de dignidade para todos. Era a hora. Muitos dos seus haviam chegado lá: tinham consciência, estudo, educação. Agora eram médicos, professores, engenheiros, empresários.

Por que deveriam se submeter a ficarem excluídos, distantes, nas periferias, se o centro fora construído e mantido por eles? Não, era hora da revolução. De tomar cada espaço, de dividi-lo, de desfrutá-lo, de organizá-lo, para que todos tivessem as mesmas oportunidades, e uma sociedade mais justa se formasse.

Para isso, aqueles que haviam desfrutado das benesses do capital ao longo dos séculos deveriam, em silêncio, para a manutenção de suas vidas, acatar a revolução. Afinal, só saberiam o que viriam, depois de sua conclusão...

Agora era a hora da luta, não de facções, nem de comandos, nem de partidos, mas de coletivos, de uma totalidade ainda impossível, mas que deveria ir se construindo das metrópoles em direção aos campos, e do campo em direção às aldeias... e assim foi...

sexta-feira, 19 de abril de 2019

Adilson não está sozinho



Marcus Vinicius Batista

Adilson Durante Filho é a bola da vez, símbolo e sintoma de como as relações raciais se estabelecem e se desenvolvem onde vivemos. Ao fazer um discurso racista contra os pardos via áudio, o então secretário-adjunto de Turismo de Santos e conselheiro do Santos Futebol Clube se tornou presa moribunda num momento histórico no qual o politicamente correto passa por crise de identidade, legitimado pelas lideranças políticas e econômicas, com a esquizofrenia de muitos setores da sociedade, de forma explícita, na sala de jantar ou no grupinho de rede social.

O caso, embora não tenha esperança de que servirá de aprendizado para ninguém, estimulou o arroto de doses de hipocrisia e merece algumas considerações em diversos níveis, do pontual ao individual, do macro ao microcosmos social.

Eis aqui algumas ideias:

1) Adilson Durante Filho cometeu um erro de racista principiante. Foi arrogante além dos limites que a KKK tupiniquim suportaria. Confiou demais nos parceiros de virulência. Ele não atacou os negros, e sim os pardos. O ataque aos negros também seria recebido com repulsa, mas uma parcela da sociedade fingiria que não é com ela. Fingiria porque se esconde dentro do conceito de pardo, sem vivenciá-lo no cotidiano, se fantasiaria de “cidadão de bem” com aquele papo furado da “minha avó é parda, meu pai também”, para parecer mais simpático publicamente à diversidade racial.

A diferença parece ser sutil, mas funciona como cortina de fumaça que, infelizmente, colabora para a permanência das ideias racistas na dinâmica social e cultural brasileiras. Os hipócritas, assim, conseguem entrar na onda de rejeição e podem, inclusive, se colocar como vítimas em potencial, o que camuflaria o cinismo de quem discrimina ou de quem se cala.

2) O pardo é quase uma entidade espiritual no processo social brasileiro. Embora a palavra tenha peso histórico, o pardo é construção social conveniente, um mecanismo de defesa para suportar o racismo branco, uma manta que cobre e esconde a discriminação que sobrevive pelo silêncio, pela conivência, pela ignorância e pelo debate carente de aprofundamento estrutural, que se limita a arranhar a superfície.

O pardo também apanha na rua, também toma geral da polícia, se encaixa no estereótipo do bandido, é chamado de “mau caráter”, mas o termo permite – pela manipulação individual e coletiva – certa proteção quando associado à posição social. Pardo cultiva, nas relações raciais brasileiras, status superior ao negro, fruto inclusive da aura de miscigenação como elemento democrático, não como um símbolo de violência ontem, hoje e sempre.

3) O pardo, no racismo brasileiro, é conceito incapaz de simbolizar a vida prática. Neste país racista, pardo serve para negar a negritude. Como consequência, auxilia na negação do racismo.

De forma involuntária, acelera as ações da “turma do deixa disso”, quase sempre brancos interessados em evitar exposições. Jogue alguém aos leões, sem mexer no estado de coisas.

Na semana que vem, Adilson será passado. Até o próximo caso.

4) A reação política do prefeito de Santos, Paulo Alexandre Barbosa, foi previsível, como qualquer político com razoável inteligência faria – olhe para Brasília e entenda que não é regra geral. O prefeito deu ao então secretário-adjunto a honra de pedir o boné, mas não perdeu a oportunidade de falar de si mesmo, na sutileza do narcisismo político e do autoelogio. Nenhuma surpresa, é protocolo político.

Outro ponto: é louvável e direito do prefeito se considerar pardo. Respeita sua história e origens familiares. Só tenho dúvidas se muitos de seus amigos políticos o enxergam assim.

5) Quando Adilson vomitou o palavrório racista, ele o fez porque é muito provável (muito mesmo!) que teve caixa de ressonância. Há audiência cativa para este tipo de violência. Como diz minha esposa, semelhante atrai semelhante. Como praticam os algoritmos, as redes sociais funcionam como bolhas de opinião, onde os pares se encontram e dividem prazer em seus achismos, preconceitos, discriminações, visões doentias de mundo.

6) Como figura política, Adilson colecionou adversários, para não dizer inimigos. O vazamento do áudio não aconteceu por preocupação social, por denúncia contra o racismo ou por um lampejo de cidadania. O vazamento ocorreu para destruir uma reputação, para retirar uma pedra do caminho, dentro de certos interesses políticos. Só nos resta saber – se é que importa – se o rastro dos pedacinhos de pão nos levará à Vila Belmiro ou à Prefeitura de Santos.

7) Adilson Durante Filho vive numa cidade historicamente conservadora, que se manifesta há décadas por atos racistas, entre outros processos de discriminação. Uma cidade onde, nos anos 40, sambistas negros eram presos por vadiagem, onde a polícia oprimia os desfiles carnavalescos.

Santos é uma cidade na qual um prefeito negro eleito, Esmeraldo Tarquínio, foi proibido de ocupar o cargo e perseguido pela ditadura militar por muitos anos. É a mesma cidade onde um jogador novato, chamado Pelé, foi proibido de entrar pela porta da frente de um clube de elite. Depois, campeão do mundo, ele foi recebido como se nada tivesse acontecido. A lista de fatos é, infelizmente, bem maior do que esta reflexão poderia comportar.

8) O conselheiro do Santos Futebol Clube vive num mundo onde negros e pardos são as estrelas do show, mas são tratados como empregados ou até escravos modernos. O futebol funciona como reflexo social, um ambiente onde o racismo se pratica em todos os níveis, dentro e fora do campo.

Os excrementos racistas proferidos pelo conselheiro não mudarão o modo de ver o futebol. No último episódio de racismo envolvendo o clube pelo qual Adilson torce, sobrou para a vítima. O goleiro Aranha testemunhou o clube lavar as mãos, parte da torcida desconfiar dele, a imprensa colocar panos quentes até que a história fosse abafada. Para muitos, ficou parecendo chilique do goleiro.

9) Adilson Durante Filho pediu desculpas publicamente e buscou se retratar. Não fez mais do que a obrigação. Quando membros da elite se veem em saia justa ou provam da violência social e psicológica que costumam perpetuar, sempre penso nos dois motivos que levam alguém a pedir desculpas.

O primeiro é o reconhecimento real do erro, do entendimento de que o outro foi machucado, da humildade de enxergar que um ato de violência foi cometido. A segunda razão é pedir perdão como autopreservação, como sinal de medo pela punição, de perder as posições que ocupa, de se proteger para manter a estrutura confortável em que vive, jamais pelo olhar sobre o outro, por se colocar no lugar dele.

Em qual destes caminhos Adilson Durante Filho preferiu colocar seus pés, sua reputação?