segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Pelé e a bruxa


Pelé se tornou o rei do futebol por sempre surpreender, uma das características inerentes aos gênios. Mas os gênios também possuem uma particularidade: a ingenuidade diante de certas coisas do mundo.

Pelé, cada vez que se manifesta sobre racismo no futebol, deixa de ser exemplo e reforça – espero que sem saber – o discurso dominante da discriminação. Pelé colabora com a ideia de que o racismo representa um problema social menor, que deve ser tratado na esfera privada. Assim o fez no caso do goleiro Aranha. 

Tinga e Arouca também foram vítimas de racismo

De que maneira tratar um assunto, presente na raiz da formação da sociedade brasileira, como um tema entre quatro paredes? Foi desta forma que, durante décadas, prevaleceu a retórica de que não havia racismo no país. Racismo era um problema norte-americano, pois aqui vivíamos sob a miscigenação democrática. Era o caminho mais eficiente da dominação, que se cristaliza pela invisibilidade. Ninguém fala, muitos negam, todos amenizam, a chaga permanece viva.

As palavras do rei do futebol são contraditórias. Ele defende punições, mas afirma que tocar no assunto é aguçar ainda mais a violência. É o argumento distorcido da invisibilidade. Quando, então, vamos colocar o dedo na ferida? Quando vamos, de fato, aplicar a legislação e punir os responsáveis?

Pelé, enquanto jogador, sofreu inúmeras agressões. E calou-se. É claro que o contexto histórico era outro, da quase ausência de reação, da impunidade absoluta para os selvagens. É famoso o episódio em que o então jogador do Santos, ainda menino e desconhecido, foi barrado em um clube da cidade, onde os negros só entravam pela porta dos fundos.

Em 1963, o Santos enfrentou o Boca Juniors, em Buenos Aires. Pelé foi chamado várias vezes de “negro sujo” e “macaco” pelos torcedores argentinos. Xingamentos já haviam ocorrido na Suécia, durante a Copa de 1958, vencida pelo Brasil.

As agressões ao goleiro Aranha indicam como estamos despreparados para lidar com o racismo. O futebol é termômetro da sociedade brasileira, sob quaisquer ângulos de análise. Existem pilhas de estudos, inclusive na área de História, que apontam o futebol como rio onde deságuam todos os tipos de violência presentes no país.

A discriminação contra o goleiro do Santos, até o momento, parece ser mais uma chance perdida de realmente alterar o estado de coisas. A punição ao Grêmio, pelo histórico da Justiça Desportiva, será amenizada. O rigor é seguido do barulho, que dá lugar aos panos quentes quando o tempo esfria. 

Daniel Alves ironiza torcida do Villareal

Ao mesmo tempo, a superficialidade se manifesta na caça às bruxas. Ou melhor, uma bruxa, vestida de bode expiatório. A torcedora gremista foi caçada no melhor estilo inquisitório medieval. Ela deve ser punida pelo crime que cometeu? Sim.

No entanto, o que vemos é a confusão entre justiça e linchamento. Não é a primeira vez este ano, apenas para ficar no passado recente. Ou nos esquecemos de mortes e pessoas amarradas em postes? O percurso é muito semelhante: o tribunal virtual é rápido em condenar, veloz em se esconder das consequências. A torcedora gremista ainda estava na arquibancada quando abriu a temporada de caça.

A garota foi ameaçada de morte e de estupro. Depois, transformou-se em celebridade-vilã da semana e, por conveniência, ninguém procurou saber quem eram os demais torcedores. Será que o goleiro Aranha possui superaudição capaz de detectar um único xingamento numa arquibancada lotada?

Agora, a casa da moça foi incendiada. Esta novela é repeteco da TV, que só termina com a morte da vilã? Historicamente, todas as sociedades adeptas do olho por olho, dente por dente, terminaram em barbárie. E nenhuma delas colocou em pratos limpos suas sujeiras sociais, como o racismo.

Entre palavras equivocadas do rei e reações animalescas de seus súditos, infelizmente, só sobraram botinadas e gols contra.

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

O preço de uma campanha


A vida mudou para Marina Silva. E não me refiro à mudança de candidatura por causa da morte de Eduardo Campos. A trajetória de Marina se alterou por conta das ações políticas que podem conduzi-la à vitória no segundo turno. 

Marina Silva, em capa de 2010. O que mudou?

Em 2010, ela era a candidata de protesto. Hoje, ela é uma candidata de fato. E isso vira do avesso o papel da ex-senadora do Acre e o peso de suas palavras e atos. A chance de acabar com a polaridade PSDB-PT expõe suas posições mais polêmicas e – acima de tudo – suas alianças e seus grupos de apoio. Marina Silva virou o alvo preferencial de quem ainda não entendeu o que se passou no último mês, mas compreende que ela personifica o peão que sacudiu todo o tabuleiro.

A proximidade da eleição e o crescimento de Marina nas pesquisas fazem com os dois maiores partidos brasileiros se agarrem em todos os fios desencapados de seus comitês de campanha. A ordem é atirar contra a candidata do PSB. Qualquer opinião dela será dissecada e transformada em espetáculo, mesmo que seja parecida com a dos candidatos adversários.

A desinformação é a arma para tentar conter um segundo turno, sem Aécio Neves. Boatos e fofocas valem mais do que fatos. Se os fatos por acaso forem mais sólidos, por que não requentá-los em microondas?

O debate vazio sobre o aborto foi ressuscitado. Todos se esquivam, ninguém fala sobre políticas públicas. A mudança de posição sobre o casamento gay no programa de governo de Marina pariu bandeiras de protesto, como se fosse uma novidade diante de uma candidata com raízes religiosas fortes e como se programa não fosse peça de ficção científica.

Marina Silva canalizou também a intenção de voto útil. Nas conversas do cotidiano, muitas pessoas passaram a prestar atenção nela pelo espírito anti-PT e pelo cansaço do modelo tucano, multiplicador de projetos e marketing.

Neste sentido, o discurso ambiental – que seduziu na corrida eleitoral de 2010 – virou fundo de prateleira. Não seria coerente agora um olhar sustentável de mundo, ao lado de um vice que carrega a influência do agronegócio.

É triste testemunhar que a campanha eleitoral caiu novamente na vala superficial dos ataques pessoais e dos temas desconectados de políticas públicas. Em outros momentos, os candidatos tratam educação, saúde e economia de maneira tão genérica que parecem discursar sobre entidades espirituais.

Os ataques contra Marina Silva também envolvem o cardápio de alianças da candidatura dela. O PSB, um partido até ontem no Governo Federal, tenta se exibir como baluarte de nova política, quando caminha com sapatos tão gastos que dá ver as meias pelos furos das solas.

Quem seria tão ingênuo em crer que se tornou possível, dentro do sistema político brasileiro, governar com chapa pura, sem esqueletos de alianças embaixo da cama? Ou alguém acredita que os amigos de hoje de PT e PSDB, se sentirem o cheiro de derrota, não mudarão de endereço como se nada tivesse acontecido?

Votar em Marina Silva é arriscar os dados não somente pela ausência de experiência administrativa dela, mas principalmente pelo novo cenário de alianças que se desenha. É apostar em loteria. Mas, fazendo o advogado do diabo, qual candidato não seria?