Os jovens usam o trajeto como de hábito. Dedos acelerados castigam as teclas, ansiedade para falar em código e combinar o que fazer. Endereço definido, data marcada, causas diluídas entre desejos e queixas.
Na rua, é fácil localizar os pares. Nomes e origens não representam nada. A aparência e a motivação flexível os unem. Há um inimigo comum: os símbolos que ostentam o que eles não podem ter, o que adorariam conseguir ou o respeito com quem já obteve.
No mundo historicamente separado por muros, estar junto sempre provoca reações negativas. Sacode o modelo mecânico, chacoalha as posições de sempre. O terremoto fica mais evidente quando se percebe que vivemos em tempos de isolamento. Ironicamente, os equipamentos que separam viram as armas da união física paliativa.
À distância, as reações necessitam de rótulos. Escolhe-se um nome, com cheiro de marca, alheio ao grupo de transgressores ou pinçado do linguajar deles. A segunda opção é sempre melhor, porque conecta mais uma característica de inferioridade social. A leitura sobre o que se aproxima é de um blockbuster hollywoodiano. É essencial estabelecer o bem e o mal. O certo e o errado. As regras do jogo à revelia de parte das peças. Individualiza-se a cidadania, como se isso fosse possível. E se fosse você?
O público e o privado se misturam. De quem é o espaço? A rua, o shopping pertencem à quem? Juridicamente, a clareza existe, mas os valores culturais – e o estou pagando - mastigam a letra jurídica. Valores culturais aproximados pelo consumo. Os desejos são idênticos e não distinguem as classes descritas pelos téoricos. O número de prestações, idem. Mas eu moro em bairro bom? Pegamos ônibus diferentes, mas que levam ao mesmo endereço, argumentam.
Para sanar o impasse, convocam-se cassetetes, capacetes, gás e spray de pimenta. Porrada em quem pensa diferente e atrapalha o trânsito, de carros ou de pessoas. Seria tudo por 20 centavos? Ou seria por melhor infraestrutura? Sabemos o que queremos? Ou apenas queremos exalar juventude e zoar?
Dia de compras ou dia de rolêzinho? |
Perdoe-me certo esvaziamento político acima. É provocação pura e simples. O jogo de palavras esconde – mal e porcamente – a ironia diante de tanta violência, tanto de quem participa como de quem assiste, se sente ameaçado e não tolera. É claro, enfurecido leitor, que os protestos de junho e os rolêzinhos de hoje são situações diferentes, com proporções distintas. Mas não deixam de esboçar a decadência do comodismo de muita gente, mesmo em doses homeopáticas, que esgarçaram as amarras que silenciam a desigualdade e as segregações das médias e grandes cidades.
A comparação apenas serve para nos alertar para um dos ensinamentos básicos da História: cautela. Não podemos nos sentar sobre a preguiça mental que nos conduz à leitura rasteira dos fatos. É preciso prudência para não se comprar a primeira versão que vem embalada em retórica de oportunidade.
Nem nos agarrarmos à soberba, mãe da intolerância, que nos permite classificar o que não entendemos e fingimos entender porque colocamos fatos e indivíduos em velhas gavetas, marcadas à fita com rótulos gastos. E muito menos nos deitarmos sobre a cama das certezas, que nos apontam único caminho e camuflam a complexidade do mundo lá fora.
Vândalos, bandidos, baderneiros, filhos do rolêzinho e manifestantes à parte, a História nos ensina também a duvidar do absoluto, que nasce para ser posto em xeque e depois reescrito. Prefiro confiar nela e ficar com as dúvidas. Desconfianças que geram novas perguntas e que nos deixam mais atentos aos sinais, porém certos de que algo nos escapará.
Preciso do principal alicerce da História para solidificar minhas conclusões, quase uma utopia para quem duvida. O tempo – e os novos capítulos que vem de carona – pode fornecer maiores elementos que, contextualizados, indicam maior probabilidade de entendimento. A ausência de tempo, sabe-se, é a arma de quem deseja manter tudo como está. Mata-se a reflexão e encarcera-se a perspectiva de mudança.
A dúvida é, acima de tudo, a muleta que estica o tempo. Que adia a resposta empacotada e permite engrossar o caldo dos porquês. É a vacina que alivia as dores do preconceito e provoca anticorpos de cidadania. Quem sabe o rolêzinho seja um sintoma de um cardápio de novas surpresas sociais? Ou você acredita que se trata apenas de mais um bando de baderneiros que resolveu dar uma volta no shopping?
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