terça-feira, 22 de abril de 2014

O lixo e os cachorros


Moradores da rua Piauí, no Campo Grande, em Santos, reduziram o risco de pisar em surpresas na calçada. Em um dos postes, instalaram um aro de metal que prende diversos sacos plásticos. Assim, nenhum dono de cachorro pode alegar amnésia e deixar de limpar as fezes de seu animal.

A quatro quilômetros dali, na rua Ricardo Pinto, na Aparecida, um morador colocou uma placa numa árvore. A placa pede que os donos de cachorros se lembrem que são civilizados e não emporcalhem a calçada. 

Suporte instalado no bairro da Aparecida, em Santos

As duas ações se juntam a outras pelas ruas de Santos e simbolizam como comportamentos podem ser alterados sem a necessidade ou “medo” de uma legislação, e sim por pressão, organização social e comportamento cidadão.

No caso, há uma lei que aborda o recolhimento de fezes por parte dos donos de animais de estimação. Mas ninguém nunca foi multado. A lei existe desde 1995 e, obviamente, a Prefeitura não destinou fiscais para multar os porcos (não me refiro aos cachorros, coitados). Até porque não tem pessoal para atender a todas as demandas jurídicas que brotam no plenário do Poder Legislativo.

Uma segunda lei sobre o assunto foi aprovada, em 2001, e revogou a multa como obrigação legal. Ou seja: para que uma lei que não prevê punição aos infratores?

Nesta semana, Santos passou por uma situação semelhante. O prefeito Paulo Alexandre Barbosa sancionou a lei que prevê multa para quem joga lixo na rua. A multa pode chegar a R$ 1 mil, dependendo da quantidade de lixo despejada de forma irregular.

A lei, de autoria do vereador Kenny Mendes (DEM), altera outra lei, de 1968, que tratava do mesmo assunto. Agora, a infração envolve de bitucas de cigarro, cascas de frutas, latas, garrafas até quantidades maiores e objetos como sofás, armários e outros móveis. O prazo para regulamentação é de 60 dias. Só em junho a administração municipal vai definir a fiscalização.

Por melhores que sejam as intenções, os dois episódios acima indicam como funciona a cultura das leis no Brasil. Tanto políticos como a sociedade em geral costumam acreditar que os problemas sociais devem ser resolvidos na base da legislação, vinda de cima para baixo, sem discussões públicas.



Temos leis demais. Muitas são ultrapassadas, em outro contexto histórico. O Código de Posturas de Santos, por exemplo, é de 1968. Muitos dos artigos parecem peças de humor, tamanha a distância da realidade atual.

O excesso de leis também significa a superficialidade no tratamento de questões públicas. É mais cômodo – e gera dividendos políticos – entupir o plenário de leis do que cobrar políticas públicas ou exigir melhorias nos serviços já implantados. Aprova-se a lei e a deixa morrer no esquecimento.

Em muitas situações, parlamentares ainda jogam para a torcida e para a imprensa, diante de assuntos polêmicos. É comum vereadores apresentarem projetos de lei com a consciência de que serão vetados ou modificados na Comissão de Justiça, que analisa a viabilidade jurídica da proposta.

Muitos projetos, mesmo diante das negativas, chegam ao plenário e são votados, o que obriga um malabarismo do Poder Executivo para que a lei seja assinada. Um caso recente foi a lei que proíbe o uso de celulares em salas de aula da rede de ensino de Santos. Alguém foi punido? Houve fiscalização? Claro que não, até porque o problema envolve bom senso e educação dos envolvidos.

A consequência cultural da paranoia jurídica é a expressão “leis que pegam e leis que não pegam”. Na prática, são palavras que provam como sabotamos aquilo que defendemos. Somos cúmplices, em certo sentido, com a impunidade. Lei, deste modo, é boa para os outros. Para nós, sempre existem brechas, liminares, além da própria conivência e incompetência dos poderes.

Parlamentares se aproveitam da cultura das leis também para uso político. Um exemplo é a Câmara do Guarujá, que aprovou lei – e derrubou veto da prefeita Maria Antonieta – que obriga funcionários de primeiro escalão a morar na cidade. Geografia virou competência profissional. O objetivo era atingir um secretário, que pediu demissão. A história virou batalha judicial.

A Câmara de Santos, ainda que alguns vereadores sejam obcecados por legislação, deu um passo positivo. A casa abriu edital de licitação para catalogar a legislação existente no Município. Estima-se que existam 8500 leis diferentes. A promessa é que, depois do levantamento, ocorra uma análise para eliminar leis conflitantes e obsoletas.

Legislar deveria ser um ato horizontal. Os moradores do Campo Grande e da Aparecida se juntaram – sem se conhecer - aos moradores de um prédio na esquina das ruas Vergueiro Steidel e Castro Alves, no Embaré, numa lição cidadã.

Em cinco árvores, foram amarrados pequenos cestos plásticos de lixo. A sujeira ali acabou. Ações valem muito mais do que letra morta.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Os machos vestem saias

Sempre desconfiei da pesquisa do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) sobre Tolerância social à violência contra as mulheres. Mas, embora sofra críticas por conta da metodologia, a pesquisa nunca me pareceu distante da realidade. Também não pensei que os equívocos na leitura dos dados merecessem tamanha ânsia de desqualificação do trabalho.

As polêmicas dos tempos atuais, na verdade, servem para atrair minha atenção aos detalhes. Os pormenores nos apontam em quais armários moram nossos esqueletos. O que me interessa é o recheio, e não a cereja do bolo.

Na pesquisa, o recheio azedou. O trabalho do Ipea não nos mostra somente o óbvio, que a sociedade brasileira é machista, mas – essencialmente – nos indica a dimensão do machismo no imaginário das mulheres. Justamente elas, que deveriam se proteger da violência simbólica do macho.

As mulheres são dois terços dos 3810 entrevistados. É desproporcional em relação à população brasileira, um erro técnico. Só que os resultados apavoraram quem reflete sobre as desigualdades e os preconceitos de gênero neste país.

As mulheres, em sua maioria, ainda sonham com a família de publicidade de margarina. 87,8% concordam (total ou parcialmente) com a afirmação: “toda mulher sonha em se casar.” Seis em cada dez acreditam que “uma mulher só se sente realizada quando tem filhos”. Neste pacote, entra figura do macho alfa, o macho provedor. Para 63,8% dos entrevistados, “os homens devem ser a cabeça do lar.”

Quando a pesquisa passeia pela sexualidade, fica evidente a presença da relação Casa Grande e Senzala. 55% concordam que “tem mulher que é para casar, tem mulher que é para a cama.” Entre a sinhazinha e a escrava dos tempos modernos, muitas mulheres – conheço várias – se sentiriam ofendidas, inclusive quando rejeitadas porque eram “para casar” e desejavam apenas um relacionamento rápido. 


Neste sentido, percebe-se também o caminho da submissão. Um em cada quatro entrevistados aceita que “a mulher casada deve satisfazer o marido na cama, mesmo quando não tenha vontade.” Isso me lembra o coronel Jesuino, personagem de José Wilker na novela Gabriela, que dizia para a esposa: “deite que vou lhe usar”. 

É claro que há ainda a violência sexual. É o ângulo que chamou a atenção da mídia e onde estava localizado o maior erro de avaliação. Mas o escorregão não apaga as manchas sociais. Uma em cada quatro pessoas concorda que “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas.”

Na Baixada Santista, uma mulher é estuprada por dia. Alguém, com o mínimo de senso de humanidade, acredita na hipótese de que as vítimas desejaram ser violentadas? Três em cada quatro agressores são familiares ou pessoas próximas.

Quem sabe poderíamos aprender com um exemplo extremo? Na Arábia Saudita, nove em cada dez homens acreditam que maquiagem significa que a mulher deseja ser violentada.

Com erro ou não, a pesquisa nos dá o recado: Mulheres, libertai-vos. É melancólico perceber que muitas das vítimas da submissão e da opressão masculina são exatamente aquelas que assinam embaixo na cartilha do macho.

terça-feira, 8 de abril de 2014

Liberdade para quem?


Nomes de políticos cassados em placa na Câmara
Municipal de Santos (Foto: G1 Santos)

A Câmara de Santos assinou, em 1º de abril, um capítulo histórico. O Poder Legislativo, em parceira com a Comissão da Verdade do município, conduziu a devolução dos mandatos de 16 ex-vereadores e dos ex-prefeitos José Gomes, cassado em 1964, e Esmeraldo Tarquínio, cassado e que não pôde assumir o cargo em 1966. Dos 18 políticos, somente o ex-vereador Luiz Rodrigues Corvo, hoje advogado em São Paulo, está vivo e discursou em plenário.

O ato simbólico serve como mais uma lição de que a ditadura militar de 21 anos – e não uma década, como alguns intelectuais desejam amenizar – deve ser lembrada. Este período histórico merece e exige reflexão, mas jamais comemoração como paradigma de cidadania.

O ato da Câmara de Santos não foi isolado. Em Natal, no Rio Grande do Norte, o Legislativo local restituiu os mandatos do ex-prefeito Djalma Maranhão e do vice Luis Gonzaga dos Santos, também cassados durante o regime militar. 



O processo de reparação teve início em 2012, quando a Câmara dos Deputados, em Brasília, realizou uma cerimônia de devolução dos mandatos de 173 parlamentares. Entre eles, os ex-governadores Leonel Brizola e Mário Covas, além de Plinio de Arruda Sampaio, candidato à presidente pelo PSOL em 2010, e do advogado Gastone Righi, liderança política de Santos.

Em agosto de 2013, 14 parlamentares comunistas também tiveram seus mandatos restituídos na Câmara Federal. Na lista, o escritor Jorge Amado e Carlos Mariguela. Todos haviam sido cassados em 1948, durante o governo de Eurico Gaspar Dutra.

A devolução dos mandatos não precisa produzir efeito prático, e sim manter acesa a necessidade de se desnudar o que a censura insistiu em esconder por duas décadas. Pensar o regime militar é um ato de educação política, tão frágil neste país quanto à relevância do debate público, que muitas vezes resulta em exercícios de intolerância, tão comuns em tempos de velocidade, construção e difusão de informações.

A Universidade Católica de Santos, por exemplo, abriu as portas para relembrar e gerar a troca de experiências entre aqueles que viveram a ditadura ou a estudaram a fundo. Com auditórios lotados, houve três exibições do documentário “O dia que durou 21 anos”, dirigido por Camilo Tavares e lançado em 2013. Camilo é filho do jornalista Flavio Tavares, um dos 15 presos políticos banidos do país por envolvimento no sequestro do embaixador dos Estados Unidos, Charles Elbrick.

Um exemplo negativo foi a manifestação dentro de uma sala de aula, na Universidade de São Paulo, quando um professor foi impedido de defender a ditadura militar. Alunos invadiram a sala em, encapuzados, impediram o professor de ter a palavra.

É claro que defender a ditadura militar, diante de tanta informação sobre o período, soa como uma opinião deslocada, desinformada e – por que não? – patética. Mas o processo democrático só sobrevive com a pluralidade de pontos de vista e a liberdade de simplesmente ser indiferente a eles. E ver um sujeito em cima do banquinho na praça, pregando ao vento, é mais melancólico. É a voz que grita em silêncio, que nasce morta pelo ridículo. 




Calar alguém na marra porque ele pensa diferente, ainda que defenda um modelo indefensável, significa se tornar irmão gêmeo dele. Calar os diferentes é o que a ditadura militar fez por 21 anos. 

Dar a palavra aos defensores do regime é permitir que eles tenham a chance, num clima de liberdade, de ouvir seus erros e suas bravatas ao som das próprias vozes. É assim, das Câmaras às salas de aula, que talvez se aprenda o valor da liberdade e da democracia.