sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Os tons de cinza




Marcus Vinicius Batista


O mundo nunca foi preto ou branco. O mundo de duas cores só existe entre os ingênuos e os maniqueístas que, no fundo, costumam ser as mesmas pessoas.

O mundo pode ser cinza. Em múltiplos tons, como tatuagens dos autoritários e insensíveis que, sempre, costumam ser as mesmas pessoas. E nada glamourosos como mentem os livros de literatura pseudo-ousada.

O mundo deveria ser colorido. Em todas as nuances, como retratos da diversidade, da diferença, da tolerância, do amor, sentimentos nobres que - juntos - habitam a mesma pessoa. O mundo que se manifesta na arte urbana, como marca de politização, consciência social, pluralidade de opiniões, conteúdos, estilos e estéticas.

Em 1984, romance clássico de George Orwell, as pessoas viviam vestidas de branco e residiam em um mundo acinzentado. Nas cidades operárias, fruto das revoluções industriais, o lazer é supérfluo. A cultura é badulaque. As cores da artes distraem e, por contradição, fazem pensar quem deveria somente trabalhar, servir, se escravizar e se submeter.

O prefeito de São Paulo, João Doria, é um ícone da obsessão pelo trabalho, pela propaganda que defende uma vida de aparências. O prefeito que torna São Paulo uma cidade apagada é o empresário-construtor de imagem, que se veste de gari, que anda em cadeira de rodas, para encenar preocupações, para mascarar violência.

Quando deixa a cidade cinza, Dória externa - na camuflagem do sorriso branco de publicidade - o desejo de controle. O desejo de manter o pensamento paulistano no cabresto da uniformidade. Todos iguais, todos de joelhos perante o Grande Irmão, único capaz de decidir o que todos devem rezar, por obrigação.

Enxergar e governar em tom de cinza é sinal de visão embaçada. São Paulo é uma aquarela, e não as cores do pintor preferido do prefeito, que finge não repetir sempre o mesmo desenho. Ele é cinza também, mas com um verniz que tagarela, vende e pouco pensa.

O autoritarismo, presente nos ismos de esquerda e de direita, sempre teve uma cor: o cinza. Às vezes, travestido de vermelho. Às vezes, fantasiado de verde e amarelo. Que os muros e viadutos suem em arco-íris.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Os presos errados


Cadeia Velha de Santos. Foto: Matheus Tagé/Diário do Litoral

Marcus Vinicius Batista

Os carrascos deste século não usam capuzes pretos. Eles expõem seus rostos, protegidos com status de “autoridades”. Os carrascos não andam armados de foices ou posam ao lado de guilhotinas ou forcas. Eles prendem canetas, muitas vezes importadas, aos paletós, para degolar suas vítimas com assinatura em papel timbrado.

Os carrascos não sentem remorso, culpa ou temem ser estigmatizados pelo que fazem. Eles sorriem, falam em pausas programadas, oferecem café e água antes de fingir que negociam rendição. Para os carrascos, as decisões são tomadas com antecedência. Eles recebem o pedido de execução e seguem a cartilha na qual nunca consta misericórdia.

Os carrascos estiveram em Santos, na semana passada. Treinados para ignorar o passado alheio e negar as próprias mentiras recentes, eles vieram com o discurso costurado em pele de carneiro. Era a hora de matar a Cadeia Velha de Santos. Matar com um único disparo, no coração.

Atirar no coração é tática de quem deseja liquidar a essência histórica do condenado. Antes, porém, foi preciso torturar a Cadeia Velha. Fazê-la entender que 35 anos de vida como formadora de artistas não apagam o passado anterior de prisão. Os carrascos absorvem, talvez pela lavar os próprios pecados, a raiva do que nunca viveram.

Admitamos: os torturadores são criativos, ricos em se aproveitar dos detalhes. Primeiro, reabrem a Cadeia, injetam uma dose de esperança de que a essência seria preservada, depois de meses de uma obra arrastada, dentro das tradições brasileiras.

O passo seguinte é abrir para fechar. Dinheiro é a desculpa-coringa. Empurrar para o outro; no caso, a Prefeitura, que gastou como dondoca em shopping e vive de bolso murcho. Novamente, a dança em torno do dinheiro, que some feito ilusão de mágico para crianças.

Os carrascos, porém, são seletivos. Eles se esquecem, por conveniência, que a Cadeia Velha foi morada de presos políticos, de gente que lutava pelas ideias que os carrascos tanto abominam, que viram pústulas tamanha a alergia à liberdade.

A crueldade se esgueira pelos sorrisos amarelados, pela falsa descontração de conduzir uma morte lenta e dolorosa. 35 anos de vida como formadora de artistas não seriam extintos da história. Virariam rodapé dela, com a lembrança viva pelo Projeto Guri, que seria transferido para as dependências de uma Cadeia morta.

O Projeto Guri, antes na Zona Noroeste, criará mais uma despesa, desta vez para as famílias que veem na Cultura um porto seguro de uma rotina na qual se contam as moedas. E agora, viajar atrás de Cultura em um ônibus mais caro? Os burocratas de salários europeus só enxergam o mundo pela janela de vidro envelopado.

Quando o moribundo cambaleia pelo tiro no peito, os carrascos descem a marreta na nuca. Na dúvida, é preciso garantir que não haja ressurreição. A marreta é da marca Agem, a Agência Metropolitana da Baixada Santista. A serpentina que envolve com carinho a Metropolização, a melhor fantasia política dos últimos 20 anos.

Os carrascos são perversos. Não bastou sorrir para os artistas enquanto assassinavam a Cadeia Velha de Santos. Para dar o recado aos “subversivos” – palavrinha do século passado, mas retomada por quem ainda acha que vive nele -, a ordem foi expressa: lotar a Cadeia com burocratas, com gente que nunca foi apresentada à arte e, se foi, não conseguiu estabelecer o mínimo diálogo.

Lotar a Cadeia de seres que se alimentam de projetos, de programas requentados, de café e reuniões e mais cafés e reuniões e comissões, mas que passam mal de pedir auxílio médico quando ouvem que é necessário trabalhar na vida prática.

A Cadeia Velha de Santos lacrimeja e pede socorro aos artistas, mas sinto que os sujeitos com algum poder na cidade os abandonaram no meio da Praça dos Andradas. Os artistas têm a voz, o suor, a criatividade e a força de trabalho para medicar a Cadeia, hoje sonhando em contradizer suas origens.

Se no passado a Cadeia Velha prendia quem fazia política, hoje ela reza para que expulsem os políticos de dentro do seu ventre.

sábado, 21 de janeiro de 2017

Fora do ponto

Foto: Juicy Santos
Marcus Vinicius Batista

A decisão do Poder Judiciário em reduzir o preço da passagem de ônibus estipulada pela Prefeitura é só mais um capítulo na desastrosa política de transporte público em Santos. Antes, uma ressalva: a Justiça manteve o aumento, pois o preço foi fixado em R$ 3,45, vinte centavos a mais.

Vamos pegar um desvio e sair da rota que nos leva a velhos problemas, como tempo de espera, monopólio no transporte de ônibus convencional, ar-condicionado e Internet apenas em parte da frota. Vamos discutir matemática, mexer no bolso para entender como o planejamento perdeu a viagem.

A Prefeitura aumentou a passagem em 18%, ou seja, R$ 3,85. Isso significa cinco centavos a menos que os ônibus Seletivos, que operam em três linhas. Neles, não há passageiros em pé, todos os veículos têm ar-condicionado, o ônibus estaciona fora do ponto. Por R$ 3,90.

Quando anunciou o reajuste, a primeira justificativa oficial foi a redução de passageiros da Viação Piracicabana. Depois, vieram os dois anos sem aumento, entre outros argumentos. Nesta equação de segundo grau, entrou um novo X: o Uber.

O Uber, quando não está com preço dinâmico, que pode torná-lo mais caro do que um táxi, vira uma pechincha ao transportar três ou quatro pessoas. Uma corrida do Shopping Praiamar, por exemplo, até o Campo Grande - entre os canais 1 e 2 - custa, em média, R$ 14. O tempo de espera é mínimo; o de viagem, mais rápido, com ar-condicionado e bom atendimento.

Faça as contas, com a passagem de ônibus a R$ 3,45 ou R$ 3,85. Dá quase no mesmo. Os motoristas de Uber costumam relatar que transportam muitas famílias de classe média baixa, antes usuárias de ônibus, e não de táxis.

Os vereadores, cuja principal função é monitorar e fiscalizar o Poder Executivo, alegaram impossibilidade de intervir no aumento das passagens de ônibus. Se hoje lavaram as mãos, aprovaram sem ressalvas, no final de 2015, o projeto de lei que proibia o Uber na cidade. Nesta história, taxistas compraram brigas que mal sabem onde começam e onde vão terminar. Lutam para melhorar o atendimento e conter o êxodo de passageiros.

A Prefeitura criou uma Comissão de Mobilidade Urbana - você já viu por aí? - e nada mudou na política de transporte público, exceto elevar o preço das passagens de ônibus dois meses depois das eleições.

Realmente, a conta não fecha. Não há proporcionalidade, porcentagem ou fórmulas matemáticas capazes de explicar os critérios para os preços de transporte na cidade de Santos. Ao passageiro, só sobrou tirar o lápis que dorme atrás da orelha.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Anchieta - a "Casa dos Horrores"


Casa de Saúde Anchieta, em foto de 2007

Este é o quarto de uma série de seis textos sobre os 25 anos do projeto TamTam. Nesta postagem, a importância da Casa de Saúde Anchieta para as discussões sobre saúde mental e para a criação de um projeto cultural liderado pelo arte-educador Renato Di Renzo.
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Marcus Vinicius Batista

O projeto TamTam nasceu dentro da Casa de Saúde Anchieta em 25 agosto de 1989, quando o arte-educador Renato Di Renzo foi ao local apenas disposto a ajudar, mas sem uma ideia profunda do que poderia fazer. Ali, brotaria uma iniciativa de arte, inclusão social e saúde mental que sobreviveu à extinção de uma das piores manchas na história da psiquiatria brasileira.

Enquanto o projeto TamTam voou para outros endereços, o que aconteceu com o Anchieta depois da intervenção da Prefeitura no mesmo ano? O que resta hoje do antigo manicômio, inaugurado na década de 50? Por que o hospital é tão importante não apenas para a história da saúde pública, mas também para a biografia do Teatro, em Santos?



Renato e pacientes do Tam Tam

Hoje, o imóvel que abrigou a Casa de Saúde Anchieta não apresenta rastros dos tempos de hospital psiquiátrico. Muito menos de espetáculos teatrais, como a peça em que o Papa e um pirata assaltam o Vaticano e dividem o produto meio a meio. A primeira encenação envolveu dois pacientes, um deles Ercílio, que hoje trabalha no programa municipal de reciclagem de lixo, em Santos.

O Anchieta é apenas uma carcaça do lugar que abrigou o principal manicômio do litoral de São Paulo. O local se transformou em um cortiço, onde residem 54 famílias. São cerca de 150 pessoas. As condições de vida são insalubres, com sérios problemas estruturais no edifício. A desapropriação do imóvel se arrasta no Poder Judiciário.

Em 27 de setembro de 2012, um dos cômodos do imóvel pegou fogo. Ninguém se feriu. No cômodo, residiam sete pessoas, de duas famílias, que perderam tudo. O incêndio teria sido provocado por um curto-circuito.


Incêndio em 2012. Foto: G1-Santos

A história da Casa de Saúde Anchieta começa em 1951 bem antes do projeto TamTam. O hospital, de propriedade privada, tinha teoricamente capacidade para 450 leitos. Até o final da década de 80, pouco se sabia sobre a instituição, uma caixa-preta tanto para a imprensa como para as autoridades de saúde. O Anchieta seguia à risca o silêncio da cartilha dos manicômios que se espalharam pelo país.

A intervenção na “Casa dos Horrores” aconteceu em 3 de maio de 1989 por parte da Prefeitura de Santos. A gota d´água foi a morte de três internos. O lugar colecionava denúncias de maus tratos, mortes e superlotação de pacientes, muitos deles espalhados por corredores e pátios. O Anchieta, nome popular do hospital, era um dos símbolos dos manicômios como depósitos de pessoas.

Uma equipe multidisciplinar promoveu uma avaliação dos pacientes, muitos deles com marcas de violência pelo corpo e desidratados. Em outros casos, internos não recebiam alta por conta da desorganização dos prontuários. Nas instalações, a precariedade se repetia: cadeados que isolavam pátios, enfermarias fechadas e chuveiros sem água quente.

Havia também o “chiqueirinho”, apelido para o espaço onde os pacientes eram trancafiados. Eram celas fortes, de dois metros quadrados, com pouca ventilação, sem luminosidade e local para as necessidades fisiológicas.

Como tratamento, pacientes recebiam eletrochoques e não existia controle sobre os medicamentos. A Casa de Saúde Anchieta abrigava todo o tipo de marginalizados, de doentes mentais até alcoólatras e usuários de drogas. Um mês depois da intervenção, em junho de 1989, o lugar ainda abrigava 350 pessoas.

Com a intervenção, o hospital reduziu, gradualmente, o número de pacientes até fechar as portas, em definitivo, em 1996. A intervenção é lembrada até hoje como um marco na reforma psiquiátrica e na luta antimanicomial, inspirada na experiência em Triste, na Itália.

Em Santos, a desativação do hospital marcou também a implantação de Núcleos de Apoio Psicossocial, os NAPS, modelo de atendimento descentralizado que existe até hoje. O primeiro começou a funcionar na Zona Noroeste de Santos, também em 1989.

Curiosamente, a legislação que deveria acompanhar o fechamento dos hospitais psiquiátricos só foi aprovada 12 anos depois no Congresso Nacional. O projeto de lei, apresentado pelo deputado Paulo Delgado (PT/MG), regulamentava os direitos dos pacientes com transtornos mentais e estabelecia o fechamento de todos os manicômios no país.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Santos em silêncio



Marcus Vinicius Batista

Santos é uma cidade sob efeito de entorpecentes. Uma cidade à base de sedativos. Um município dependente de Lexotan político, tamanha a anestesia diante das más notícias, dos truques eleitorais e do planejamento quase ausente por parte da administração municipal.

Poucos gritam. Ninguém nas ruas. Protestos no quintal de casa só quando os semáforos atrasam o passeio. A última má notícia foi o aumento do preço das passagens de ônibus. Quase 20%, a partir de segunda-feira. É a compensação depois de um ano de congelamento. Uma manobra política para enganar os usuários.

Os dois sindicatos que cuidam dos interesses do funcionalismo enfrentam dificuldades em mobilizar os funcionários. O 13º salário atrasou pela primeira vez neste século. Outros benefícios também seguem se arrastando na burocracia, como as licenças-prêmio. Os sindicalistas, combativos há quatro anos, inclusive com greve, conversam, conversam e conversam...

Quem utiliza hospitais como a Santa Casa sabe - com pós-graduação - o sufoco no atendimento público de saúde. As esperas para consultas em algumas policlínicas parecem tempo de gestante. A Prefeitura fez festa para (re)inaugurar um hospital, o dos Estivadores, que permanece fechado. Três datas diferentes só para a abertura da maternidade.

A dívida da Prefeitura explodiu em quatro anos e empresas como Prodesan e Cohab permanecem na conta sem justificar suas existências. Os moradores da Vila Telma conhecem, de carteirinha, a lentidão, ou melhor, a paralisia da Companhia de Habitação. Até hoje, o conjunto habitacional que seria construído para as vítimas do incêndio está na fundação, com a promessa (entenda, chute!) de inauguração em 2018.

Agora, há um segundo grupo, de centenas de desabrigados, do incêndio no Caminho São Sebastião para esperar por palavrório de quem perdeu dinheiro internacional por não executar um projeto de revitalização na Zona Noroeste.

A Santos com atmosfera parisiense sumiu depois do final do Horário Eleitoral Gratuito. As más notícias são dadas em doses homeopáticas, para que os pacientes se acostumem com os sintomas da doença.

Santos segue em silêncio. Ficaremos mudos até 2020?

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

A festa à fantasia


Marcus Vinicius Batista

O prefeito de São Paulo, João Doria, caiu no conto do assessor mal preparado. Ou sucumbiu à mordida da mosca azul, que inocula o vírus do poder. Ou aceitou alguma baboseira de guru corporativo, vestida de marketing pessoal.

Só pensando desta forma para digerir que um empresário experiente como ele aceite, com sorriso no rosto, a demagogia de se vestir de gari por um dia. O que o prefeito deseja provar? Proximidade com o povo? Capacidade de se sentir como seus funcionários, que recebem num mês o que ele gasta num almoço?

Os políticos brasileiros costumam incluir no protocolo de estreia uma festa à fantasia. Vivenciar o problema alheio, muitas vezes crônico e de solução a longo prazo, poderia representar o primeiro passo de uma nova administração. A demarcação hipócrita de território perde a magia assim que começa. E olha que acaba mais rápido do que os quadros “...por um dia”, exibidos na TV.

Prefeitos adoram, por exemplo, transferir gabinetes, como se mudar de endereço os permitisse “sentir” melhor um cenário que qualquer eleitor conhece na pele. Esta mediunidade política normalmente resulta em promessas recicladas, programas velhos e obsoletos com novo sobrenome e paralisia depois que a poeira baixa e a imprensa vai embora.

Prefeitos decidem trabalhar em hospitais como se não soubessem que faltam remédios, consultas levam meses, médicos abusam nas ausências, entre outros sofrimentos tradicionais. Políticos não precisam frequentar hospitais que nunca usariam. A caneta e a competência têm o mesmo valor em qualquer sala com ar-condicionado.

O prefeito de Santos, Paulo Alexandre Barbosa, assim que assumiu o governo, há quatro anos, resolveu andar de ônibus. Chegou às seis horas da manhã, na Zona Noroeste, para conferir as dificuldades dos passageiros em transitar pela cidade. A tal da mobilidade urbana. Feliz ideia de quem o alertou que não precisava repetir a encenação. Quatro anos depois, os problemas nos ônibus da única empresa operadora seguem os mesmos itinerários. Só que com wi-fi e ar-condicionado para algumas linhas.

Verdade seja dita que tomar transporte coletivo não é exclusividade dos tucanos. Marta Suplicy, entre outros petistas do passado e do presente, também gostava de se exibir no metrô em horário do rush. Passageiros que esperassem um pouco mais e dessem lugar à corte da então candidata/prefeita.

João Doria se enfeitou de gari para fantasiar uma nova cidade vestida de demagogia. Um novo figurino que o coloca na tradição política que inclui pastel na feira, refeição de arroz e feijão no Bom Prato, sinal da cruz em missa, joelhos ao solo e mãos aos céus em cultos, pontapé inicial em partida de futebol.

Na política, ser gari por um dia (ou poucas horas) é a antecipação do Carnaval, onde o pierrô que lacrimeja somos nós.

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Uma observação:
no dia 6 de janeiro de 2007, publiquei meu primeiro texto no jornal Boqnews. Dez anos e 403 colunas depois, tenho que agradecer aos meus colegas de redação, editores e leitores por acompanharem meus escritos. É com orgulho que digo: muito obrigado! 

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Brincando de Lego


Hospital dos Estivadores de Santos - Foto: Diário do Litoral

Marcus Vinicius Batista

Políticos são sujeitos brincalhões. Adoram uma vida lúdica com seus eleitores. Brincam, por exemplo, de polícia e ladrão. De pega-pega, de esconde-esconde, queimadas, joão bobo, brincadeiras que sabemos quais papéis eles preferem escolher.

Santos adotou, a partir de 2010, um tipo de brincadeira mais moderna, compatível com as preferências das crianças no século 21. Nada de tradicionalismo. A ordem é ser futurista ou ao menos atualizado, conforme a popularidade da indústria.

Os políticos, visitantes ou nativos, aderiram à moda do Lego, aquele brinquedo de montar peças, tradicional, mas que se repaginou para as tendências da cultura pop. Esta fase de desenvolvimento das crianças começou com o primeiro brinquedo, presente de 12 de outubro, não exatamente na data, até porque pai político nunca entrega nada no prazo.

Na ocasião, os políticos se reuniram para celebrar o presente. Era uma ponte, pedida e implorada em cartinhas para o velhinho, manifestações, gritos na imprensa, birras de deitar em corredor de supermercado.

O encontro foi no Ferry-boat. Um monte de gente reunida para celebrar a ponte entre Santos e Guarujá. Uma maquete Lego digna de vitrine de loja de shopping. No ano seguinte, um dos políticos mandou quebrar o brinquedo, talvez revoltado porque não foi ele quem deu o presente, provavelmente também porque não gostava do amiguinho dono da festa. Não era desmontar, era jogar no lixo mesmo.

Esta semana, eles retomaram a brincadeira do Lego, estimulados pelo espírito natalino, porém aquele pai que divide o presente por partes. Diz que é muito caro; por isso, um pedaço do Papai Noel, outro do Coelho da Páscoa, outro no aniversário. Mas se prepare: ele ou a criança vão esquecer uma das partes no meio do caminho.

Toda a trupe estava lá para entregar a nova versão do Lego. A versão Hospital dos Estivadores. Seguindo o comportamento politicamente correto e a crise econômica, o brinquedo é de segunda mão. A estrutura das peças é antiga, passou por reciclagem, presente para tempos de cinto à beira do enforcamento.

A questão é que os pais políticos acreditam que as crianças-eleitoras não se comportaram bem. Como punição, cortaram a fita, mostraram o brinquedo e o guardaram na caixa. Agora não! Vocês vão receber as peças aos poucos, para pensar no que fizeram. Só faltou o chapeuzinho de burro na molecada.

Depois do prédio, a próxima peça do Lego é a maternidade. O Natal já passou. O réveillon também ficará para trás. Janeiro? Carnaval, entre lantejoulas e confetes? Os próximos pedaços ainda estão indefinidos. Afinal, o 13º salário atrasou, a crise está brava, o orçamento ficou quase no miojo e pão com ovo.

Paciência. Estes políticos adoram uma brincadeira de mau gosto.


quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

O incêndio

Morador procura por pertences - Foto: Rodrigo Montaldi/DL

Marcus Vinicius Batista

Não consigo imaginar a sensação de perder minha casa. Seria mentira se escrevesse que sou capaz de dizer: “sei como você se sente.” Não há racionalidade possível para descrever esta perda.

A casa é parte de nós. É ali que depositamos a concretização de nossos sonhos, a conquista de nossos resultados, o investimento de esforço, dedicação, resiliência, amor. A casa é um pedaço traduzível de nossa identidade.

Somos o nosso quarto. A cozinha. A sala. O cômodo único, que abriga objetos, presentes, a história em cada uma das páginas adormecidas numa prateleira. A casa, mesmo quando é provisória, representa a motivação viva para nos tirar dali. Ou mexer nela. Reformá-la. Qualquer ampliação é a resposta mais imediata de que crescemos na vida, de que progredimos em alguma coisa.

É em casa onde ficam os registros de nossa biografia. Os aniversários, as reuniões, o Natal, por pior ou melhor que tenham sido, ali residem as memórias, o combustível que afirma - de forma categórica – quem somos.

Um incêndio como o do Caminho São Sebastião corrói as entranhas de quem vivia lá. As 800 pessoas viram o fogo consumir seus livros de História pessoal. A obrigação de sair do zero quando a rotina corre no negativo, das dívidas do que compraram e mal puderam usar, do patrimônio pequeno erguido com horas e horas em empregos ruins.

Um incêndio incinera de várias maneiras. O fogo é capaz de acordar outra parte da cidade, que vê a obrigação de ajudar como um posto de emergência. Doemos. Ajudemos. Colaboremos com roupas, produtos de higiene, alimentos e remédios. Sabemos que não é possível reconstruir aquelas vidas como elas eram até agora, mas podemos auxiliá-las a diminuir a dor, ainda que não possamos senti-la. Basta sabermos que machuca muito.

Um incêndio também cria oportunidades. É a chance de pensarmos, como cidade, nesta fatia da própria cidade. Por que não temos políticas públicas para aquele endereço? Por que aceitamos como natural o título de cidade com a maior favela de palafitas do Brasil? Por que jogamos fora outras chances, em outros incêndios, como Ultracargo e Vila Telma?

O momento é de lamber as feridas e socorrer as vidas que precisam de recomeço. Mas, depois do rescaldo humano, é preciso conversar sobre Santos.