terça-feira, 20 de novembro de 2018

Consciência Negra pra quê?

Lima Barreto, escritor brasileiro discriminado
dentro e fora do sistema manicomial

Marcus Vinicius Batista

Sou um homem branco de classe média, de alta escolaridade, que vive num centro urbano de excelentes condições socioeconômicas. Hoje, num dia de folga, sem os empregados do comércio e das casas ao redor, sem a coleta de lixo, sem as mulheres que varrem as calçadas da minha rua, sem os moradores de rua que visitam a armação de metal, a casa dos nossos restos, durante a madrugada, eu poderia perfeitamente perguntar aos meus vizinhos: Dia Nacional da Consciência Negra pra quê?

Poderia também questionar os frequentadores da academia da moda, que fica na esquina de casa. Poderia também indagar a maioria dos meus colegas de trabalho, quase todos professores universitários com seus títulos e honrarias. Consciência Negra pra quê?

Eu poderia confirmar a dúvida de uma amiga de faculdade, que vivia entre o comércio no Gonzaga e o prédio de alto padrão no Campo Grande, a um quilômetro do trabalho dela. Onde estão os negros em Santos (a cidade onde moramos)?

Poderia ainda colocar em debate – na verdade, sucessivos monólogos de confirmações de tese – a questão posta por um colega de futebol, anos atrás. Ou uma dúvida nada infantil de um aluno de universidade, que prefiro dizer que se matriculou em minha disciplina, mas a assistiu com aqueles fones de ouvidos resistentes ao barulho de britadeira. Por que não temos o Dia Nacional da Consciência Vermelha? Por que não temos o Dia Nacional da Consciência Humana?
Sou um branco, num país onde a maioria das pessoas são negras ou pardas, esta última uma classificação peculiar da cultura brasileira, uma parcela da sociedade que preferia (já explico o verbo no passado) o silêncio sobre o racismo, quando defende uma fantasia chamada democracia racial e suas derivações delirantes.

Escrevo há anos sobre o tema. Escrevi uma dissertação de mestrado sobre o assunto. Levo o problema para sala de aula, para uma plateia majoritariamente branca, todos os semestres. Ouço os argumentos brancos, os da negação, e busco refutá-los com informações, com serenidade. E testemunho como as mudanças estavam acontecendo de maneira lenta; lenta, mas gradual.

Não tenho mais ânimo para argumentar com estatísticas. Se alguém duvida de que o Brasil é desigual até a alma (sem cor, aliás), faça uma pesquisa chinfrim na Internet. Qualquer ângulo: saúde, políticas públicas, sistema prisional, segurança pública, universidades, política e até futebol. Se está com preguiça, ande na rua e converse com as pessoas. O racismo só não aparece para os cegos, surdos e mudos de consciência política.

Se não quer sair de casa, acesse qualquer rede social. Ali, você verá o que mudou. Não deixamos de ser racistas. Passamos a acreditar que é possível ser racista sem maiores consequências. Autorizados ou não pelo próximo Governo, muitos saíram do armário da ignorância e da vergonha, se vestiram de colonizadores e resolveram falar como personagens de novela de época do século 19.

O palavrório discriminatório saiu da negação, em muitos cenários, para a agressão com nome e sobrenome. Se no Planalto pode, por que não poderia na terra batida gourmet?

Jamais saberei o que é o racismo, na combinação cor da pele e posição social, no sentido mais profundo, aquele que dilacera a essência, aquele que corrói a identidade e a dignidade de alguém. Ao conhecer sua existência, porém, é vital não ficar calado ou me omitir pela inércia da falsa naturalidade das coisas.

Não é porque uma parcela estúpida se sente legitimada a vomitar sua boçalidade travestida de inteligência que deveremos aceitá-la como parte das relações humanas. O racismo é uma falsa característica humana, ela pertence aos selvagens.

Como disse recentemente a antropóloga Lila Schwarcz, o racismo brasileiro diz respeito aos brancos, pois é provocado por eles. E, desta forma, o ativismo branco é essencial para que seus supostos pares de cor se retraíam na vergonha, na mediocridade e no crime que cometem a cada vez que abrem a boca na mesa de jantar ou escondidos atrás de uma tela de computador.

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Mais Médicos: quem se importa?


Marcus Vinicius Batista

Este texto não é para você, meu costumeiro leitor. É um texto para aqueles que, provavelmente, por falta de acesso não o lerão. É para quem terá uma infinidade de problemas mais urgentes do que usar uns minutos para uma reflexão política.

Vivo numa cidade onde muitos não se importam com a saída de profissionais que pertencem ao programa Mais Médicos. Não se tratam de cubanos, alienígenas ou corintianos. Trata-se de pessoas que, dentro de sua invisibilidade, dependem deste programa para não morrer de causas que deveriam estar nos livros de História sobre Idade Média, como diarreia e infecção urinária.

Vivo numa cidade onde muitos reclamam dentro do que consideram ser um direito dos privilegiados, uma expressão contraditória em si. Privilegiados em ter plano de saúde, mesmo que tenham que esperar três meses por uma consulta com um médico que os atenderão por 15 minutos porque precisa receber um monte de pacientes, pois – como privilegiado também – recebe uns R$ 30 por consulta. Aliás, sem garantias de pagamento porque um erro num formulário burocrático vai significar “pagamento indeferido”.

Não precisamos do programa Mais Médicos porque entendemos que nossa rede hospitalar é suficiente para atender a todos, principalmente aqueles que podem acionar a rede de favores, do médico que é primo do primo, amigo da ex, tio do chefe, o profissional capaz de arrumar um leito para internação do nosso parente. O parente que pagou décadas por impostos, assim como nós – os pedintes de favor -, mas que desprezamos o SUS porque é ruim e, por isso, não serve para a classe média que atira verbalmente no alvo errado.

Não precisamos do programa Mais Médicos porque, muitas vezes, a minha cidade de muros simbólicos possui uma farmácia em cada esquina nos bairros “bons” (os nossos), fingindo descontos já embutidos no preço da concorrência quase cartelizada, mas que alivia nosso ego que adora um discurso fraudulento de lesa consumidor. O consumidor que acha que leva vantagem, como se estivesse num cassino, local onde vantagem é utopia.

Dispensamos o programa Mais Médicos porque podemos entrar no cheque especial – alguns até fazem empréstimos consignados – para pagar pela consulta particular, que será amanhã cedo em vez dos três meses de espera. Na mentalidade do consumidor, podemos pagar R$ 350 pelos mesmos 15 minutos – ou um pouco mais para justificar o “investimento” e receber uma lista de exames que será bancada pelo mesmo plano que paga esmolas aos médicos. Mas cuidado: dependendo dos exames, senha, fila, auditoria, culpa do sistema, atendente uniformizada pior remunerada do que você e que te olha com cara de misericórdia.

O programa Mais Médicos não tem nada a ver com a origem dos profissionais, para um paciente que nada tem. Ele somente expôs o que não queremos ver, a podridão que permeia as relações entre Governo e população, governo de todas as camisetas, caro amigo que julga um grupo corrupto e os demais limpinhos. Não vivemos num filme de super-heróis baseados em histórias em quadrinhos.

O Mais Médicos coloca na vitrine – com 8 mil profissionais – o quanto somos vários países em um só. Vários países na sua cidade. Falta saúde digna de seres humanos, com seres humanos e para seres humanos na cidade onde você mora. No mesmo bairro que você reside. Do outro lado da rua.

As pessoas não precisam de médicos cubanos. Elas precisam de médicos, assim como precisam de outros tipos de serviços públicos. Não é preciso andar tão longe. O buraco da saúde pública está no posto há uma quadra e meia da minha casa. Da sua, caro leitor, a variação da distância não o deixará cansado do passeio que nem podemos chamar de caminhada.

Este texto não é para aqueles que ficarão sem os médicos e que podem morrer de diarreia, infecção urinária e outros problemas medievais. Este texto é para você, leitor, que queima dinheiro em impostos e se vê como privilegiado porque paga para esperar por três meses por consulta. Contraditório, não? Sim, como nossas ações diante do que deveria ser feito neste país.

terça-feira, 6 de novembro de 2018

Resistir é legítimo!


Marcus Vinicius Batista

Os apaziguadores podem ser sujeitos perigosos. O perigo mora na ambiguidade de suas atitudes e como elas podem usadas pelos lados do balcão (sempre mais de dois). A turma do deixa disso pode pecar pela ingenuidade, vestida de Poliana enquanto um dos lados ladra e ladra no limite da agressão.

O pacifismo, quando mal intencionado, mascara a crueldade, camufla as intenções de enfraquecer quem pensa e age diferente, vendendo e comprando a ideia de que todos os envolvidos estão de bandeira branca erguida. Na verdade, bandeira que encobre o desejo por sangue alheio daqueles que incentivam a falsa palavra de paz.

Independentemente do que carregam atrás do palco, os apaziguadores acabaram, no passado recente, por comprar um discurso distorcido de quem virou situação pelo voto, antes pelos conchavos, na política brasileira. Os mensageiros da paz engoliram a ideia que resistir significa, no automático, torcer contra, pensar que quanto pior, melhor, expelir ranhetice, não saber perder. De alguns, pode ser. De todos, é se sentar na infantilidade generalizada.

Esta postura esconde, de maneira voluntária ou não, uma série de pontos. O autoritário deseja, em todos os níveis, ser a única voz. O autoritário goza ao som das próprias notas, sem ruídos, sem interferências, sem contestações. Resistir é mostrar a ele que a voz pode ter vários timbres, diversos autores, inúmeros instrumentos. A resistência aponta para a mudança de repertório com alguma influência de todos os músicos da orquestra, e não exclusivamente do maestro.

O segundo ponto é a própria existência da democracia em si. A democracia representa o regime da maioria e um governo só cresce, só se mostra efetivo quando conversa e ouve, de fato, todos que se sentam à mesa. Resistir pode elevar o nível do debate, apontar novos ângulos, olhar novas perspectivas que não podem ser esquecidas por quem se senta à cabeceira da mesa e hoje dá as cartas.

Resistir é fazer oposição. E fazer oposição é diferente de ser do contra. O ser do contra, cedo ou tarde, se esvazia no próprio discurso oco, sem ideias oxigenadas, sem propostas que arejem o ambiente político. A resistência nasce até com o risco de ser plagiada, quando o poder não sofre da arrogância cega da tirania. O poder inteligente é capaz de aproveitar os questionamentos da oposição igualmente sagaz, nem que seja com o objetivo maquiavélico de tornar seus adversários figuras decorativas.

Resistir é sinônimo de liberdade, de livre trânsito político, de pensar na coletividade, de escapar do destino de repetir mensagens superficiais a serem ruminadas pela manada. Resistir é ser livre para escolher caminhos de proteção contra os excessos do poder constituído, exercitar a fiscalização, vigiá-lo de perto para que não confunda liberdade com ausência de limites, equívoco que resulta em violências de todas as ordens.

A resistência não tem cor de partido derrotado nem cheiro de sigla contaminada pela mosca azul que voa nos palácios dos acordos, porcentagens e dinheiro vivo guardados em todos os buracos do corpo humano e institucional. Resistir é ecumênico, inclusos os que votaram no próximo ocupante da cadeira, caso ele e sua turma decidam pela estrada das patotas, das panelinhas, dos amigos dos amigos. A resistência veste a toga não para se beneficiar, mas para indicar que governar significa mais do que projeto de poder pessoal ou de um grupo.

Resistir é política saudável. Sem contraponto, a democracia adoece, as instituições balançam as pernas, os donos do poder se embriagam sem que ninguém tenha força para fazê-los contornar alucinações e delírios de grandeza. A resistência pode ser o remédio para a soberba política, para o complexo de Deus (ou o caráter messiânico) que acomete e acometeu muitos “pais” da República brasileira.

Os apaziguadores, quando pedem que a resistência desapareça, se esquecem de um ponto vital: quem é situação hoje foi ou pode ter sido oposição ontem. Quem estará no poder amanhã compôs os quadros da oposição agora há pouco ou ontem. Resistir é parte da democracia. Sem ela, temos tirania. Sem resistência, caminhamos sem freios para o totalitarismo.

Nele, o pelotão de fuzilamento atira na verdade, no diálogo, no debate, no pensamento crítico, na contestação, não exatamente nesta ordem de corpos ao solo. A lista de cadáveres inclui os que quiseram costurar panos quentes.

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

O juiz


Marcus Vinicius Batista

O maior humanista que conheci tem cerca de 85 anos. É um sujeito de hábitos, entre eles, estudar todos os dias. Ler, escrever, dialogar, incentivar a produção de conhecimento alheio. Sou fruto desta frase.

Quando discordamos, ele sempre me presenteia com ponderações, com análises – conceito diferente de opinião -, com sugestões de textos, links ou outras fontes de informação que possam reforçar a conversa entre nós. Jamais partiu para a desqualificação pessoal. Jamais se colocou numa posição de superioridade ou discursou em tom professoral. Sempre me ensinou sem nunca me dar aula.

Como um humanista, ele sempre entendeu que o amor pelo conhecimento nunca se coloca acima dos homens. Que os homens necessitam do conhecimento a favor de si como coletividade, nunca como individualismos. Ajudou muitos em momentos difíceis, formou inúmeros em contextos iniciais de suas vidas, orientou quem ansiava por aprendizagem, inclusive aqueles que o utilizaram como trampolim. Ossos do ofício. Sedução pela utopia filosófica, talvez.

Este humanista foi juiz de Direito. Desculpe, é, pois não se trata de uma questão de estar, de almejar saltos vantajosos ou oportunos. Ele chegou no alto da hierarquia do Poder Judiciário do Estado de São Paulo e ali se aposentou. Sempre por méritos próprios, nunca por conchavos, acertos ou trocas de favores. Estudou como um condenado à prisão perpétua para concursos, inclusive enquanto criou cinco filhos ao lado de uma mulher de visão, fibra e postura semelhantes. Todos, em sua casa, souberam compreender o valor que se deve dar para a construção do pensamento próprio. Sou testemunha ocular.

Este juiz nunca desejou os holofotes. Nunca se envolveu em polêmicas pela imprensa, concedeu entrevistas coletivas para absorver os louros de uma decisão judicial ou posou para fotos com políticos em eventos de cunho esquisito.

Como juiz, lutou para se aproximar da isenção e consistência máximas, da neutralidade, consciente de que tais termos são falhos e limitados, mas que devem ser perseguidos com obsessão para se aproximar de uma sociedade menos desigual, mais equilibrada, mais justa (com o perdão do trocadilho).

Este juiz jamais tentou interferir em decisões do Poder Legislativo feito deputado ou agir como substituto eventual do Poder Executivo. Conhecia suas fronteiras e atribuições e atuava com a distância de quem é responsável por definir, a cada canetada, os rumos da biografia de outra pessoa. Sempre foi politizado, justificou suas escolhas em âmbito privado, mas se esquivou de maneira obsessiva da política partidária e das tentações dos corredores dos palácios.

Ele escreveu livros (ainda o faz), incansável na busca do entendimento do humano. Sempre repudiou, óbvio dizer, a corrupção. Curioso quase patológico, estudou tão fundo o tema que produziu um livro de 600 páginas. Coincidência ou não, a obra foi editada por uma editora portuguesa, não por estas bandas.

Ele falhou diversas vezes como qualquer sujeito, na vida cotidiana. Cultivou defeitos e manias como todos nós e tentou revê-los na velhice, em exercícios de autorreflexão. Autorreflexão porque a leitura de homem como ser biopsicossocial e espiritual estava incompleta até pouco tempo.

A percepção da incompletude só veio aos 75 anos, quando quebrou resistências internas, descobriu a Psicanálise e se sentou na poltrona dos pacientes em terapia. “Por que não descobri isso antes?”, me perguntou entusiasmado, certa vez, num restaurante.

Na última vez que nos encontramos, não podemos conversar muito. Ele comprou meu livro novo. O anterior, adquiriu pela terceira vez. Dei risada, autografei e perguntei:

“O senhor sabe que comprou pela terceira vez?”

“Não tem problema. Vou dar de presente.”

Dois de seus filhos foram para o mundo jurídico. Outros dois foram para a Saúde. O mais novo milita na Educação. Todos admiráveis pela politização, senso de Justiça, caráter e decência no trato com o humano. Repetem, no cotidiano, as qualidades expostas acima, não como mérito, como obrigação inerente às relações humanas.

O humanista mais importante que conheci deixou de ser professor há uns dez anos. Quando perguntei o motivo, ele me disse estar cansado. Cansado das pequenas corrupções, assim vistas como menores no ambiente institucional. Cansado dos plágios, das negligências, da política provinciana e feudal em muitos ambientes do Ensino Superior.

Ele preferiu estudar em casa, aprender sempre, escrever quando possível. “Estou aprendendo húngaro”, me contou há quatro anos. Era seu décimo idioma, na minha contagem, pois nunca o vi se gabar disso, sequer contabilizar em público. Achei desnecessário perguntar.

Este juiz, cujo nome preservo pelas óbvias motivações descritas ao longo deste texto, nunca quis ser celebridade. Nunca cortejou lado. Jamais seria ministro. O humanista não fez ou faz política partidária. Ele tem a alma de um juiz.

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Carta ao eleitor (quase) silencioso


Marcus Vinicius Batista

Caro eleitor punitivo,

Com a vida voltando ao normal e o novo presidente agindo dentro de sua normalidade, você acreditou que poderia se despir da fantasia social de domingo. Não precisaria mais ser eleitor, cumpriu sua obrigação, e era hora “de deixar o homem trabalhar”.

Você conseguiu o que desejava e é seu direito. É importante dizer, não a você, mas aos truculentos, que é direito. Só que há uma distância entre colaborar com a derrota do adversário – rejeitado por você, não por Deus! – e evitar as discussões cotidianas sobre política.

Numa eleição sem precedentes, caro amigo, política ainda será rastilho de pólvora por algum tempo. Ainda bem. Você não pregou que era fundamental acompanhamento contínuo de quem exercita o poder com mandato. Democracia é assim. Assim talvez o seja para ti.

Sei que você se enxerga como uma pessoa moderada, típica da classe média, pagadora de impostos, trabalhadora em excesso, horrorizada com tanta corrupção. Não questiono este discurso, e creio que seja uma postura, de fato. Você é meu espelho, você mora em meu microcosmo.

A diferença entre nós é o fardo que colocou no seu lombo. Agora que a raiva começa a se diluir no dia-a-dia, você me dá sinais de que o voto emocional, o voto de indignação, o fez simbolicamente violento. Estender o próprio limite, antes desconhecido, pode machucar. Isso talvez o deixe constrangido, comportamento que transparece nas entrelinhas das rodas de conversas, das discussões do intervalo de trabalho, nos elevadores e até no banheiro.

Diante desta tarefa rara, você busca escapar das conversas sobre política. Elas tocam geralmente nos atos do presidente a ser empossado, na sua equipe, no seu palavrório de campanha, nas especulações de nomes de caráter e gosto duvidosos. Você não se manifesta, abaixa a cabeça, sorri de canto de boca. Mea culpa seria necessário? Não sei, emoção e razão caminham juntas dentro de nós.

Como se considera um sujeito ponderado, avesso à desqualificação do outro, equilibrado nas opiniões e nos atos, você evita o argumento falho, mas real, que justifica seu voto. Por que falar do perdedor? Um mérito no pós-jogo. Ele é passado no Executivo federal; por sinal, há dois anos, embora suas heranças povoassem seus pensamentos por semanas até a decisão de clicar outro número na urna eletrônica.

Quem sabe o silêncio calculado mascare a dificuldade em encontrar argumentos consistentes no novo? Você pensou nisso antes? Defender sua escolha, sem cair na tentação de atacar o outro?

Lembre-se: a escolha foi seu direito. Mas assinou um papel pelas razões erradas? Não jogue nas costas do tempo, não o utilize como solução do destino. O tempo é volúvel por natureza, perceptível de forma particular por cada um de nós.

Sua incerteza é o preço do voto útil, do voto que guilhotina o réu nosso de cada eleição. Assim, seu silêncio é justificável. Na dúvida entre a sanidade e a confissão de obsessão, melhor ficar em pose monástica, com sorriso de Dalai Lama.

Você votou também pela dúvida. E se apoia nela quando se encoraja em participar da conversa. O benefício da dúvida para o novo presidente. Você se mostra um sujeito otimista, mas que legisla em causa própria, quase um Poliana.

“Vamos esperar”, você diz.

“Vamos torcer”, você reforça.

“Ele não vai fazer tudo o que falou”, você teme.

“Deus vai nos ajudar”, você apela, sem reconhecer que transfere responsabilidade.

Certamente, o Altíssimo tenha ocupações demais para nos informar, outra vez, que não nasceu no Brasil. Qualquer argumento morre de inanição depois de cinco séculos de violência.

Você caiu em si. Você é diferente daqueles que acompanharam Bolsonaro desde o início da campanha. Estes eleitores não são da mesma crença que você. Eles têm fé no homem. Compartilham de seus valores, muitos até se expõem, inclusive de forma violenta, em nome Dele. São convertidos, parte do processo.

Você votou por descrença e agora, nos olhares, na fala um tom abaixo do normal, na saída à francesa da sala, indica que a racionalidade faz com que seu medo mude de endereço. Você tem medo do que fez? O liquidificador de sentimentos é tão previsível nesta altura quanto foi seu voto. Só que a raiva, ensina a cultura popular, é o veneno que tomamos enquanto desejamos a “desgraça” do outro.

Como Deus virou água na boca dos políticos, só te resta reconhecer os pecados, caso os julgue deste modo. Nunca vou apontar o dedo para ti. O “te avisei” será seu, se houver a dor única do arrependimento.

Compreendo seu sofrimento, que se parece com o meu, ao ver a política se vestir de guerra, com suas propagandas, derrubando soldados feito pássaros pelas mãos de um menino inconsequente e ressentido, armado com uma espingarda de chumbinho.

A má notícia é que ele não governará para você. Ele deveria governar para todos, mas os primeiros passos indicam que o caminho da seletividade está definido. Não silencie. Dialogue. Ouça, acima de tudo. Proponha. Acompanhe de perto.

Estes são os primeiros degraus para quem fechou os olhos com raiva e agora percebeu que talvez tenha falado demais. Ou apertado um botão vermelho, o da emergência, não o do partido-gatilho de obsessões eleitorais.


Já começou!


Marcus Vinicius Batista

O funcionário do supermercado fechou o caixa e virou a placa que informava a suspensão do atendimento. Um consumidor, na faixa de 45 a 50 anos, ignorou o aviso e começou a colocar suas compras no balcão.

O funcionário, de maneira educada, pediu:

— Senhor, por favor, coloque as mercadorias no caixa ao lado. Aqui está fechado e, se o senhor colocar as compras, outros clientes vão achar que o caixa está aberto e vão formar fila.

— Vou colocar minhas compras sim e você vai me atender!, o cliente retrucou aos gritos

— Sinto muito, mas eu tenho direito a um intervalo para ir ao banheiro. Aquela moça vai me substituir e, daqui a pouco, haverá atendimento.

O rapaz, negro e homossexual, virou o corpo para deixar o caixa, quando ouviu o senhor dizer, no mesmo tom alto, pelas costas:

— Ah, a moça vai fazer xixi sentada? Olha, gente, a moça vai fazer xixi sentada.

— Vou sim, senhor, e o senhor não tem nada a ver com isso.

Todos os clientes que estavam nas filas aos lados do caixa ouviram a conversa. Apenas uma mulher respirou fundo e sussurrou: “Já começou!” Todos os homens da fila permaneceram em silêncio.

**********

Enquanto o próximo presidente da República oscila entre as bravatas de campanha e os anúncios iniciais sobre ministérios, seus súditos voluntários começam a colocar as mangas e a irracionalidade de fora. Há vários registros de casos de violência, entre ameaças, atos caricaturais na Internet e registros em delegacias.

A ressaca eleitoral ainda não se dissipou e, mesmo quando acontecer, será difícil conter os comportamentos agora explícitos de quem se sente autorizado, legitimado pelo líder político em suas palavras de ordem contra quem não se encaixa em seu estereótipo de menino valentão.

Os agressores, em todos os episódios que testemunhei, se intitulam cidadãos de bem (voltarei neste conceito em outro texto). Consideram-se, na sua estupidez de baixa cidadania e certezas dogmáticas, legítimos representantes acima de lei e da ordem. Querem, na verdade, privilégios dados aos escolhidos (ou mantê-los), seja pelo discurso irresponsável dos políticos, seja por Deus – quem seria? – que tem seu nome surrado em vão por gente que dá a impressão de cultuar os princípios daquele que foi expulso do paraíso.

A eleição serviu, entre outras coisas, para nos esfregar na cara o quanto somos uma população que chafurda em violência cotidiana, em preconceitos, em intolerância, em mesquinharias, na capacidade de enxergar o outro como diferente, como ser humano. Gente que defende a morte de gente apenas por ser gente...diferente. E olha que, muitas vezes, a diferença se dá somente na vida pública, na máscara do personagem.

O novo presidente tem a obrigação moral de reduzir sua valentia atrás das telas e apaziguar aqueles que pregam truculência em seu nome. Se já é um irresponsável quando faz apologias violentas, será cúmplice quando se sentar na cadeira em janeiro. O problema é esperar uma postura distinta, além dos limites éticos e intelectuais que talvez Bolsonaro não possa nos entregar.

Em vários ambientes, vejo discursos de união, de redução de danos, de expectativas positivas para o novo Governo. Soam mais como justificativas para o cheque branco assinado em vez leituras concretas. Até porque Bolsonaro se elegeu sem pouco propor. Estamos acompanhando seus interesses mais explícitos na economia e na política palaciana nos últimos dois dias, muito pouco para atender 55 milhões de pessoas, no mínimo.

O discurso apaziguador vem, na maioria, daqueles que votaram em outros candidatos e fizeram a escolha por Bolsonaro para punir o Partido dos Trabalhadores. Mas esta fala está se misturando com fatos previsíveis.

O preconceito e a selvageria, em nome de Deus, da família ou quaisquer outras razões cínicas e hipócritas de muitos que não as praticam (conheço tantos assim!), saíram da sala de jantar e das mesas de boteco. Começam a se transformar em ações, que expõem a frágil fronteira entre a civilidade e a barbárie de quem cansou de interpretar o papel de tolerância, de ser humano.

O ciclo de estupidez só ficará completo quando estes sujeitos, muitos de classe média ou baixa e ausentes de crítica política, feito crianças numa democracia cheia de falhas, perceberem que o Estado truculento e seus súditos são míopes também para os “cidadãos de bem”. Que ser eleito significa muito mais do que esbravejar, de forma covarde, na fila do supermercado, como se pagar as compras o tornasse uma criatura acima das demais. Um feitor do “olha com quem está falando” que sonha em viver os tempos áureos das chicotadas nos moradores da senzala.

O feitor, mal sabe ele, só distribui lambadas porque o senhor dos escravos não gosta de sujar as mãos. Um dia, ele se cansa e troca a mão que faz sangrar. E envia, sem escalas, o feitor de volta à senzala.

O senhor, neste momento, está mais preocupado em fazer campanha, enquanto joga a conta nas costas de Deus e flerta com seus falsos profetas.

domingo, 28 de outubro de 2018

Rezar, temer, fiscalizar?


Marcus Vinicius Batista

Eu não rezo. Respeito quem o faz e crê nas respostas. Tenho minha fé, nunca a impus a sujeito algum, mas desconfio que meu Deus talvez seja diferente do de muitas pessoas. Meu Deus não se mete em política eleitoral. Meu Deus não agride adversários. Meu Deus não acende velas para maus defuntos, não importa a camiseta que vista, o líder religioso que fala em nome Alheio, edite textos sagrados ao bel prazer (e dinheiro) e abrace o candidato do versículo da vez.

A decisão das urnas neste domingo não é uma questão de oração. Vejo como uma posição a ser vista com o melhor dos olhares racionais. É preciso pensar, refletir sobre o cenário, mesmo que não alcancemos uma conclusão definitiva, melhor assim, aprender que política é bem mais do que gritar em rede social ou tirar sarro do outro como se eleição fosse clássico de domingo.

Aos eleitores de Bolsonaro, me permitam uma sugestão: tentem amenizar ou se libertar da obsessão pelo PT. A derrota foi punição suficiente para o partido. Caso contrário, só se confirmará a impressão da campanha eleitoral: retirar o PT do poder – algo já feito há quase dois anos – e colocar qualquer sujeito no lugar. Mais do que assinar um cheque em branco, seria também fornecer a senha bancária. Por favor, comemorem a vitória em vez de celebrar exclusivamente a derrota do adversário.

Aos eleitores do Haddad, outra singela dica: unam-se como adeptos de políticas sociais decentes; briguem por tolerância nas práticas cotidianas, não somente na retórica; e deixem o PT cuidar das suas próprias feridas. O Partido mereceu a lambada e tem a obrigação de limpar a casa. Ultrapassar o limite da promessa e provar que é capaz de se reinventar. Ser oposição é a chave do recomeço.

O novo presidente pode ser tudo, menos burro. Ele encabeçou uma estratégia de marketing brilhante para vencer, marcada pela alimentação da fantasia em torno de si próprio. Mas ele sabe que possui uma maioria apertada e boa parte está desconfiada da decisão que tomou. Basta ouvir as falas mais serenas de “vamos ver”, “o futuro dirá” etc. São frases condicionantes e vagas diante da desinformação do rumo a ser tomado. Medo de que ele transfira a senha do banco para terceiros?

Não podemos ser ingênuos de acreditar que o governo Bolsonaro será fiscalizado na unha. Muitos que prometem isso são os mesmos que ignoraram as trapalhadas do atual presidente depois do Fora Dilma se concretizar. Normal vindo de olhares pouco comprometidos e infantilizados sobre o que é fazer política. Não é preciso cobrar de ninguém que seja cidadão exemplar. Muitos se contentam com o título hipócrita de “cidadão de bem”. Sejamos nós exemplares.

Espero que os ativistas se mantenham unidos, ativos de verdade, além da contaminação dos discursos eleitoreiros que vez em quando renascem. Acabou a eleição. É hora de defender quem foi massacrado pela verborragia do novo presidente. Temer? O remédio é se organizar, dialogar, estabelecer estratégias, fortalecer e cobrar das instituições que ainda fazem o Brasil um país teoricamente democrático.

Somos humanos. Erramos. Escolhemos. Aprendemos. Refazemos. Tentamos. Observamos. Corrigimos. Refletimos. Sentimos. Acima de tudo, respeitamos. E erramos novamente. E corrigimos outra vez. Humanos.

Perdoem-me: Deus não tem a nada ver com isso. A decisão foi tomada por homens e mulheres, fiéis às suas consciências. Sem determinismos transcendentais, assumam suas ações, abracem suas responsabilidades como cidadãos e fiscalizem o novo Governo. Afinal, o voto foi seu! E não era pra valer?

Carta ao Fernando (a não ser lida – Parte I)


Marcus Vinicius Batista

Caro Fernando,

Quando passar a ressaca da festa, uma virada histórica sem precedentes, tenho certeza de que você vai colocar a mão na cabeça e pensar: venci de que maneira? E o que fazer agora? Como conquistar a outra metade que me rejeitou com veemência?

Você, certamente, não terá uma longa lua-de-mel com a vitória. A fiscalização será acirrada, ao menos nas primeiras semanas do seu governo. A curto prazo, haverá truculência, possíveis protestos, violência, nada incoerente do trajeto percorrido por esta campanha eleitoral, suja, sem debates, com raras propostas, inclusive da sua parte, convenhamos.

Muitos vão te acusar de ser um fantoche. O adversário, você sabe, o intitulava “poste”. É um ponto a ser contestado no poder. Assim como foi feito na Prefeitura de São Paulo, cidade territorialmente favorável ao quase nanico PSDB.

Espero que você reaja, como muita gente escreveu, conversou, bradou, pregou. Ao se sentar na cadeira do Palácio do Planalto, desejo que a criatura se volte contra o criador. Ou, pelo menos, ande com as próprias pernas. Você não estaria onde se encontra sem o apoio ou a chancela de Lula.

No entanto, até para ser decente com a figura de pai que tanto Lula gosta de cultivar, é preciso inseri-lo no lugar adequado da História. Lula é um líder, independentemente de seus atos, mas é a hora de pegar o boné. Não quero mártir sonhando com a capa de super-herói. Desejo um líder que saiba a hora de sair de cena e resolver seus próprios fantasmas.

Fernando, você tem a oportunidade única – com o poder em mãos – de reabilitar seu partido. Terceira chance, o que poucas pessoas recebem na vida. Limpe a casa. Estimule a punição de quem pecou além dos limites. Isso reforçaria a tais instituições, tão defendidas por você e por outros para manter a democracia de pé.

O PT te levou ao segundo turno. O PT quase provocou sua derrota. Você sabe o quanto o voto punitivo (anti-autoritário) colaborou com sua vitória. Dois candidatos com mais de 40% de rejeição. Foi uma eleição sui generis.

Não permita que os demais caciques rifem o partido outra vez. O PT precisa voltar a fazer jus ao nome que compõe essa sigla tão manchada pelos seus “companheiros”. É, creio eu, a última oportunidade de dedetizar um partido que passou por tantos buracos em quase quatro décadas. Que quase fechou as portas por causa do fedor exalado por uma minoria.

Fernando, você tem a obrigação de ser um presidente acima de todos. Todos quem? De saída, as lideranças que tentam sobreviver jogando e ditando cartas nas prisões. O PT não é apenas eles. O PT é aquele militante que vota com esperança. O PT é aquele que mudou de voto porque se decepcionou e ouviu tantos “eu te disse” depois de testemunhar a arrogância política de quem vislumbrou projetos de poder, e não de governo.

Tenho ciência de que você é um sujeito preparado para o cargo. Sei que, no máximo, saiu chamuscado do incêndio que corroeu aqueles que ajudaram a te construir. Mas é fundamental provar, inclusive para quem defende limpeza étnica, social e um monte de outros aspectos que justificam violência verbal, psicológica e física, que a democracia apanhou e segue de pé.

Não haverá outra oportunidade, caro presidente. Como professor, aprenda com os erros seus e de seus colegas, dialogue em vez de ser professoral, a arrogância dos didáticos, ensine seus adversários. Governe para todos e resista aos peixes podres que nadam sorridentes pelos corredores do Congresso Nacional. Vá além dos muros do Partido dos Trabalhadores.

Boa gestão! Um abraço!

Carta ao Jair (a não ser lida – Parte II)


Marcus Vinicius Batista

Caro Jair,

Não acho que o senhor seja o melhor nome para a Presidência do país onde nasci e resido. O senhor considera uma informação irrelevante, porém é preciso localizar meu lugar de fala. Não creio que o senhor esteja preparado para exercer o cargo ao qual se candidatou, mas tenho consciência de que o presidente, como figura política, é capaz de montar uma equipe que reduza danos ou possibilite avanços.

Imagino que, na festa da vitória, aconteceram muitos tapinhas nas costas, muitos parabéns, muitas promessas, muitos sorrisos, muitas outras coisas mais. Presidente, sinto dizer: a lua-de-mel será também curta para o senhor, como seria para seu adversário, caso ele tivesse vencido.

A lua-de-mel será restrita por razões diferentes. Sabemos que, entre as mentiras contadas por tantos candidatos, uma delas foi a distância da corrupção de sua candidatura. Não o acuso de coisa alguma, mas seus aliados – ligados em vários níveis a Deus, o Diabo e outros grupos que pulam entre as duas entidades – vão cobrar a conta da festa. E cobram sem pudor, sem misericórdia, rezando até. Assim o fizeram com o partido do seu adversário.

Sabemos também, caro presidente, que sua estratégia de campanha se transformou num caso a ser estudado, discutido – e jamais repetido – na História político-eleitoral. Seus eleitores não te conhecem. Votaram numa fantasia, num personagem construído e alimentado, inclusive pelo senhor, que reforçava o voto punitivo ao PT, a limpeza generalizada, os preconceitos, as pequenas violências cotidianas, o pensamento e as práticas da violência institucional.

O senhor tem total consciência de quanto a facada se tornou o divisor de águas nesta campanha. Jamais defenderia tal ato, mas também repudio o uso indiscriminado do vitimismo que o senhor tanto rechaça. A facada te fez fugir de um debate público, organizado, sobre propostas. Por quê? O que temia? Murchar a candidatura?

Meu maior medo é não ter a menor ideia do que o senhor pretende fazer como presidente. Um programa reduzido e vago – ainda que saibamos que programas são peças ficcionais, mas que insinuam a visão de um político e seu grupo de interesse -, e aparições por telas, tão artificiais e limitantes quanto os discursos que carregam, impostos, sem a chance de contestação, do contraditório, da continuidade da reflexão.

O senhor apostou num eleitor insatisfeito, punitivo em ambos os lados da moeda. Um eleitor que não te quer, quer a ausência do seu adversário, não o homem, e sim o partido, do poder. Um eleitor que acredita – em sua ingenuidade – que retirar um presidente é como expulsar um síndico incompetente na reunião do condomínio, na sexta-feira à noite.

Este eleitor, caro presidente, não te escolheu por ser quem é. Ele te escolheu pelo que o senhor representa. Jair Bolsonaro (falar em terceira pessoa significa um sintoma) é uma mentalidade, uma forma de viver para certas parcelas da sociedade. Se todo político sonha em entrar para a História, aí está a sua boa nova. Mas a que preço?

Nunca se esqueça, caro presidente. O senhor está onde está porque a democracia, ironicamente, permite que se fale contra dela dentro de si mesma. O autoritarismo, também vivido pelo senhor, não. Entre os autoritários, só abrem a boca as patotas, ainda assim cerceadas por sólidos protocolos e hierarquias rígidas. O senhor é um homem de posições rígidas, mesmo que sua biografia indique diversas flexibilidades pessoais. A coerência seria uma qualidade, não?

Presidente, seus novos amiguinhos vão mudar o tom da conversa em breve. Seus eleitores, tenho sérias dúvidas, talvez te cobrem um pouco. Seja pelo voto punitivo, seja pela mesma forma de ver o mundo, seus eleitores só queriam a mudança. Talvez a mudança de país, certamente a mudança de grupo de poder. Será que apostou certo? Será que as sombras não são as mesmas?

Jair, me perdoe, tenho quilos de dúvidas sobre o senhor como presidente. Certeza, quem sabe uma só e ela não precisa ser dita: o teor desta singela e curta carta explica.

Boa gestão! Um abraço!

sábado, 27 de outubro de 2018

Por que perdemos essa eleição? (ou A derrota acima de todos!)



Marcus Vinicius Batista


Conscientes ou em coma induzido, abrimos a Caixa de Pandora nesta eleição. Colocamos para fora – não nasceu hoje nem ontem – nossos piores sentimentos e perspectivas de mundo. Trocamos a chance de aprender com esta campanha pela prisão voluntária de nossas pequenas mesquinharias.

Perdemos a vergonha. O politicamente correto ou a lei mesmo mantinha muita gente com seus preconceitos guardados no fundo da gaveta do armário mais obscuro da casa. Aquele que armazena as tralhas.

Testemunho pessoas pedindo limpeza de outras pessoas, clamando pelo silêncio amordaçado de quem não pensa como elas, defendendo o extermínio absoluto do outro, tão impossível de conviver porque pode representar aquilo que mais se abomina em si próprio.

Perdemos a solidariedade, aquele sentimento que costumamos cultivar quando queremos parecer bons. Adotamos a máscara do cidadão de bem, termo que forma patotas e exclui os diferentes, num maniqueísmo raso (perdoe a redundância, é só para reforçar) que divide o mundo entre bons e maus e dispensa duas das características humanas: a contradição e a imperfeição.

Perdemos pessoas. Desfazemos amizades, ignoramos colegas, ofendemos parentes, esbravejamos em textos, áudios, imagens, histerias pontuais e estruturais. Perdemos pessoas por causa de políticos, que tanto desprezamos. Isso! Perdemos pessoas por sujeitos que viram as costas, convictos da falta de fiscalização, assim que as urnas se apagam. Repito: perdemos pessoas por causa de políticos, muitos deles capazes de nos agredir verbalmente a cada aparição pública.

Perdemos o outro como humano. Deliramos sobre outros sujeitos como se fossem coisas, por causa de suas escolhas, por causa de seus comportamentos individuais. Podemos jogá-los na vala comum, sem identificação, sem passado, sem história, mesmo que a História nos tenha mostrado tanta crueldade e bestialidade em nossos ancestrais.

Fingimos desconhecer o mal que nos habita, com a desculpa esfarrapada de “apenas cumprimos ordens”. Ou porque alguém falou. Ou porque é culpa do sistema. Ou porque só “trabalho” aqui.

Perdemos a capacidade de dialogar. Na nossa arrogância, julgamos sermos politizados só porque falamos de política. Falamos, gritamos, impomos, pouco debatemos, raramente aprendemos. Preferimos ganhar a conversa a qualquer preço, ainda que sacrifiquemos as pessoas ao nosso lado – aquelas que costumam importar.

Talvez façamos isso como ato reflexo dos candidatos que adoramos desde a semana passada. Típico de quem crê que a culpa sempre está no outro corpo. Por que não nos calamos de vez em quando?

Perdemos, como conseqüência, a capacidade de ouvir. Não estamos apenas cegos de ódio, mas surdos diante de qualquer voz que não seja a nossa, que também cacareja, que também digita muito e pouco escreve. O próximo presidente, rezo para que nos escute, deveria implantar um programa gratuito, em caráter nacional, que envolva cursos de Escutatória, conforme pregava Rubem Alves.

Perdemos o valor da verdade. Na hipocrisia e no cinismo de todos nós, adoramos cultuar quem matamos dia após dia. A primeira vítima de uma guerra, como explica o clichê. Não falo das pequenas mentiras cotidianas, mas daquelas que contamos para nós mesmos. Daquelas que minimizamos quando levamos adiante informações caluniosas, argumentos levianos, quando compactuamos com a mentira escancarada, mas dita pelo anônimo, que vai machucar quem não pensa como nós. Estúpidos somos quando nos esquecemos que uma campanha eleitoral se movimenta como bumerangue.

Perdemos a liberdade. Confundimos a ideia de que liberdade de expressão significa o poder de dizer qualquer coisa, sem limites. Rasgamos a liberdade para defender o privilégio de agredir quem não está comigo, como Bush ou Trump em seus olhares belicistas.

A liberdade como prática individualista se chama egoísmo, primo da vaidade. A liberdade sempre será sinônimo de convivência, de ato coletivo. Só seremos livres quando todos o forem. E não enxergamos que defendemos o fim da liberdade justamente porque ... somos teoricamente livres. Teoricamente!

Por contradição, tenho dúvidas: será que perdemos tudo isso mesmo? Então, quando teria sido este escoamento moral pelo ralo da violência? Ou será que apenas rompemos os filtros e agora precisamos descobrir e assumir que somos deste jeito, uma espécie truculenta, selvagem? Francamente, não vejo tanta gente assim fazendo mea culpa.

Desconfio que, como animais, somos menos humanos do que imaginávamos ou editávamos no feliz mundo das redes sociais e das conversas cotidianas.

Se todos perdemos, quem ganhou o jogo sem vencedor?

PT, co-criador de Bolsonaro


Marcus Vinicius Batista

A esquerda brasileira paga o preço pela própria arrogância. Pelo narcisismo político. Pelo egocentrismo de seus líderes. A esquerda, neste caso, é simbolizada pelo seu maior representante nos últimos 35 anos: o Partido dos Trabalhadores. Associar esquerda e PT significa, aliás, dois pontos: 1) esquerda como antítese da direita numa eleição de extremos; 2) esquerda atual está longe de representar a definição ideológica clássica ou a forma de governar. O PT esteve muito mais próximo do centro do que se imagina.

O PT, na figura de seus caciques, desdenhou Bolsonaro. Ignorou o crescimento do fenômeno político e não visualizou nem como miragem o fato de que a extrema direita aprendeu a fazer política eleitoral com a própria esquerda. As críticas de Mano Brown, rechaçada por muitos petistas, são pertinentes e sintetizam o pensamento de vários ideólogos da própria esquerda.

Em janeiro, por exemplo, Bolsonaro oscilava em torno de 8% das intenções de voto. Muitos representantes da esquerda o descreviam como um bufão, como um cavalo paraguaio, que não sobreviveria à corrida eleitoral. Apostavam na repetição da polaridade com o PSDB, que também se apequenou tamanha a quantidade de erros estratégicos de campanha.

O PT foi rifado, em termos institucionais, por suas lideranças. O partido patinou por mais de quatro meses até oficializar Fernando Haddad como candidato, em 11 de setembro. Ele teve pouco mais de três semanas para firmar uma linha mestra de campanha. E pior: ainda luta para se desvencilhar da sombra de quem se coloca como pai novamente.

Usando o futebol como metáfora, compatível com o personagem, Lula jogou com o nome durante boa parte do campeonato. Perdeu o momento de tirar o time de campo, enquanto desejava ser mártir e se colocar acima da história do partido. Em outras palavras, o PT foi o dom que carregou Haddad ao segundo turno, mas poderá ser a maldição que selará uma derrota.

As lideranças, obcecadas por um projeto de poder, e distantes de um projeto de governo, se afastaram da militância, minimizaram sua relevância, passaram a falar somente a língua dos corredores palacianos e acreditaram, após quatro vitórias nas urnas, que não havia necessidade de se reinventar, de renovar nomes. Como Narciso, olharam para o espelho d´água e não perceberam que a mentalidade Bolsonaro – não o homem apenas, mas a forma de pensar, a estrutura moral distorcida – passou por trás delas e aos berros.

O PT perdeu duas vezes a chance de limpar a casa. De se proteger como instituição, de sacrificar parte da sua própria carne. Manteve os órgãos em putrefação, excluiu militantes históricos que questionaram seus líderes e atacou para se defender e ocultar seus esqueletos. Postura adotada no mensalão, repetida na Lava-Jato, insinuada nesta campanha eleitoral.

A esquerda, se pensarmos nos demais partidos, tentou se divorciar do pai falível, mas também não entendeu o século 21. Não compreendeu que precisava se adaptar às novas tecnologias, às novas formas de se comunicar, ao olhar fluído da política e aos novos caminhos de construção e difusão de informações. Cultivou o egocentrismo das reuniões intermináveis, das estratégias utópicas, mas – principalmente – o muro que se ergueu entre as instituições partidárias, seus políticos e a população em geral. Não se sabia mais com quem se conversava. Só com a corte.

A direita representada por Jair Bolsonaro fez política de base adaptada, guardando as devidas proporções. Política de base virtual, por vezes suja e selvagem, mas dentro de um mundo real. Real, mas fora da bolha que envolveu o adversário.

Neste sentido, o baile de marketing político incluiu a cristalização de rótulos infantis como a associação entre PT e comunismo, aproveitando-se de que as redes sociais funcionam como terreno fértil para a fragmentação e a superficialidade de informações. A direita nadou de braçada, armada de intolerância e preconceitos, num modelo anteriormente dominado por ícones e instituições simpáticas à esquerda. A desinformação só fez crescer o bolo belicista.

O PT dá a impressão que descobriu o erro e transmite neste final de corrida eleitoral, nas palavras de Haddad, que pretende comprar material de limpeza e de dedetização. Nenhuma prova concreta até agora. Cedo para dizer.

O problema é que a criatura nunca esteve tão forte como fantasia e mentalidade e, por isso, talvez o PT tenha acordado da soberba tarde demais.

sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Por que meu voto será nulo





Fernando Rossi*


Quando achava ter chegado ao fundo do poço, redescobri o pré-sal.

Se, em 1989, o então candidato Fernando Collor de Mello surpreendeu o país ao levar em seu programa eleitoral a filha bastarda de Lula para que, entre outros assuntos, acusasse o pai de querer que sua mãe a abortasse, os programas eleitorais de hoje são a prova cabal de que Collor seria, hoje, candidato ao papado.

O termo Fake News tomou o país com a mesma força das pragas do Egito. Parentes e amigos enviam e compartilham, sem checar, os mais diversos absurdos. Sou combatente voraz (e feroz). A praga é tamanha que não conseguimos ouvir propostas.

Mas, afinal, quem as ouve?

Não somos politizados. Cresci com as máximas “brasileiro quer levar vantagem em tudo” e, com frequência, “política não se discute”. Discutimos posturas e falas dos candidatos, apenas isso. Enquanto um propaga “vamos exterminar os vermelhos” o outro diz “vamos subir a rampa com o presidente Lula”. Ambas falsas ou editadas.

Mas, no que queremos acreditar? No “salvador” ou no “amigo do verdadeiro filho de Deus”?

Eu, que até pouco tempo acreditava na necessidade da quebra do status quo, hoje tenho dúvidas. Não são poucas, a começar por todas as entrevistas que vi do atual líder das pesquisas. E, por mais que ouça “isso é só para ganhar voto”, não consigo aceitar nenhuma. Do poste, confesso, sinto pena. As últimas, da Bíblia “roubada” e do “pedido para desligar o whats”, enterraram qualquer possibilidade de outro sentimento.

Meus textos sempre foram pontuados pelas “desgraças que o partido do governo fez ao longo destes 16 anos” e aos “milhões de pessoas que ficaram desempregadas”. Não os nego, não mesmo. Porém preciso ser honesto com minha consciência e dizer que sim, foram anos difíceis, mas nunca me faltou trabalho e condições de pagar minhas contas. Assumi posturas diferentes, procurei novos caminhos na minha área e não desisti.

Trabalhei mais do que a CLT exige? Muito mais. Me arrependo? Jamais. A crise promove mudanças nos que não ficam parados, dirão os especialistas.
Minha crise, neste momento, é de consciência. As decisões tornam-se mais difíceis para quem sempre teve a mente ligada ao coração.

Já fiz campanha para candidatos à vereador e pude entender uma pequena parte de como funciona o “processo” político. As manipulações, aliadas à tecnologia e à falta de escrúpulos, permitiram que vidas fossem destroçadas e não me permito concordar com isso.

Quero um país melhor, mais seguro e justo. Mas não consigo olhar o “Brasil acima de tudo”.

A tecnologia, ao mesmo tempo que encurtou distâncias, promoveu um abismo entre pessoas que tem pontos de vista ou pensamentos divergentes. O algoritmo das minhas redes sociais facilitou o trabalho deste distanciamento.

Meu posicionamento de “PT Não” era minha única justificativa para votar no “Ele sim”.

Perdoem-me os que de mim gostam, mas meu “egoísmo” pulsa: faltando apenas 2 dias para a eleição mais sórdida de toda nossa história, nenhum dos dois candidatos terá meu voto, decisão que se aplica também aos postulantes ao governo do Estado de São Paulo.

O novo presidente será eleito como a “representação da mudança”. Torcerei, talvez, em silêncio.

Minhas opiniões políticas foram deletadas de minha timeline. É um passado que não interessa a ninguém. Foi um trabalho de pouco mais de uma hora. Recomendo à todos.

Respiro, aliviado, por fazer o que sempre fiz: ser verdadeiro e tentar ser sempre melhor para com meus semelhantes.

Sejam felizes.

* Fernando Rossi é publicitário com 25 anos de experiência e trabalhou em diversas campanhas eleitorais.


quarta-feira, 24 de outubro de 2018

O novo (velho) eleitor


Marcus Vinicius Batista

Ao final da aula de Ética, uma aluna de Relações Públicas veio me procurar.

— Professor, o Bolsonaro tem casos de nepotismo. Por que o adversário não o ataca com isso?

— Porque as pesquisas indicam que esta estratégia tem pouco efeito.

— Como assim, mas é nepotismo? Contratar parentes não é ferir a Ética?

— Você sabia que as pesquisas sobre Ética e Política apontam que entre dois terços e 75% dos entrevistados empregariam parentes se fossem eleitos. Eles entendem que, se o cargo é de confiança, melhor um parente encostado do que um técnico competente.



O eleitor médio, muitas vezes nós mesmos, é um sujeito prático. Ele escolhe seus candidatos por centenas de razões, de estética à comportamento sexual, de parente encaixado na Prefeitura à negação de um favor, de indicação de marido, mãe, pai ou alguém próximo até determinação do chefe. Eventualmente, avalia programas de governo, consome alguma informação, troca opiniões ou assiste debates.

O eleitor não é um sujeito nobre. Sinto que, por trás do discurso em torno do eleitor brasileiro, persiste uma aura de canonização. Isso esconde a cumplicidade e as conivências na hora do voto.

O eleitor também é fruto de instituições que pouco prezam pela educação política – não confunda com doutrinação ideológica, presente em universidades, igrejas e empresas. Porém, não dá para aceitar um determinismo político, com tantas prateleiras de informação disponíveis nos dias de hoje.

O eleitor é um sujeito que também vota por mesquinharia. Por cinismo. Por hipocrisia. Por efeito manada. E depois esquece o que fez, fugindo da responsabilidade. Fruto também da ausência de consciência crítica. Oito em cada dez eleitores não se lembram mais em quem votaram para o Poder Legislativo, seis meses após as eleições.

O eleitor médio é um sujeito que não vota por ideologia. Papo furado, tanto da esquerda como da direita. O eleitor, na sua praticidade cotidiana, vê um como o oposto do outro. E utiliza, mesmo quando enganado pela salada partidária e pela promiscuidade política dos candidatos, o processo de tentativa e erro, como permite de forma saudável a democracia.

Esse olhar pragmático, no qual as teorias e as análises parecem aulas entediantes de História do Ensino Fundamental, é capaz de não enxergar a própria ironia desta campanha presidencial sem precedentes históricos. Talvez porque não tenha visto as tais aulas de História. A ironia reside no fato de assistirmos à defesa veemente da tirania, do autoritarismo justamente num cenário de liberdade de expressão, o primeiro princípio a morrer quando se instala um regime de mão de ferro.

O eleitor não está sentado sobre os cânones éticos. Ele aplica, por conveniência, as expressões típicas do brasileirismo. O jeitinho. O “você sabe com quem está falando”. O “é dando que se recebe” e assim por diante. Neste caminho, o eleitor perdoa deslizes éticos da classe política, ainda que não saiba que está perdoando a si mesmo.

O eleitor tolera o “rouba mas faz”, engole a corrupção generalizada, não apenas a do PT, distorce a própria ideia de corrupção generalizada, classificando o mesmo PT como o dono de todos os males, deixa de lado comportamentos que reprovaria em parentes, amigos, na própria esposa, no próprio marido.

Ele rasga a Ética nas relações diárias e não percebe que tem os políticos que merece. O eleitor os instala numa torre de marfim para que não veja o espelho que nos indica como um político se parece com Dorian Gray, decrépito em seu próprio reflexo, lindo aos olhos do público.

O eleitor costuma ser narcisista. Vê o mundo a partir de seus próprios problemas. Pouco acompanha o contexto por trás de uma campanha ou das medidas dos governantes. È previsível e aceitável. Nenhum demérito, dentro das limitações da própria humanidade.

Nesta corrida, o eleitor se sentiu no direito – também por conta dos candidatos-espelhos – de colocar para fora o que sente perante a política. Frustrações, indignações, fé, intolerâncias, preconceitos, um caldeirão de sentimentos por vezes desfocados, que funcionam melhor quando aplicados num cenário maniqueísta com tons novelísticos. É mais confortável quando o outro se materializa no colega de trabalho, no amiguinho da rede social.

O eleitor costuma se julgar mais inteligente do que a maioria. O ser humano costuma se julgar mais inteligente do que a maioria. Muitos se consideram especiais, únicos. Afirmações previsíveis de pilhas de pesquisas em neurociências (voltaremos no assunto em outra ocasião).

A arrogância o faz presa fácil para o discurso bem encaixado, e baseado em pesquisas e análises, das candidaturas, de quaisquer cores. O eleitor, nesta campanha, comprou nomes, confirmou formas de vida, ignorou partidos – exceto o que veste a máscara do primo leproso -, sem perceber o quanto política e suas estratégias de comunicação podem ser manipuláveis.

O eleitor, com seus defeitos e lampejos narcisíscos, é essencial para a democracia. É vital entendê-lo, ainda que esteja no outro lado de nossas preferências. Não adianta agredi-lo, pois somente reforça suas convicções.

Para convencê-lo a pensar, é preciso seduzi-lo, nas conversas do dia a dia. Na campanha, um dos presidenciáveis o fez com eficiência. O outro, ofuscado pela petulância de seus líderes, mal teve tempo de se apresentar. Políticos, como bons mestres sedutores, são práticos.

A orgia política




Marcus Vinicius Batista

Qualquer criança sabe: a campanha eleitoral reproduz – como bem disse um grande amigo – as brigas entre o 5º ano A e o 5º ano B. Valem cusparadas, xingar a mãe, socos em frente ao colégio, pancadaria dentro de quadra no interclasses e até o grito de “ai ai ai, não deixava”.

Ao longo do ano, os alunos se esquecem porque surgiu a rivalidade entre eles, pois sabem que o que importa é dar a última palavra, mesmo que seja baseada em mentiras deslavadas, que afundam no universo imaginário de um moleque de 11 anos, louco para se afirmar entre os colegas.

Vivemos uma disputa entre dois modos de ver o mundo. Não é preciso explicar quais são, dentro da corrida presidencial. No governo do Estado, não são dois mundos, mas o mesmo endereço e a negação de relacionamento com o primo chamado de leproso, aquele que ninguém quer ver na ceia de Natal (expressão de outro grande amigo).

A luta de classes – interprete como quiser, seja pela veia marxista ou pelo 5º ano da escola – faz com que pouco saibamos o que efetivamente cada candidato pretende para o país. Esqueça os planos de governo, que sempre foram tratados como peças de ficção, pois são reescritos durante a campanha ou têm itens negados para simplesmente sumir no fosso da Internet depois da contagem de votos.

Santos, a cidade onde moro, é um endereço que costuma refletir o cenário político, em termos estaduais. No âmbito nacional, vemos lampejos conceituais, de leitura filosófica dos processos políticos. Em outras palavras, a cidade viveu no final do século passado e no início deste um reflexo do que tinham se tornado as campanhas políticas. Prevaleciam as propostas dos “gerentes”, não porque todos os candidatos eram mais sofisticados, mas porque o eleitorado rejeitava o perfil “metralhadora giratória”, o candidato que só atacava e nada propunha.

Numa das vitórias de Beto Mansur na disputa pela Prefeitura, um dos adversários caiu de terceiro para quinto – e assim acabou em empregos públicos por indicação – por conta de ataques aos candidatos que estavam à sua frente nas pesquisas. Ele acabou visto, por parte do eleitorado, como um pretendente sem conteúdo, sem atrativos para cortejar a noiva. E olha que possuía bons dotes em níveis estadual e federal.

Hoje, os presidenciáveis e os potenciais governadores de SP ultrapassam os limites da ética, da decência, da humanidade. É óbvio que devemos olhar para o comportamento moral de um candidato, mas o moralismo substituiu de maneira porca, perversa o conceito anterior. Enquanto um foge de propostas e alimenta fantasias genéricas, o outro ataca para se defender. As ideias se perdem no cheiro fétido da tampa do esgoto recém-aberta.

Se olharmos como Poliana, saberemos pelo menos que modo de vida, que mentalidade cada candidato – seja em Brasília ou em São Paulo – defende. É um começo, mas parece muito pouco para entendermos o que virá nos próximos quatro anos. Parece-me claro como se processa o funcionamento mental dos presidenciáveis, por distorção comportamental ou por desvio de foco, algo mais nebuloso entre os candidatos ao Governo do Estado.

No entanto, fica difícil desenhar com firmeza uma espinha dorsal de projeto de governo. Vemos projetos de poder. Neste caso, o lápis treme na criação do traço. A ilustração está desfocada, o que aguça a imaginação, a alucinação e até o delírio de quem o observa.

O triste é que temos os candidatos que merecemos. O eleitor é conivente, cúmplice da selvageria e da sangria verbal. Ainda assim, terá que escolher um, por voto útil, convicção ou somente ódio.

Na orgia política, não existem vítimas, tampouco santos. Só os de fala oca. Como as bravatas da turma do 5º ano.

terça-feira, 16 de outubro de 2018

O diálogo entre política e futebol



Marcus Vinicius Batista

* Texto publicado, originalmente, no jornal A Tribuna, de Santos, em 15 de outubro de 2018.

Política e futebol são como primos: apresentam semelhanças, mas não possuem traços iguais; tem grau de parentesco, porém convivem de vez em quando; e dividem paixões quase inconciliáveis, embora muitos não percebam que seguem a mesma dinâmica familiar.

Em tempos de discurso de ódio, a campanha eleitoral se transformou em um Fla-Flu, digno de hooligans, os violentos torcedores ingleses, no auge da selvageria do final do século passado. O interessante é que dirigentes, imprensa e parte da sociedade mantém relações contraditórias quando envolvem jogadores de futebol e manifestações políticas.

Neste período eleitoral, é comum se ouvir que os jogadores são alienados, sujeitos emburrecidos pela dedicação exclusiva ao esporte. Outras críticas os colocam como seres que fogem de quaisquer discursos sociais ou de perspectivas que alcancem um olhar mais aguçado sobre a sociedade contemporânea.

Esta fala esconde um tom de hipocrisia. Por trás dela, mascara-se o desejo de manter os jogadores de futebol profissional dentro do cabresto. Defende-se que abram a boca por conta da visibilidade e da influência que exercem sobre torcedores e simpatizantes, desde que sigam as cartilhas dos cartolas ou dos comentaristas supostamente formadores de opinião. É a mordaça institucionalizada.

Jogadores que pensam além dos muros dos centros de treinamento são vistos como incômodos, chatos ou até subversivos (termo, aliás, ressuscitado e distorcido na era da infantilização política via rede social). Afonsinho, nos anos 70, Sócrates, a Democracia Corintiana e as Diretas Já, nos anos 80, Alex e Rogério Ceni, na década passada, e Paulo André, nos últimos anos, são exemplos de como atletas podem sofrer com estigmas ou ter a imagem manipulada por interesses políticos, inclusive dentro dos clubes onde atuaram.

Governos de diversas linhagens sempre utilizaram o futebol como instrumento político. Mussolini e o fascismo italiano na década de 30. Getúlio Vargas e a profissionalização do futebol, em 1933. Os 90 milhões em ação, cantados em verso e prosa pelo regime militar, em 1970. A curiosa cambalhota de Vampeta, em 2002, na rampa do Palácio do Planalto, sob os olhares de FHC. Lula e as metáforas sobre futebol, faturando com a escolha do Brasil para sede da Copa do Mundo, em 2014.

Jogadores de futebol são cidadãos com um poder imenso em suas palavras e atitudes, principalmente os de elite, que ganham visibilidade midiática diária. Estes e os demais operários do esporte têm a obrigação de driblar o desinteresse pela política.

Os destinos do futebol – e deles também – são decididos nos gabinetes de criaturas engravatadas, que se sustentam dos milhões gerados pelo trabalho de muitas pessoas, cujas vidas significam abrir mão de familiares, amigos e estudos. Jogadores têm que tomar posição política – diferente de defender candidato – para melhorar, direta ou indiretamente, a profissão que exercem, com tempo limitado.

Política e futebol se discutem sim, dentro dos limites de um diálogo. Rivalidades alimentam o espetáculo e engrandecem o esporte como ação política. Futebol como política não tem relação alguma com intolerância, independentemente de se dizer: alguém sim, o outro não.


segunda-feira, 15 de outubro de 2018

O que é ser (ou não) professor



Marcus Vinicius Batista

Tenho 44 anos e, fazendo uma conta grosseira, percebi que estou há 37 dentro da escola, como aluno, como professor. Nos últimos anos, os dois ao mesmo tempo. Este internato voluntário me dá a clareza de que professor e escola transcendem um ao outro, independem dos muros institucionais que podem, inclusive, cegá-los para o que importa na formação humana.

Professor não é quem comanda os trabalhos dentro de uma sala de aula em caráter absoluto, é cada vez menos o sujeito que fala e os outros ouvem, quando não se sugere que abaixem as orelhas. Professor é quem abre as portas para a pluralidade de vozes, para a conversa coletiva, para a construção de pontos de vista, com suas contradições, angústias, retrocessos e avanços.

Professor não é o sujeito sentado sobre os almanaques do saber. Professor não é quem restringe conteúdos por medo de ficar ultrapassado, por pavor de ser ultrapassado por seus alunos. O professor não é um pai, mas como tal, sabe que seus alunos nasceram para voar mais longe. O professor sorri quando os vê numa altitude mais elevada, jamais ceifa suas asas.

Professor não é somente o homem dos diplomas pregados na parede, dos títulos, das comendas, das honrarias. Muitas das maiores atrocidades dentro de uma escola foram ditas e cometidas por quem se veste de “doutor” ou se fantasia de “mestre”. Grandes professores podem também não ter um único diploma, mas ensinam pelo exemplo, pelas ações, raramente pela retórica ou pelas aspas decoradas. As citações só valem no contexto do ato.

Professor não é aquele que amarra seus alunos pelas provas difíceis ou pelas chamadas ou listas de presença. Professor conquista sua platéia a cada apresentação, de corpo, alma e espírito. E sabe, acima de tudo, que bons alunos não se definem pelas notas de suas provas amedrontadoras. Bons alunos são definidos pelo caráter, pela decência, pela dignidade em torno de suas escolhas, daquilo que pretendem levar adiante em suas biografias.

Professor não é aquele que transmite um único modo de pensar, mascarando uma ideologia como se não existissem outras. Professor tem ideologia, mas é honesto intelectualmente para denominá-la, reconhecê-la como falível, entendê-la como parte de sua vida.

Professor não é aquele que defende um candidato ou que defende o silêncio de quem pensa diferente dele. Professor é quem dá voz à coletividade, pondera sobre as escolhas políticas, consciente de que o homem como ser político se sobrepõe a quaisquer camisas, dentro dos limites da humanidade.

Tento ser um professor há 16 anos. Por vezes, este ofício me conduz ao limite da fadiga. Por vezes, este ofício salva meu dia, minha semana com pequenas vitórias. Em certos dias, a burocracia e a estupidez humana quase me fazem desistir. Em outros, as pessoas me fazem voltar no dia seguinte. Eventualmente, a ausência de reconhecimento – inclusive de quem deveria nos apoiar – nos empurra para a sensação de indigência. De vez em quando, o aplauso de quem sabe que a evolução humana pode acontecer nos garante que os medíocres não vão permanecer por perto. Ser professor é pisar em solo movediço, paradoxal como o próprio caminhante.

Professor não é somente o sujeito que está em sala de aula. Professor está em todos os cantos, onde há gente, onde há diálogo, onde há respeito pelo outro, onde ele mal consegue perceber que assim o é. Um professor jamais é professoral. Ele é professor quando não percebe que está em aula!