quinta-feira, 1 de novembro de 2018

O juiz


Marcus Vinicius Batista

O maior humanista que conheci tem cerca de 85 anos. É um sujeito de hábitos, entre eles, estudar todos os dias. Ler, escrever, dialogar, incentivar a produção de conhecimento alheio. Sou fruto desta frase.

Quando discordamos, ele sempre me presenteia com ponderações, com análises – conceito diferente de opinião -, com sugestões de textos, links ou outras fontes de informação que possam reforçar a conversa entre nós. Jamais partiu para a desqualificação pessoal. Jamais se colocou numa posição de superioridade ou discursou em tom professoral. Sempre me ensinou sem nunca me dar aula.

Como um humanista, ele sempre entendeu que o amor pelo conhecimento nunca se coloca acima dos homens. Que os homens necessitam do conhecimento a favor de si como coletividade, nunca como individualismos. Ajudou muitos em momentos difíceis, formou inúmeros em contextos iniciais de suas vidas, orientou quem ansiava por aprendizagem, inclusive aqueles que o utilizaram como trampolim. Ossos do ofício. Sedução pela utopia filosófica, talvez.

Este humanista foi juiz de Direito. Desculpe, é, pois não se trata de uma questão de estar, de almejar saltos vantajosos ou oportunos. Ele chegou no alto da hierarquia do Poder Judiciário do Estado de São Paulo e ali se aposentou. Sempre por méritos próprios, nunca por conchavos, acertos ou trocas de favores. Estudou como um condenado à prisão perpétua para concursos, inclusive enquanto criou cinco filhos ao lado de uma mulher de visão, fibra e postura semelhantes. Todos, em sua casa, souberam compreender o valor que se deve dar para a construção do pensamento próprio. Sou testemunha ocular.

Este juiz nunca desejou os holofotes. Nunca se envolveu em polêmicas pela imprensa, concedeu entrevistas coletivas para absorver os louros de uma decisão judicial ou posou para fotos com políticos em eventos de cunho esquisito.

Como juiz, lutou para se aproximar da isenção e consistência máximas, da neutralidade, consciente de que tais termos são falhos e limitados, mas que devem ser perseguidos com obsessão para se aproximar de uma sociedade menos desigual, mais equilibrada, mais justa (com o perdão do trocadilho).

Este juiz jamais tentou interferir em decisões do Poder Legislativo feito deputado ou agir como substituto eventual do Poder Executivo. Conhecia suas fronteiras e atribuições e atuava com a distância de quem é responsável por definir, a cada canetada, os rumos da biografia de outra pessoa. Sempre foi politizado, justificou suas escolhas em âmbito privado, mas se esquivou de maneira obsessiva da política partidária e das tentações dos corredores dos palácios.

Ele escreveu livros (ainda o faz), incansável na busca do entendimento do humano. Sempre repudiou, óbvio dizer, a corrupção. Curioso quase patológico, estudou tão fundo o tema que produziu um livro de 600 páginas. Coincidência ou não, a obra foi editada por uma editora portuguesa, não por estas bandas.

Ele falhou diversas vezes como qualquer sujeito, na vida cotidiana. Cultivou defeitos e manias como todos nós e tentou revê-los na velhice, em exercícios de autorreflexão. Autorreflexão porque a leitura de homem como ser biopsicossocial e espiritual estava incompleta até pouco tempo.

A percepção da incompletude só veio aos 75 anos, quando quebrou resistências internas, descobriu a Psicanálise e se sentou na poltrona dos pacientes em terapia. “Por que não descobri isso antes?”, me perguntou entusiasmado, certa vez, num restaurante.

Na última vez que nos encontramos, não podemos conversar muito. Ele comprou meu livro novo. O anterior, adquiriu pela terceira vez. Dei risada, autografei e perguntei:

“O senhor sabe que comprou pela terceira vez?”

“Não tem problema. Vou dar de presente.”

Dois de seus filhos foram para o mundo jurídico. Outros dois foram para a Saúde. O mais novo milita na Educação. Todos admiráveis pela politização, senso de Justiça, caráter e decência no trato com o humano. Repetem, no cotidiano, as qualidades expostas acima, não como mérito, como obrigação inerente às relações humanas.

O humanista mais importante que conheci deixou de ser professor há uns dez anos. Quando perguntei o motivo, ele me disse estar cansado. Cansado das pequenas corrupções, assim vistas como menores no ambiente institucional. Cansado dos plágios, das negligências, da política provinciana e feudal em muitos ambientes do Ensino Superior.

Ele preferiu estudar em casa, aprender sempre, escrever quando possível. “Estou aprendendo húngaro”, me contou há quatro anos. Era seu décimo idioma, na minha contagem, pois nunca o vi se gabar disso, sequer contabilizar em público. Achei desnecessário perguntar.

Este juiz, cujo nome preservo pelas óbvias motivações descritas ao longo deste texto, nunca quis ser celebridade. Nunca cortejou lado. Jamais seria ministro. O humanista não fez ou faz política partidária. Ele tem a alma de um juiz.

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