O funcionário do supermercado fechou o caixa e virou a placa que informava a suspensão do atendimento. Um consumidor, na faixa de 45 a 50 anos, ignorou o aviso e começou a colocar suas compras no balcão.
O funcionário, de maneira educada, pediu:
— Senhor, por favor, coloque as mercadorias no caixa ao lado. Aqui está fechado e, se o senhor colocar as compras, outros clientes vão achar que o caixa está aberto e vão formar fila.
— Vou colocar minhas compras sim e você vai me atender!, o cliente retrucou aos gritos
— Sinto muito, mas eu tenho direito a um intervalo para ir ao banheiro. Aquela moça vai me substituir e, daqui a pouco, haverá atendimento.
O rapaz, negro e homossexual, virou o corpo para deixar o caixa, quando ouviu o senhor dizer, no mesmo tom alto, pelas costas:
— Ah, a moça vai fazer xixi sentada? Olha, gente, a moça vai fazer xixi sentada.
— Vou sim, senhor, e o senhor não tem nada a ver com isso.
Todos os clientes que estavam nas filas aos lados do caixa ouviram a conversa. Apenas uma mulher respirou fundo e sussurrou: “Já começou!” Todos os homens da fila permaneceram em silêncio.
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Enquanto o próximo presidente da República oscila entre as bravatas de campanha e os anúncios iniciais sobre ministérios, seus súditos voluntários começam a colocar as mangas e a irracionalidade de fora. Há vários registros de casos de violência, entre ameaças, atos caricaturais na Internet e registros em delegacias.
A ressaca eleitoral ainda não se dissipou e, mesmo quando acontecer, será difícil conter os comportamentos agora explícitos de quem se sente autorizado, legitimado pelo líder político em suas palavras de ordem contra quem não se encaixa em seu estereótipo de menino valentão.
Os agressores, em todos os episódios que testemunhei, se intitulam cidadãos de bem (voltarei neste conceito em outro texto). Consideram-se, na sua estupidez de baixa cidadania e certezas dogmáticas, legítimos representantes acima de lei e da ordem. Querem, na verdade, privilégios dados aos escolhidos (ou mantê-los), seja pelo discurso irresponsável dos políticos, seja por Deus – quem seria? – que tem seu nome surrado em vão por gente que dá a impressão de cultuar os princípios daquele que foi expulso do paraíso.
A eleição serviu, entre outras coisas, para nos esfregar na cara o quanto somos uma população que chafurda em violência cotidiana, em preconceitos, em intolerância, em mesquinharias, na capacidade de enxergar o outro como diferente, como ser humano. Gente que defende a morte de gente apenas por ser gente...diferente. E olha que, muitas vezes, a diferença se dá somente na vida pública, na máscara do personagem.
O novo presidente tem a obrigação moral de reduzir sua valentia atrás das telas e apaziguar aqueles que pregam truculência em seu nome. Se já é um irresponsável quando faz apologias violentas, será cúmplice quando se sentar na cadeira em janeiro. O problema é esperar uma postura distinta, além dos limites éticos e intelectuais que talvez Bolsonaro não possa nos entregar.
Em vários ambientes, vejo discursos de união, de redução de danos, de expectativas positivas para o novo Governo. Soam mais como justificativas para o cheque branco assinado em vez leituras concretas. Até porque Bolsonaro se elegeu sem pouco propor. Estamos acompanhando seus interesses mais explícitos na economia e na política palaciana nos últimos dois dias, muito pouco para atender 55 milhões de pessoas, no mínimo.
O discurso apaziguador vem, na maioria, daqueles que votaram em outros candidatos e fizeram a escolha por Bolsonaro para punir o Partido dos Trabalhadores. Mas esta fala está se misturando com fatos previsíveis.
O preconceito e a selvageria, em nome de Deus, da família ou quaisquer outras razões cínicas e hipócritas de muitos que não as praticam (conheço tantos assim!), saíram da sala de jantar e das mesas de boteco. Começam a se transformar em ações, que expõem a frágil fronteira entre a civilidade e a barbárie de quem cansou de interpretar o papel de tolerância, de ser humano.
O ciclo de estupidez só ficará completo quando estes sujeitos, muitos de classe média ou baixa e ausentes de crítica política, feito crianças numa democracia cheia de falhas, perceberem que o Estado truculento e seus súditos são míopes também para os “cidadãos de bem”. Que ser eleito significa muito mais do que esbravejar, de forma covarde, na fila do supermercado, como se pagar as compras o tornasse uma criatura acima das demais. Um feitor do “olha com quem está falando” que sonha em viver os tempos áureos das chicotadas nos moradores da senzala.
O feitor, mal sabe ele, só distribui lambadas porque o senhor dos escravos não gosta de sujar as mãos. Um dia, ele se cansa e troca a mão que faz sangrar. E envia, sem escalas, o feitor de volta à senzala.
O senhor, neste momento, está mais preocupado em fazer campanha, enquanto joga a conta nas costas de Deus e flerta com seus falsos profetas.
Como disse o Celso Rocha de Barros, Bolsonaro não é o anti-lula. Ele é o anti-Geisel.
ResponderExcluirQuando a realidade se descortina... Pobres Homens! 'Senhor, Perdoai-os. Eles não sabem o que fazem.' O comportamento humano é extremamente complexo; em havendo oportunidade, as feridas internas contidas sob pressão são expostas sob a forma de violência ao outro, como forma de alívio... Na realidade, quem permanece mais fragilizado?...
ResponderExcluirPobres de espírito, temos que rezar muito para Santa PaciencPa.
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