quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Mais Médicos: quem se importa?


Marcus Vinicius Batista

Este texto não é para você, meu costumeiro leitor. É um texto para aqueles que, provavelmente, por falta de acesso não o lerão. É para quem terá uma infinidade de problemas mais urgentes do que usar uns minutos para uma reflexão política.

Vivo numa cidade onde muitos não se importam com a saída de profissionais que pertencem ao programa Mais Médicos. Não se tratam de cubanos, alienígenas ou corintianos. Trata-se de pessoas que, dentro de sua invisibilidade, dependem deste programa para não morrer de causas que deveriam estar nos livros de História sobre Idade Média, como diarreia e infecção urinária.

Vivo numa cidade onde muitos reclamam dentro do que consideram ser um direito dos privilegiados, uma expressão contraditória em si. Privilegiados em ter plano de saúde, mesmo que tenham que esperar três meses por uma consulta com um médico que os atenderão por 15 minutos porque precisa receber um monte de pacientes, pois – como privilegiado também – recebe uns R$ 30 por consulta. Aliás, sem garantias de pagamento porque um erro num formulário burocrático vai significar “pagamento indeferido”.

Não precisamos do programa Mais Médicos porque entendemos que nossa rede hospitalar é suficiente para atender a todos, principalmente aqueles que podem acionar a rede de favores, do médico que é primo do primo, amigo da ex, tio do chefe, o profissional capaz de arrumar um leito para internação do nosso parente. O parente que pagou décadas por impostos, assim como nós – os pedintes de favor -, mas que desprezamos o SUS porque é ruim e, por isso, não serve para a classe média que atira verbalmente no alvo errado.

Não precisamos do programa Mais Médicos porque, muitas vezes, a minha cidade de muros simbólicos possui uma farmácia em cada esquina nos bairros “bons” (os nossos), fingindo descontos já embutidos no preço da concorrência quase cartelizada, mas que alivia nosso ego que adora um discurso fraudulento de lesa consumidor. O consumidor que acha que leva vantagem, como se estivesse num cassino, local onde vantagem é utopia.

Dispensamos o programa Mais Médicos porque podemos entrar no cheque especial – alguns até fazem empréstimos consignados – para pagar pela consulta particular, que será amanhã cedo em vez dos três meses de espera. Na mentalidade do consumidor, podemos pagar R$ 350 pelos mesmos 15 minutos – ou um pouco mais para justificar o “investimento” e receber uma lista de exames que será bancada pelo mesmo plano que paga esmolas aos médicos. Mas cuidado: dependendo dos exames, senha, fila, auditoria, culpa do sistema, atendente uniformizada pior remunerada do que você e que te olha com cara de misericórdia.

O programa Mais Médicos não tem nada a ver com a origem dos profissionais, para um paciente que nada tem. Ele somente expôs o que não queremos ver, a podridão que permeia as relações entre Governo e população, governo de todas as camisetas, caro amigo que julga um grupo corrupto e os demais limpinhos. Não vivemos num filme de super-heróis baseados em histórias em quadrinhos.

O Mais Médicos coloca na vitrine – com 8 mil profissionais – o quanto somos vários países em um só. Vários países na sua cidade. Falta saúde digna de seres humanos, com seres humanos e para seres humanos na cidade onde você mora. No mesmo bairro que você reside. Do outro lado da rua.

As pessoas não precisam de médicos cubanos. Elas precisam de médicos, assim como precisam de outros tipos de serviços públicos. Não é preciso andar tão longe. O buraco da saúde pública está no posto há uma quadra e meia da minha casa. Da sua, caro leitor, a variação da distância não o deixará cansado do passeio que nem podemos chamar de caminhada.

Este texto não é para aqueles que ficarão sem os médicos e que podem morrer de diarreia, infecção urinária e outros problemas medievais. Este texto é para você, leitor, que queima dinheiro em impostos e se vê como privilegiado porque paga para esperar por três meses por consulta. Contraditório, não? Sim, como nossas ações diante do que deveria ser feito neste país.

2 comentários:

  1. Marcão Obrigada por seus textos que em nesse momento de tanta insensatez nos faz refletir além de nos os umbigos.

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  2. Se nossa saúde virou mercadoria e somente ricos tem dinheiro; se o remédio no ocidente tornou-se estratégia e só se produz o que dá lucro; se a medicina brasileira é mero empreendimento que associa saúde pública falida a clínica farta, a centro diagnóstico próspero, privilégio claramente metropolitano; se nada se possui no interior, nem do país nem das pessoas, é preciso importar solidariedade. Quem se importa, Marcus? Médicos cubanos.

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