Marcus Vinicius Batista
O ator Caio Martinez vestia uma farda policial, da cintura para cima. Da cintura para baixo, uma saia preta, meia calça preta rasgada e um coturno da mesma cor. Caio estava algemado e cercado por três policiais militares, esses de fardas oficiais.
Os policiais colocaram Caio Martinez, como um criminoso, na parte de trás da viatura, e o levaram para o 1º Distrito Policial de Santos. Meia hora antes, ele e outros atores encenavam a peça "Blitz", uma comédia que brinca com o autoritarismo e o estereótipo do policial.
A peça, encenada na Praça dos Andradas, no Centro de Santos, fazia parte de um sarau, que terminaria na Vila do Teatro, no mesmo endereço. O espetáculo foi interrompido por meia dúzia de viaturas da PM - uma dúzia de policiais - mais viaturas da Guarda Municipal.
Os policiais, inicialmente, alegaram que o problema da peça na praça era o som alto emitido pelas caixas. No meio das discussões entre artistas e policiais, um dos PMs reconheceu: "o problema é o tom da peça."
Os PMs não conseguiam falar a mesma língua. Dois deles tentaram prender uma garota, depois desistiram diante das pressões. Um dos atores perguntou: "Qual crime?". A resposta: "Ainda não sei!".
Os artistas acusaram PMs de filmar as pessoas na praça logo após a interrupção do espetáculo. Como reação, quiseram apreender os telefones de atores e atrizes, sob a alegação de que desejavam ver o conteúdo. Muitos filmaram e fotografaram a ação da PM.
Um dos motivos da realização do sarau era a discussão do papel da praça nos tempos atuais. Uma conversa derivada, entre outras coisas, da festa A Praça É Nossa!, que reuniu quatro mil pessoas na Praça dos Andradas, há duas semanas. Na ocasião, guardas municipais e policiais militares não sabiam como agir diante de tanta gente, num evento sem caráter oficial/governamental.
A ação deste domingo na Praça dos Andradas ressuscitou tempos perigosos. Tempos de atos autoritários. Tempos nos quais as figuras que se julgam donas da lei - sem especificar quais são elas - se consideram capazes e legitimadas para tomar quaisquer atitudes diante de uma manifestação popular.
Os policiais militares tentaram apreender os equipamentos da peça. Não havia alegação alguma. Apenas repetiam o mantra de que os artistas não poderiam retirar seu material da praça. Depois, desistiram. Artistas e voluntários recolheram os adereços, os cenários, desmontaram um andaime e guardaram tudo na Vila do Teatro, enquanto o ator Caio Martinez seguia para a delegacia mais próxima como um marginal.
O que testemunhei hoje, na Praça dos Andradas, oscila entre a ironia, a tragédia e a violência. Ironia porque a praça, tão lembrada pela dificuldade do poder institucionalizado em compreender seu próprio papel como protetor de pessoas e não de patrimônio, deveria representar a liberdade pela sua natureza pública. Liberdade em permitir, como espaço público, os mais diferentes ato de pensamento, ainda mais pela arte, ainda mais pelo teatro, de essência política.
Artistas em frente à delegacia, em apoio à Caio Martinez Foto: Rodrigo Montaldi Morales |
A tarde de hoje será lembrada também pela tragédia, como alerta para a ressurreição de uma época onde a mordaça vinha pelos cassetetes, pelas celas, pelos carros com sirenes conduzindo "gente subversiva".
A violência se completa na reação de quem tenta fazer desaparecer o que não consegue entender e, diante do papel que ocupa, prefere determinar a não ouvir. Os policiais militares demonstraram sua limitação diante do oxigênio cultural. Não conseguiam respirar diante da piada sobre si mesmos.
Orientados a destruir sem refletir, os policiais militares não percebiam que reproduziam a censura, a fita preta na boca, num período democrático. Parte sequer se sentia ofendida. Apenas tentava tirar "aquele bicho" dali.
A Praça dos Andradas, antes cercada e hoje livre para a arte e a política, carrega em si as tatuagens da história, tanto as páginas coloridas como as manchadas pela truculência. É a praça da Cadeia Velha, que serviu para calar as vozes dissonantes como para abrigar quem enxerga além da superfície pela cultura. A mesma Cadeia Velha que testemunhou, a 50 metros de distância, a prisão de um ator, vestido como personagem que tentava dar voz a uma crítica contra quem o algemava.
A Praça dos Andradas leva no nome a história de uma família que pensou e trabalhou politicamente pelo país. Que viveu e sofreu as surras de quem vive para emudecer o canto alheio. Uma praça que carrega uma história de resistência, de conflitos com o poder.
A boa notícia, a flor que nasce na secura da terra, é que a ocupação das praças se tornou inevitável. Que a arte vai se reproduzir, como células sadias, nos espaços públicos para dizer o que pensa, para criticar com todas as letras as cartilhas que são folheadas nas entrelinhas, para mostrar como o teatro, a música, o circo e tantas outras manifestações servem para o homem sair do lugar, e não paralisá-lo na frente de cassetetes e palavras de ameaça.
Hoje à tarde, a Santos de 2016 voltou - por uma hora - a 1964. Não como farsa, no palco a céu aberto, mas como remake, estrelado pela ignorância e pela truculência.
Em tempo: a peça "Blitz" teve apoio do Proac, ligado à Secretaria do Estado da Cultura. Apoio do Governo do Estado, o mesmo que sustenta a PM.
Bela análise. Parabéns.
ResponderExcluirPolítica e segurança pública, em nossos dias, não podem ser confundidas!!!!
ResponderExcluirAs imagens parecem de um tempo que gostaríamos tanto de esquecer e que muitos nem sabem que existiram. Um triste retrato dos tempos atuais.
ResponderExcluirDiscordo de vc em uma coisa, Lidia: Eu acho que todos nós sabemos que esse tempo existiu (inclusive quem diz que não sabe)... O grande problema é que esses ditos "ignorantes da História" fecham os olhos e querem, por força, calar as vozes de quem quer falar... Querem, por força, que esse tempo de amargura, que o tempo do estado de exceção volte e, de preferência, mais brutal do que antes...
ExcluirÉ lamentável que nos dias atuais, ainda temos que nos calar ante calamidades como essa...
É lamentável!
Se uma criança joga pedras na casa do vizinho a mãe diz: não jogue pedras...e pega a criança e leva para dentro de sua casa.
ExcluirIsto é "colocar limites"...impedir que a criança continue com comportamento agressivo e inadequado.
Na ditadura...não haveria peça na praça,o texto seria previamente lido (e, no caso, não seria liberado) e não haveria patrocínio público...e, caso a peça fosse apresentada sem permissão, os autores, atores e público seriam levados para depoimento ou prisão...ou pior para o DOPS...
Deu para entender a diferença entre uma atuação democrática e uma ditatorial?
Vocês gritam a qualquer limite. Precisam entender o que é viver em sociedade e na democracia onde o respeito e o direito do outro devem ser mantidos. A polícia e os militares fazem o que a mamãe poderia ter feito...
Ótimo texto!
ResponderExcluirMuito barulho por porcaria...quem viu o vídeo da peça antes da entrada da polícia tem absoluta certeza de que a "peça" agride e ofende tanto os policiais quanto pessoas que não compartilham com esta "falta de estética" artística. Eu acho que a polícia tem o dever de intervir e fazer parar esta falta de respeito com profissionais (polícia e militares), com público e com os cidadãos que respeitam hino e bandeira brasileiros...Façam isto com a bandeira e o hino do Corinthians...levarão o maior surra da torcida...Eu, como brasileiro, digo: brinquem entre vocês. Deixem o Brasil de fora de suas "brincadeirinhas" de teatrinho na praça...A polícia está corretíssima!
ResponderExcluirQuem não gostar tire a farda e desce pro play. Tá ofendidinho, procure os direitos.
ExcluirOs anônimos que são a favor da censura, não tem coragem de sustentar suas opiniões abertamente ! A peça critica a Policia Militar e seus métodos fascistas, feitos sobre a alegação de respeito á bandeira e as instituições ! Se você não gosta da peça você tem direito de vaiar, sair, ignorar, criticar .. Mas é bem mais comodo se esconder atrás da covardia do opressor e solidarizar-se com os carrascos ! Todos os PMs são corruptos ? Não ! Todo PM é um Opressor ? Não. A Policia é uma instituição falida ? Não. Mas depois de 50 apresentações durante dois anos e meio, algumas delas feitas inclusive na frente de outros PMs, duas premiações do Governo do Estado ... A peça encontrou quem realmente se identificasse com ela ! Os algozes e os covardes anônimos !
ResponderExcluirhttp://1.bp.blogspot.com/-79b66j8RTso/ULc1EKPr36I/AAAAAAAAMj0/AKOjkS4YnDI/s1600/BandeiradoBrasil.invertida.ComValor.Flickr2007.jpg
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ResponderExcluirÉ só dar uma busca na internet e se vê a impossibilidade de contar a quantidade de charges, tiras, gifs, vídeos com sátiras à polícia, políticos-profissionais, religiões etc. Cadê os valentões ofendidos irem à caça dos "ofensores"!? A resposta nunca vem... Será!? Quem sabe uma ginástica intelectual apareça...
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