sexta-feira, 27 de dezembro de 2013
Voto às cegas
Ao aprovar por 14 votos a cinco o projeto de lei que autoriza a transferência de serviços públicos para Organizações Sociais, a Câmara Municipal de Santos assinou um cheque em branco para a Prefeitura. Os vereadores legislaram em causa própria, preocupados em manter o bom casamento com o Poder Executivo, ao mesmo tempo em que viraram as costas para os protestos de servidores e de outros setores da sociedade.
Os vereadores precisarão de costas largas para se defender das reações fora do plenário. Contam com o recesso parlamentar para abaixar a poeira e, principalmente, com o jogo de desinformação em torno do assunto.
O nível de conhecimento do projeto das OSs por parte alguns parlamentares assusta. Hugo Dupreé, por exemplo, mencionou – durante entrevista a um programa institucional da Câmara – que o Poupatempo é um caso de sucesso, o que legitima o projeto. É como comparar bananas e feijões.
Tanto o prefeito quanto os vereadores citam o Hospital do Câncer como símbolo do êxito das Organizações Sociais. São incapazes de mencionar outros episódios. E argumentam que estas organizações não possuem fins lucrativos. Funciona como teoria infalível. Na prática, multiplicam-se pelo país casos de mau gerenciamento de recursos. No Nordeste, há inúmeros exemplos, como cooperativas de médicos.
A Prefeitura também defende que as OSs vão desafogar os gastos públicos. Mas se “esquece” que a folha de pagamento bate no limite da Lei de Responsabilidade Fiscal. O orçamento cresceu 23,7%, mas as despesas aumentaram na mesma intensidade.
Em linhas gerais, Organização social é um título concedido pela administração pública a entidades privadas, sem fins lucrativos. A entidade pode receber benefícios, no caso, da Prefeitura, como isenções fiscais e dotações orçamentárias. Em contrapartida, estas organizações prestam serviços, que devem ser de interesse público.
O projeto de lei autoriza a Prefeitura a firmar convênios com estas organizações para que assumam serviços nas áreas de ensino, pesquisa científica e desenvolvimento tecnológico, direitos humanos e cidadania, proteção e preservação do meio ambiente, assistência social, esporte e lazer. Como se vê, a proposta é tão vaga quanto o texto jurídico do projeto de lei. As Organizações Sociais poderão atuar em serviços prestados pela administração ou em atividades que a Prefeitura não trabalha.
O projeto de lei entrou goela abaixo no final de feira do ano legislativo. Não aconteceram audiências públicas. Nenhuma experiência foi feita para testar a viabilidade do modelo. Santos já poderia adotar as OSs na área da cultura. O Teatro Coliseu, ainda que de forma tímida, foi um exemplo cogitado pela própria administração.
O incêndio político também alcançou o prefeito, vaiado duas vezes no último domingo. A reação foi previsível: classificar os protestos como campanha eleitoral antecipada. A presença quase semanal do governador Geraldo Alckmin na Baixada Santista significa o quê? Simpatia pela cultura caiçara? O mesmo vale para a visita do ministro da Saúde, Alexandre Padilha, no último domingo.
Todos os vereadores que aprovaram a criação de OSs também votaram a favor do aumento do IPTU. São eles: Ademir Pestana, Antônio Carlos Banha Joaquim, Cacá Teixeira, Douglas Gonçalves, Fernanda Vanucci, Hugo Dupreé, Jorge Vieira da Silva Filho (Carabina), José Lascane, Kenny Mendes, Manoel Constantino, Marcus de Rosis, Murilo Barletta, Roberto Teixeira Filho e Sandoval Soares. O vereador Sergio Santana, da base governista, se absteve da votação.
Os próximos três anos de governo devem nos dizer que tipo de presente serão as Organizações Sociais: de Natal ou de grego.
terça-feira, 17 de dezembro de 2013
Qual Câmara queremos?
Salvo momentos cambaleantes, a Câmara Municipal de Santos está de joelhos. Não é a postura de oração ou um pedido de misericórdia. O Parlamento se ajoelhou por reverência e submissão política ao Poder Executivo. E começa a pagar o preço de apoiar medidas impopulares, muitas delas nascidas sem o debate público.
Na última sexta-feira, servidores municipais e representantes de outros sindicatos travaram a entrada de vereadores no plenário e impediram a segunda votação do projeto de lei que repassa serviços essenciais para Organizações Sociais (OSs).
Nas últimas três sessões, os servidores impediram os parlamentares de se manifestar no plenário. Os protestos oscilaram entre vaias, apitos e gritos de “vendidos!”.
A Câmara Municipal, via de regra, se contenta em ser um braço político do Poder Executivo. Na prática, quase um apêndice burocrático que pouco se interessa em confrontar a Prefeitura ou cumprir uma das funções básicas do Poder Legislativo, que seria fiscalizar a administração municipal.
A postura não é nova nem recente. A Câmara reza a cartilha da Prefeitura desde o período dos prefeitos biônicos. Os seis prefeitos da fase democrática seguiram com as rédeas sobre o Poder Legislativo, numa relação de morde-e-assopra, que varia conforme o perfil do comandante.
Na atual gestão, o prefeito Paulo Alexandre Barbosa tem aprovado o que quiser na Câmara. Somente três dos 21 vereadores são de oposição, salvo mais dois ou três que, de vez em quando, gritam contra o Poder Público. Oposição, aliás, confortável porque também falta um discurso alternativo e pragmático para neutralizar a retórica de sorrisos, afagos e publicidade dos tucanos.
Nos corredores do poder, o máximo que muitos vereadores da base do governo fazem é reclamar que o prefeito não os recebe. As queixas se complementam com o sentimento de que “éramos felizes e não sabíamos”, veladamente se referindo ao governo anterior, que também compartilhava da política da distância segura. Sem intimidades, é mais fácil padronizar o controle.
Os vereadores não esperavam a pressão popular. Eles estão mal acostumados com a “qualidade” de vida na Câmara, sem sobressaltos ou conflitos. O primeiro impacto ocorreu em novembro, quando 17 dos 21 parlamentares legitimaram o aumento médio de 12% do IPTU (na verdade, 100%, com desconto de 88%, em trocadilho matemático).
Agora, os vereadores fizeram cara de surpresa com a pressão política em torno do projeto das OSs. O Sindicato dos Servidores fala em exoneração de funcionários, fato negado pela Prefeitura. O presidente do sindicato, Flavio Saraiva, fez promessas duras. Em entrevista ao repórter Luigi di Vaio, do Diário do Litoral, o sindicalista disse que, em 2014, “vamos mostrar para a população o quanto custa esta inutilidade chamada Câmara de Santos.”
Realmente, a Prefeitura não se preocupou em debater e explicar à população do que se trata o projeto. Sequer cogitou publicamente fazer experiências com o novo modelo de gestão. A Prefeitura pretende, com o projeto de lei, transferir para organizações privadas serviços em seis áreas como educação e assistência social. E com uso de servidores públicos, dependendo do caso. Para muitos, é uma privatização disfarçada.
A Câmara Municipal de Santos não é uma instituição inútil. É fundamental para a estrutura do processo democrático. Nos últimos 30 dias, apenas para mencionar o passado recente, o Poder Legislativo se mostrou de grande utilidade. Serviu com eficiência ao Poder Executivo, sem pisar em falso, quando não distribuía títulos de nobreza ou preenchia requerimentos.
quarta-feira, 11 de dezembro de 2013
Jogo de palavras
A política tem uma relação de conflito com a palavra. Uma espécie de Complexo de Édipo, em versão pervertida. Políticos dependem dela para sobreviver. Discursos, sedução, convencimento, negociação. Ao mesmo tempo, a palavra vale tão pouco quando usada na política partidária. O valor cai ainda mais, como ações em blackout, com o cheiro mais próximo das eleições. Alianças, acordos, acusações, manipulação e promessas.
Numa época em que políticos viraram produtos e os partidos, itens de prateleira que, embora parecidos, podem ser trocados pelos vendedores-candidatos, a palavra se transformou em bijuteria. Enfeita a imagem de alguém que deseja reescrever os fatos conforme as aparências indicam.
Nas últimas semanas, há vários casos, em todos os níveis, que reforçam os jogos de palavras, símbolos da luta para reduzir o impacto de atos impopulares ou simplesmente construir heróis que, na prática, merecem algemas e grilhões.
Na política nacional, o maior exemplo é o braço erguido de gente como José Genoíno e José Dirceu, que mancharam o passado com o mel do poder. A definição de preso político soa como piada pronta em um país que ironiza e si mesmo.
Como esperar que, numa democracia, tenhamos presos políticos? Como delirar e acreditar que membros de um partido no poder há 11 anos, na mesma democracia, possam ser classificados como pessoas perseguidas? Ainda bem que a imagem se desfaz na inversão das palavras: políticos presos. Só falta, agora, Valdemar da Costa Neto, o colecionador de renúncias, seguir a moda e também levantar o braço como um pantera negra dos anos 70.
Em São Paulo, o Governo estadual se esforça para manter o armário trancado. Aqui, os esqueletos tentam escapar via metrô e trens. Em São Paulo, o esquema de corrupção ganhou o nome de cartel, que minimiza a conivência e a cumplicidade de figuras públicas em um desvio inesgotável de uma década e meia. Os tucanos se balançam na árvore, acusam os adversários, tentam desviar o foco por meio de e-mails sem assinatura ou juram processar as empresas corruptoras.
Em Santos, o IPTU aumentou 100%. No jogo matemático, traduzido em palavras, o reajuste foi de 12%, com um desconto de 88%. Vereadores mais ousados no palavrório se arriscaram a falar em atualização de valores, descartando a omissão política frente à especulação imobiliária. Nada que convencesse os eleitores de que não houve falta de compromisso. Os parlamentares receberam de volta um rosário de queixas.
Nesta semana, a Câmara Municipal ficou lotada por conta de outro projeto, que transfere para Organizações Sociais (OS) serviços em áreas essenciais como educação e assistência social. Para o Sindicato dos Servidores Municipais, é privatização com risco de exoneração de funcionários públicos.
Para os que apoiam a administração municipal, é uma necessidade para salvar os cofres públicos, que batem no limite da Lei de Responsabilidade Fiscal. E as OSs teriam à disposição servidores municipais, que não perderiam empregos. Em outras palavras, com o perdão do trocadilho, os funcionários públicos trabalhariam para empresas privadas, pagos com salários do contribuinte, que espera por serviços públicos de qualidade?
Os políticos vivem entre palavras sofisticadas. Comissões, projetos executivos, planejamento, aditamento (mais dinheiro) de obras, realocação, cadastramento. Neste dicionário, palavras são versáteis. Até porque, na política, palavra não é para ser cumprida.
sexta-feira, 6 de dezembro de 2013
Apenas 12%?
A Prefeitura de Santos vai terminar o ano da mesma forma como começou: sob um temporal de críticas, e sem guarda-chuvas. Nos três primeiros meses, a administração municipal teve que se defender diante de mortes no desfile de Carnaval, do caso do menino que foi eletrocutado nas tendas na orla da praia, além de uma greve dos servidores, algo que não ocorria há 18 anos.
Agora, o prefeito Paulo Alexandre Barbosa e os vereadores da base de apoio tentam explicar porque o IPTU será reajustado em 12%, na média, no próximo ano. O aumento, o dobro da inflação, provocou críticas da imprensa e queixas de centenas de moradores nas redes sociais.
É óbvio que se trata de uma medida impopular. A classe política já esperava por isso. Atualizar a Planta Genérica de Valores pode soar como uma justificativa plausível, mas a população entende – e com razão – que elevar a carga de impostos é transferir as chibatadas para o lombo mais fraco.
Ninguém aguenta mais impostos, ainda mais diante do testemunho diário de que os recursos não aparecem de forma latente em benefícios públicos. A Prefeitura responde, como se previa, com o argumento das grandes obras, como a entrada da cidade e a macrodrenagem na Zona Noroeste ou se envolve em discussões sobre projetos como o VLT e o túnel, ambos com sinais cristalinos de planejamento falho.
Neste tempo, os serviços públicos não iluminaram os olhos. Um exemplo é a dificuldade da Prefeitura em intervir no transporte coletivo. Meia dúzia de coletivos com ar-condicionado e internet mal cutucam os problemas reais. Mudou-se o sistema de cobrança e a eficiência no atendimento seguiu inerte.
A administração municipal e os vereadores usaram jogos de palavras para justificar o reajuste do IPTU. Na verdade, o aumento foi de 100%, com um desconto de 88%. Assim, a retórica matemática alcança os 12%. O vereador José Lascane usou este argumento em entrevista ao Jornal A Tribuna.
Por hipótese – e o prefeito prometeu o contrário no Jornal Enfoque, na Santa Cecília TV -, a Prefeitura pode perfeitamente reduzir o tal desconto em 2015 e aplicar novo reajuste bem acima da inflação.
Os 17 vereadores, que aprovaram a toque de caixa o aumento do IPTU, também viraram alvo das críticas nas redes sociais. Alguns deles se defenderam com um caminhão de números. O vereador Kenny Mendes, por exemplo, afirmou que votar contra o reajuste seria permitir que a cidade quebrasse financeiramente. E disse que o município não precisa de heróis para brigar contra as estatísticas.
Realmente, Santos não necessita de heróis. A cidade precisa de uma Câmara capaz de questionar a administração, e não de se ajoelhar diante de todos os projetos do Poder Executivo, prática usual desde a gestão Beto Mansur. E necessita de uma administração que seja capaz de abrir a caixa preta de suas finanças, para que saibamos se há possibilidade de quebra e quais foram os responsáveis pela bagunça. Mas é esperar que a gestão atual corte a própria carne – muitos estão no governo há quase 17 anos – e confrontar o ex-prefeito Papa, hoje no próprio PSDB.
Os vereadores têm a obrigação de saber que aprovar o reajuste de 12% no IPTU, rejeitando todas as emendas, é esperar pelos tomates do público, revoltado com tantas vozes desafinadas. E sabem disso!
Diante disso, você sabe quem votou pelo reajuste? Eis os 17 parlamentares, em ordem alfabética: Ademir Pestana, Antônio Carlos Banha Joaquim, Cacá Teixeira, Douglas Gonçalves, Fernanda Vanucci, Hugo Dupreé, Jorge Vieira da Silva Filho (Carabina), José Lascane, José Teixeira (Zequinha), Kenny Mendes, Manoel Constantino, Marcus de Rosis, Murilo Barletta, Roberto Oliveira, Sadao Nakai, Sandoval Soares e Sérgio Santana. A conta também é deles!
quinta-feira, 28 de novembro de 2013
Cotas na política
Por conta do Dia da Consciência Negra, parlamentares reacenderam a discussão sobre criar cotas para deputados negros. Mas o debate foi tímido – é verdade -, sufocado pelas notícias sobre a prisão dos colegas condenados pelo mensalão.
A proposta é mais um capítulo da distorção político-partidária em torno das cotas no Brasil. O tema, em prática no país há pouco mais de uma década, foi insuficiente para provocar alterações culturais nas relações étnicas. Não aconteceram mudanças substanciais no ensino superior, espaço onde as cotas geraram gritarias e outras posições agressivas. Os negros representam de 3 a 5% dos universitários, números que se mantiveram estáveis no período.
As pesquisas socioeconômicas indicam que os negros ainda recebem menos do que brancos na mesma posição profissional e com a mesma formação acadêmica. Negros recebem 36% a menos, índice muito próximo de uma década atrás. Entre os 1% mais ricos, negros e pardos representam somente 16% da população.
Criar cadeiras na Câmara dos Deputados é reforçar a mentalidade de segregação, criando um parlamento dentro de outro. Combater o racismo é, acima de tudo, propiciar condições estruturais para que o negro possa ter espaço para se desenvolver em termos políticos. Cadeiras só servem de consolo, se os convidados vão permanecer sem voz ativa na festa.
A educação política passa pela redução da desigualdade social, e não por constituir uma minoria no Congresso, a ser ignorada em suas reivindicações. O parlamento, novamente, aposta em projetos cosméticos, que agradariam um nicho eleitoral, sem – de fato – apresentar condições para alteração do modelo de discriminação no país.
Um exemplo é a lei 10.639/03, que estabelece o ensino de História e Cultura de origem africana. Isolada, a lei teve pouco efeito prático nas redes de ensino. A capacitação, no geral, é restrita a uma minoria de professores. A lei, mais uma vez, mal cutuca mentalidades enraizadas, até porque é preciso que se reconheça com todas as letras que o Brasil é um país racista.
Sem observar o quadro socioeconômico, o Congresso Nacional continuará como mais uma miragem para a maioria da população negra. Segundo levantamento divulgado pela ONG Transparência Brasil, somente 9,8% dos deputados federais e senadores são negros e pardos. Faltam números disponíveis para que se possa construir um quadro evolutivo, mas se sabe que estes grupos sempre tiveram poucos representantes.
A legenda com maior índice de parlamentares negros e pardos é o PT: 15%. No PSDB, principal adversário, negros e pardos não passam de 3,4%. O PT, aliás, estabeleceu que 20% das chapas que concorrem à direção do partido sejam compostas por negros e outros grupos minoritários. Mas vale ressaltar que nem o PT alcança o índice de 30% de mulheres candidatas, como determina a legislação eleitoral.
Antes de se criar cotas na Câmara dos Deputados, são necessários outros passos no sistema político. 51% dos brasileiros são negros ou pardos. E nenhum partido se aproxima deste percentual de filiados, quanto mais de candidaturas nas últimas eleições. O Congresso Nacional é mais um termômetro que indica a temperatura nas relações raciais no país.
Entretanto, houve uma mudança radical nos últimos dez anos. As cotas desnudaram um tipo de esqueleto autoritário. Aqueles que insistem em negar o racismo no Brasil escrevem livros e vomitam bobagens na TV. São os mesmos “heróis do atraso”, que costumam defender a limpeza social de mendigos e a matança fardada nas periferias. É a turma que também exala machismo e homofobia. Os reacionários têm agora nome, sobrenome, cargos e títulos intelectuais. Seremos coniventes com eles?
sexta-feira, 22 de novembro de 2013
O costureiro
A política é a arte do transitório. Nenhuma vitória é definitiva, assim como nenhuma derrota enterra carreiras eleitorais. No Brasil, as alianças políticas são, por vezes, tão improváveis – não apenas no sentido ideológico -, que servem como mágica para ressuscitar quem era dado como morto.
Em outubro do ano passado, o deputado federal Márcio França, sofreu – indiretamente – a maior derrota de sua biografia. Depois de uma campanha afogada na soberba e sustentada por pesquisas eleitorais, França assistiu de camarote à derrota do filho Caio na disputa pela Prefeitura de São Vicente, a maior surpresa do processo eleitoral na Baixada Santista.
Uma dinastia de 16 anos ruiu em apenas uma hora, com o grito eletrônico das urnas, vindo da Área Continental da cidade. O atual prefeito Luiz Cláudio Bili reconheceu, na noite da vitória, que parte dos votos eram contra o menino-herdeiro. Pai e filho conviveram com o silêncio por oito meses até a digestão (talvez parcial, talvez completa) do desastre.
Um ano depois, Márcio França deixou – sem escalas – o gabinete de uma secretaria estadual coadjuvante para entrar nos holofotes da principal e mais improvável aliança política da corrida para a presidência. O ex-prefeito de São Vicente usou linhas e agulhas e ajudou a costurar o acordo que levou Marina Silva ao PSB.
É óbvio que nenhuma aliança deste porte depende de um único costureiro. O próprio Márcio França não esperava, como disse à revista Piauí. “Convidei ele (Walter Feldmann) e a Marina. Convidei por educação porque ninguém imaginava que ela fosse.”
O fato é que o deputado federal soube capitalizar para si a autoria da obra, sem que ninguém em seu partido dissesse o contrário. A vitória retomou o planejamento (e sonho de consumo) do atual secretário estadual de Turismo: ser vice-governador do Estado.
Como ainda restam 10 meses e meio para as eleições, a política é ainda líquida, flexível e aberta às negociações. Márcio França precisa quebrar – pela segunda vez – a falsa fragilidade de Marina Silva, que acena com candidato próprio para o Governo de São Paulo. Um nome nascido dentro de casa é, definitivamente, mero figurante na disputa, ao mesmo tempo em que sepultaria – por hora – o sonho do ex-prefeito de São Vicente.
Marina Silva, apesar da filiação ao PSB apontar o contrário, age com a lógica. Como enfrentar os tucanos na eleição presidencial e estar de braços dados com eles no principal Estado? Abraçar Alckmin e fingir que não enxerga Aécio Neves no mesmo palanque?
Já Márcio França aposta na vida real. Nela, acordos não dependem de partidos, ideologias, legislação ou distância geográfica. Acordos dependem de projetos de poder. O ex-prefeito de São Vicente tem no PSB, um novo morador que se encaixa como exemplo. Vicente Cascione foi, na Câmara dos Deputados, vice-líder do Governo Lula, enquanto em Santos seguia como tradicional adversário de Telma de Souza, do mesmo PT.
França tem que correr para alinhavar que tipo de roupa pretende usar na festa de outubro de 2014. Vice-governador da dinastia tucana? Reeleger-se deputado federal como Plano B? Ou permanecer na condição atual, como chefe de uma secretaria de visibilidade política relativa?
O problema é que a aliança que o alçou à condição de costureiro competente pode se virar contra o feiticeiro. Por um lado, Márcio França tem que reconhecer que Marina Silva, embora magrinha, veste número maior no guarda-roupa político nacional. Por outro, aprendeu, na cidade onde nasceu para a vida pública, que nenhuma tendência desfila eternamente na passarela eleitoral.
quinta-feira, 14 de novembro de 2013
Estupro: a pandemia
O número de estupros cresceu 23% na Baixada Santista. Em 2012, foram 672 casos, contra 545 no ano anterior. Em 2013, até setembro, foram 413 ocorrências, média que se aproxima de dois casos por dia na região.
No Estado de São Paulo, uma mulher é estuprada a cada 40 minutos. No país, dez casos por dia. As estatísticas constituem uma pilha de dor, de impunidade, de acobertamento e de traumas, mas parecem não sensibilizar aqueles que, com o poder em mãos, também deveriam se chocar com elas.
O argumento das autoridades é que a mudança da legislação, em 2009, colaborou para o crescimento do caso. A partir daquele ano, os atentados violentos ao pudor passaram a ser considerados crimes de violência sexual. O aumento foi de 162% no Brasil, mas a retórica não se justifica, pois o crescimento é gradual, ainda que a lei esteja em vigor há quatro anos.
A violência sexual é uma pandemia. Esta doença social não escolhe endereço, classe social, nível de desenvolvimento econômico. É uma enfermidade globalizada, que respeita somente as particularidades, embora conectadas ao machismo, ao sentimento de posse, ao desprezo pela mulher e à certeza de que o silêncio garante a repetição da monstruosidade.
No Congo, estuprar é hábito cultural, fruto das guerras civis. Na Índia, os estupros coletivos povoaram o noticiário internacional no primeiro semestre. Os Estados Unidos registram um caso de agressão sexual a cada dois minutos. Uma em cada três mulheres suecas sofrem violência sexual. Na vizinha Dinamarca, são três em cada dez.
O Brasil e a Baixada Santista, em particular, não possuem sólidas políticas públicas de combate aos estupros. A instalação de delegacias de atendimento à mulher são aspirinas diante de um tumor em escala terminal. Aliás, a maioria das delegacias não abrem as portas nos finais de semana, período com maior índice de agressões.
Os abrigos femininos são insuficientes para as vítimas, a maioria estupradas por pessoas conhecidas, como maridos, namorados, pais, tios, primos, vizinhos e amigos da família. Quando criam coragem para registrar um Boletim de Ocorrência, as vítimas precisam – muitas vezes - retornar para o convívio com quem as violentou. É comum o constrangimento de ter que retirar a queixa na delegacia para preservar a vida.
Infelizmente, os crimes de estupro não aparecem entre as prioridades da política de segurança pública. Por conta do silêncio e das evidentes dificuldades de se falar publicamente sobre o assunto, a violência sexual fica restrita às campanhas educativas (às vezes, somente cartazes com telefone para denúncia anônima). Estupro não tem a visibilidade política do tráfico de drogas e dos homicídios. A única semelhança é que, nos três crimes, os números engordaram.
Enquanto houver a sensação de impunidade, o modelo de vergonha para as vítimas e deleite para os estupradores seguirá perpétuo. É urgente ultrapassarmos a fase das campanhas educativas, que se mostraram ineficientes. A impressão é que as mensagens só são lidas pelas vítimas após o crime. Se os agressores leem, certamente debocham. E não é preciso que se modifique a legislação. A lei é rigorosa, somente depende de estrutura consistente e política pública de longo prazo para que entre em vigor de verdade.
Uma observação: por razões óbvias, é a terceira vez este ano que me sinto obrigado a escrever sobre violência sexual neste espaço. Os demais textos – Cultura do Estupro I e II – podem ser encontrados no blog Giz sem cor. http://gizsemcor.blogspot.com.br/2013/05/cultura-do-estupro-ii.html
sábado, 26 de outubro de 2013
Carta aos professores
Caros colegas,
Assim como vocês, recebi muitas felicitações por causa do dia 15 de outubro. Muitas delas me pareceram honestas, que indicaram admiração e reconhecimento, relevando erros por mim cometidos em 11 anos de docência. Outras manifestações, claro, cumprem as convenções sociais, em parte ditadas pela cartilha de bom mocismo das redes sociais.
Como estabelecer a diferença entre as duas posturas? Não sei, sinceramente, mas tenho a tendência a crer que a maneira como fomos tratados por aqueles que nos felicitam hoje pesa em minha interpretação.
Não comemorei o Dia dos Professores. Não pronunciei a palavra escola. Agradeci educadamente os cumprimentos, mas me soaria cínico se pulasse de alegria ou soltasse fogos de artifício diante da condição contemporânea desta atividade profissional.
Ser professor não é missão, destino, sacerdócio ou trabalho voluntário. Não dou aulas. Estudo todos os dias para me preparar e ter o que dizer dentro de uma sala, para 10, 20, 50 pessoas, ainda que erre. Sempre acreditei que tenho que ser remunerado por este comportamento, como qualquer trabalhador.
Reproduzir a ideia de que somos seres especiais aponta, a curto prazo, uma posição presunçosa. Professores são fundamentais em qualquer sociedade, assim como médicos, enfermeiros, motoristas, engenheiros e atletas. Somente para mencionar poucos atores – ah, esses também são essenciais – nesta história.
A longo prazo, esta condição única – realimentada como discurso de confetes e serpentina – mascara a desvalorização contínua de nossa atividade profissional. Recebo um salário acima da média dos professores brasileiros. É claro que a frase anterior pode ser distorcida do contexto. Basta torturar números que eles dizem o que queremos. Porém, devo acrescentar que trabalho quase o dobro de horas fora da sala de aula. Voluntariado?
Sofro para pagar as contas, mantenho um padrão de vida classe média, visito bancos – os cassinos de hoje – de tempos em tempos, fico exausto entre números para realizar qualquer sonhozinho de final de semana.
Comemorar a data me indica hipocrisia. O país tem um déficit de 300 mil professores. O piso nacional da categoria gira em torno de R$ 1500 e muitos Estados ignoram a referência. Este valor é pouco mais da metade do salário mínimo considerado como ideal pelos economistas. E risível quando compararmos com alguns dos melhores sistemas educacionais do planeta.
É triste assistir ao Governo Federal se esfalfar para implementar o Programa Mais Médicos, como único mecanismo de solução para abismo social brasileiro. Só os estúpidos entendem que o país não necessita urgentemente de profissionais de saúde.
Por que não temos o Programa Mais Professores? Por que médicos recebem R$ 10 mil e o piso do professorado é 15% disso? Associar professores a trabalho menor é prática em todos os níveis. Nas universidades, as licenciaturas são primos pobres. Recebem, aliás, muitos alunos de baixa renda, em parte os primeiros de suas famílias a alcançarem o ensino superior. Não é caridade, é mudança social que deveria ter ocorrido há décadas.
As licenciaturas moram no final da fila dos investimentos em pesquisa. A retórica não é explícita, mas a rotina indica que outras áreas – diluídas em exatas e de saúde – merecem mais verbas pela utilidade à ciência.
Por limitações de espaço, optei por ficar em somente um exemplo e não descer ao inferno do ensino fundamental e médio. Lembrem-se, colegas, que estamos a pouco menos de um ano das eleições. Ouviremos pregações messiânicas de que a educação salvará o país. E que o professor está no centro do milagre. É a clássica resposta que foge da pergunta e resulta em nota zero.
sábado, 19 de outubro de 2013
Amar é ...
Estaria pensando em eleição? |
Política é apaixonante. E, como todas as paixões, pode desaguar em amor ou morrer na amargura da quarta-feira de Cinzas. Quando se aproximava o final do prazo para troca de partidos, vimos o amor florescer em erva daninha, sob a forma de corações despedaçados, flertes juvenis, casamentos e divórcios.
O mercado dos sentimentos na política não nos entrega somente desilusões. Tem também poesia, pelo menos na inspiração. Que me desculpe o poeta de Itabira, Carlos Drummond de Andrade, mas os versos de Quadrilha rimam com esta história de amor.
Marina Silva, por exemplo, amou um dia o PT, que aparece pela primeira vez na história. Depois, se apaixonou pelo PV. Então, tentou construir uma Rede de amor próprio. Casou-se com o PSB por interesses.
O PSB é também o novo amor do ex-deputado federal Vicente Cascione, que antes amava o PTB, que hoje ama o deputado estadual Luciano Batista, antes apaixonado pelo mesmo PSB, de Márcio França. Cascione chegou a construir um amor atribulado, em Brasília, com o PT, que aparece de novo na história.
Em São Paulo, PSB e PTB amam o PSDB de Geraldo Alckmin, que continua com o casamento estável. Os três amaram, durante oito anos, o ex-prefeito de Santos João Paulo Tavares Papa, que amava o PMDB e se casou com o PSDB. Em São Vicente, todos amaram também o PT, que perturba para ressurgir nesta história.
Na primeira vila do Brasil, o PSB chegou a ser amado por 20 parceiros, na gestão Tércio Garcia. Hoje, parte deles ama o PP do prefeito Luiz Claudio Bili. Muitos enterraram a vergonha de amar a sigla errada no ano passado.
O PP foi um amor de 20 anos do ex-prefeito Beto Mansur, mas não é o primeiro divórcio dele. Quando governou Santos, o PP era amado pelo PMDB, ex-casa de Papa que, você se lembra, trocou juras de felizes para sempre com o PSDB.
O PSDB, por sinal, é filho rebelde do PMDB e teve como um dos fundadores justamente o atual deputado federal Beto Mansur. Antes do PP, ele amou o falecido PDS. Hoje, ele ama o PRB, de Celso Russomano e da Igreja Universal, que, em Brasília, ama o PT, que insiste em se colocar no centro da história, mas também ama o PP, só que em São Paulo.
Russomano já amou o PP, assim como Beto Mansur, mas antes amou o PSDC e PFL, que também já amou o PSDB, em tempos de FHC no Palácio do Planalto. O PL, que veio ao mundo pelo ventre do PFL, ama o PSDB em São Paulo, mas em Brasília namora com o PT, que sempre se intromete no enredo.
O PT conquistou o PMDB, que sempre amou um marido provedor. Na prática, todos os presidentes desde o final da ditadura, com exceção de Fernando Collor, que amou – quando Lula era presidente - o PT, personagem novamente presente no roteiro.
Collor, que amou o falecido PRN, hoje vive de amores com o PTB, que com FHC no governo federal, amou o PSDB e, em São Paulo, é um amor para a saúde e para a doença dos tucanos.
O amor é um sentimento complexo, que nos confunde quando tentamos explicá-lo. Como defendem os psicólogos, o amor traz consigo um caldeirão de coligações, perdão, emoções.
Todo mundo tem uma história de amor. A mais interessante, talvez, seja a de Marina Silva. Para ela, amar o PSB é uma “filiação transitória democrática”, expressão que me lembrou outro poema de Drummond.
Que me perdoe o poeta mineiro, mas amar – na política – não é verbo intransitivo. A um ano de eleições, o amor não passa de um substantivo comum, impregnado de luxúria e, de fato, transitório.
quarta-feira, 9 de outubro de 2013
E agora, Marina?
Presidente e vice? Ou vice-versa? |
Independentemente da decisão tomada por Marina Silva de se filiar ao PSB, o registro negado à Rede Sustentabilidade serve como termômetro para sentirmos os cheiros intestinais da política partidária brasileira. Marina teria, enquanto eu produzo este texto, algumas horas para se filiar a qualquer partido se desejar concorrer à Presidência da República, em 2014.
A decisão do Tribunal Superior Eleitoral é, obviamente, política, assim como quaisquer atos jurídicos. No entanto, o passado recente indica que o grau de contaminação político-partidária alcançou a elite das togas. A derrota da ex-senadora é mais um sinal que se soma, por exemplo, ao julgamento do mensalão e, no caso dos novos partidos, à sensação de que podem existir vários pesos e várias medidas, com forte influência subjetiva na batida dos martelos.
Soa realmente estranho assistirmos à criação de dois novos partidos, o Solidariedade e o Pros, em meio às denúncias de fraudes de assinaturas, por conveniência, empurradas para debaixo das urnas eletrônicas a um ano das eleições. São agora 32 partidos, um delírio político, exemplo único e vergonhoso no mundo.
A derrota da Rede Sustentabilidade também nos esfrega no rosto o mercadão de pulgas que se tornou a troca de legendas. É pior do que a dança dos jogadores de futebol, andarilhos que mudam de casa a cada seis meses. Neste momento, é também conveniente que se rasgue a lei que estabelece os partidos como “proprietários” dos mandatos. Prevalece a prostituição por um, dois minutinhos no horário eleitoral gratuito.
De vereadores a parlamentares federais, todos mudam de camisa de olho em recursos de campanha, tempo de TV e visibilidade eleitoral. É o verniz que cobre o cinismo dos que juram justificativas ideológicas e outros falsos amores para pular de barco.
Marina Silva, diante da derrota em curso, preparou um plano B? Ninguém joga fora 20 milhões de votos numa corrida presidencial. A ex-senadora largou o PT por conta da sujeira que o envolvia. Divorciou-se do PV, um saco de gatos que finge apreço pelo meio ambiente e é comandado há 12 anos pelo mesmo grupo.
Ao se filiar ao PSB, qual seria a desculpa de Marina Silva? Como explicar ter jogado pela janela todas as convicções pregadas em praça pública nos últimos quatro anos? Seria mais uma personalidade a se agarrar na ética de resultados, nos fins que justificam os meios?
A presidente Dilma Rousseff, até o momento, é a grande vitoriosa diante da morte da Rede Sustentabilidade. É evidente que as pesquisas eleitorais pouco acrescentam para o resultado em outubro de 2014. Só retratam um momento, e o instante atual apontava Marina Silva como a única capaz de incomodar o passeio de Dilma rumo à reeleição. Mas lembremos que Aécio Neves ainda não colocou o bloco na rua.
De fato, a Rede natimorta nos mostrou que a política brasileira segue firme e forte em seus caminhos tortuosos para alcançar as portas de sempre. No velho ditado do politiquês, uma eleição começa assim que termina a outra.
quinta-feira, 3 de outubro de 2013
A pizzaria
Cansei de ser jornalista. Pouco dinheiro e excesso de trabalho. Por influência de gente do cerrado, resolvi abrir uma pizzaria. Fiquei assustado quando soube que São Paulo tem 1500 casas do mesmo ramo. Em Santos, são quase 200 pizzarias, entre as requintadas a salmão e camarão sete barbas e as portinhas com motoboys mal remunerados.
Virei um empreendedor no mundo das massas, molhos de tomate e queijos ao perceber como o negócio é rentável em todo o país. Em Brasília, por exemplo, vender pizzas é como oferecer água para andarilhos no Saara. Em algumas, os garçons andam de terno e gravata. O profissionalismo é exemplar, ainda que os funcionários possam ser demitidos depois de quatro anos.
Conheci esta semana uma destas pizzarias. Vi apenas pela TV. Possuía vários gerentes, todos vestidos de toga preta e ares de juízes. O problema, comenta-se no mercado, é que a casa pode falir. Perdeu credibilidade de tanto que seus administradores tagarelam. Falam demais e resolvem de menos as necessidades dos clientes.
Ao conversar com consultores, percebi que – para sobreviver na nova profissão – tinha que apresentar um sabor diferente no cardápio, além das tradicionais mussarela, calabresa, atum, frango com catupiry e portuguesa.
Ao contratar um chef de cozinha, meus problemas acabaram, como diriam os humoristas da TV. O chef, nascido em Pindamonhagaba, tinha vasta experiência no setor de massas e afins. São 16 anos de experiência comprovada na maior pizzaria do Estado.
O chef me apresentou uma receita simples, porém de alto custo. Aceitei porque acredito que, para comer bem, é preciso mexer na carteira. Ele trouxe uma massa conhecida como projeto. Ela nasce incompleta, sofre modificações antes de ir ao forno e, proporcionalmente, quanto maior fica mais cara será.
Para cobrir a massa, o chef misturou dois ingredientes. Podem ser comprados em qualquer mercadinho. Mas é fundamental misturá-las, ao gosto do freguês. A quantidade de reuniões e de comissões depende do tempo de cozimento. Na prática, não alteram o sabor da pizza, mas ficam bonitas aos olhos de quem vai comê-la.
O segredo é o que vem por cima. A receita pede dois ingredientes que exigem certa habilidade no preparo. Sempre é difícil comprá-los. Pelo menos, no cartão. Dizem que, em dinheiro vivo, sem identificação do vendedor e do comprador, tudo se aceita. Não é contravenção, soa mais como conversa fiada para valorização o produto.
Testemunhei a história quando vi o chef utilizá-los para decorar a pizza. Ele usou duas rodelas de licenciamento ambiental, não sem antes cochichar para mim, transpirando presunção. “Basta dizer ao vendedor que ele é contra o progresso. É da turma do não. A pressão se torna insuportável.”
A outra parte fica mais robusta com dois pedaços ralados de tombamento histórico. São vários os modelos, os canais. Em Santos, sete tipos. Para dar liga entre as duas partes, tempere com a promessa de desapropriação de áreas e acrescente um pitada de alterações no sistema viário. Este último tempero é mais palavrório do chef, interessado em agradar clientes especiais. Como a cereja inócua que arremata o bolo.
Com o cardápio pronto, faltavam dois detalhes essenciais; os nomes, tanto da pizzaria, quanto do novo sabor. Venha, caro leitor, saborear na Pizzaria Obras Públicas a meio VLT, meio túnel.
Antes de abrir uma pizzaria, porém, pensei em criar um concurso. O vencedor terá o direito de criar o logo e a fachada da casa. Assim, economizo um pouco. Após tanto investimento, o lucro virá até outubro de 2014?
Os passos de Papa
Política não é um exercício para apressados. Apenas os pacientes enxergam o óbvio. A saída do ex-prefeito de Santos João Paulo Tavares Papa do PMDB e o noivado (quase casamento) com o PSDB representa mais um capítulo de uma novela tipicamente comercial, daquelas que minha avó poderia dizer: “Quem viu o primeiro e o último capítulos viu todos.”
Papa é um excelente estrategista, daqueles jogadores com a capacidade de antever dois, três movimentos no tabuleiro de xadrez. Uma de suas virtudes é saber esperar. Ao contrário de muitos políticos, que tagarelam diante de qualquer luz acesa, o ex-prefeito de Santos é calculista em seus passos. Domina a arte de sair de cena e o momento exato de retornar ao palco.
Não sou fã dele. Penso que sua gestão permitiu o aumento da desigualdade social no município. O legado dos espigões e os problemas ambientais também devem ser creditados, em parte, na conta dele e de sua turma.
No entanto, administrador e político são personagens diferentes. Papa anunciou sua saída do PMDB sem abrir a boca. Deixou que outros falassem por ele. Ignorou as especulações da imprensa e da classe política. No movimento seguinte, manteve acesos os flertes com outros partidos, como o PSB, do cacique Márcio França. Aliás, um dos 17 partidos que ajudaram a sustentar o governo Papa.
Sem surpresas, o ex-prefeito continuou mineiro quando o PSDB abriu as portas para ele. Onde estaria a novidade? De fato, nenhuma. Papa sempre foi tucano, somente não possuía a carteirinha oficial do ninho, mas sempre se sentou nos sofás mais confortáveis da casa. O PSDB, por sinal, nasceu da barriga do PMDB.
Como escrevi aqui, no início do ano, Papa foi o maior vencedor da eleição de 2012. Em primeiro lugar, porque Paulo Alexandre Barbosa encarava um jogo ganho. A vitória no primeiro turno era cristalina a quatro, cinco meses antes da votação.
Depois, Papa segurou até onde pôde o lançamento da candidatura própria – e natimorta - do PMDB. Até os turistas sabiam que Sérgio Aquino não poderia vencer cachorros grandes como Telma de Souza e Paulo Alexandre, sujeito que construiu sua candidatura ao longo de oito anos e soube o instante correto de apostar suas fichas.
Durante a campanha, Papa abraçou Aquino sem virar as costas para o PSDB, que teve o vice-prefeito na sua segunda gestão. Tanto que boa parte de sua equipe, de secretários ao terceiro escalão, permaneceu na Prefeitura. Crédito também das alianças partidárias.
Discretamente, Papa saiu de cena para trabalhar no governo do Estado. Assumiu uma diretoria na Sabesp, retornando à casa que lhe deu visibilidade como técnico há 20 anos. Era a hora de só observar o tabuleiro e esperar o relógio correr. O ex-prefeito muda de camisa às vésperas do final do prazo para troca de partidos.
A entrada de Papa no mundo tucano gera, claro, ganhos secundários. O maior deles cai nas mãos do atual prefeito de Santos. Paulo Alexandre Barbosa, em tese, terá ao lado quem seria o principal obstáculo à reeleição em 2016, além de consolidar o PSDB como o principal partido da região.
O próximo passo, depois da filiação oficial ao PSDB, é definir se Papa concorrerá à deputado federal ou estadual. Ele tem crédito eleitoral para os dois cargos. Contudo, como adepto da paciência, Papa voltará a ler o tabuleiro e compreender os movimentos dos adversários. Ele tem seis meses para sair do ninho na hora certa.
A política é, em definitivo, a arte do previsível. Mas o redundante não é para todos.
sexta-feira, 20 de setembro de 2013
O efeito borboleta
Ronaldo Francini (Foto: Marcos Piffer) |
Reportagem publicada originalmente na revista Guaiaó, edição n.3.
O biólogo Ronaldo Bastos Francini tem duas vantagens sobre a maioria das pessoas. A primeira delas é que conheceu o paraíso em vida. Seria petulante não reconhecer que a leitura do Éden varia conforme a subjetividade, mas Ronaldo transformou o paraíso na extensão da própria casa. Aí reside a segunda vantagem: ele já esteve 500 vezes lá, nos últimos 40 anos. Todas as visitas foram catalogadas, com hora, data e resultado da viagem.
O paraíso, para o biólogo, fica a 45 minutos de carro de Santos. Inclui, no final do trajeto, meia dúzia de quilômetros em estrada de terra. “Minha vida é o campo”. Ronaldo não se refere aos prazeres da vida rural, mas ao campo de pesquisa, o lugar mais próximo do sagrado para alguém que debate qualquer assunto com argumentos científicos, exceto a fé.
De aparência frágil e simpático como a barba branca que ostenta há anos, o biólogo transformou o Vale do Quilombo, na Área Continental de Santos, como se fosse a sala de estar do apartamento onde mora. “Um ou duas horas lá recarregaram todas as minhas baterias.”
Ronaldo é um dos maiores especialistas do mundo em borboletas. Perdeu as contas da quantidade de espécimes coletados em 25 anos de devoção à ciência. As borboletas hoje estão espalhadas pelo laboratório de Biologia da Conservação, a sala 211 na Universidade Católica de Santos, em sua própria casa e no Museu de Zoologia, da Universidade de São Paulo (USP). E foi por causa de uma borboleta que Ronaldo alcançou o êxtase em pleno paraíso.
Em 2008, o biólogo seguiu com dois alunos para o Vale do Quilombo. A visita de rotina serviria para mostrar aos estudantes como funcionava a pesquisa em campo. Observar espécies de insetos – Ronaldo já trabalhou com formigas -, sentir o cheiro da natureza, interagir com os habitantes locais (pessoas, neste caso) e, se possível, coletar novos espécimes de borboletas.
Durante a visita, Ronaldo indicou uma planta para os alunos e se deparou com uma borboleta que jamais tinha visto na vida. Paralisou diante dela e se viu numa encruzilhada. Diante da possibilidade de uma espécie nova, não sabia se a coletava com a rede ou se a deixava ali. Optou por fazer algumas fotos e coletá-la depois. As fotos foram enviadas para colegas, que confirmaram ser uma borboleta Reynald, um gênero de origem amazônica. Ronaldo se sentiu aliviado: a borboleta não integrava nenhuma lista de animais em extinção. “Eu talvez nunca mais a veja na minha vida”.
Ronaldo está em constante alerta sobre o Vale do Quilombo. Vibrou com o engavetamento do projeto de exploração urbana do local, na década passada. Mas, pela experiência de quatro décadas, sabe que vigiar o paraíso representa uma missão sem intervalos ou mais algumas centenas de visitas.
Guaiaó: Depois de 40 anos no Vale do Quilombo, você conseguiu – voluntária ou involuntariamente – provocar consciência ambiental nos moradores de lá?
Ronaldo Bastos Francini: Consegui com alguns. Outros não querem ter este contato. Para eles, a natureza é para ser explorada. A forma como as pessoas usam a terra. Uma forma totalmente destrutiva.
Guaiaó: Qual é a saída para se proteger o Vale do Quilombo?
Ronaldo: Transformá-lo em Unidade de Conservação (UC). É um problema de natureza jurídica complexa. Quando o Governo Federal desapropriou a área, nos anos 70, não deu dinheiro para os donos. Hoje, são dois grandes herdeiros. E eles querem o dinheiro de volta, os tais precatórios. Se a gente pensar que o parque nacional mais antigo do Brasil, o Parque do Itatiaia, tem propriedades particulares porque até hoje a situação fundiária não foi regularizada, o futuro é difícil. Mas, no Itatiaia, por estar em área mais elevada, os moradores – alemães, austríacos e poloneses – tinham uma mentalidade mais conservacionista, diferente da mentalidade colonizadora portuguesa. Mas é preciso pensar em reservas extrativistas. Há exemplos na Amazônia, que preservam o sistema natural.
Guaiaó: E o que um biólogo, em um trabalho quase solitário, pode fazer?
Ronaldo: Não adianta querer segurar o mundo. Tenho que estudar o que precisa ser estudado, fornecer embasamento técnico e contribuir com outros projetos científicos. Preocupa-me a Área Continental, que já foi vista com olhos de industrialização no passado. Três eleições atrás, um candidato a prefeito falou em explorar o local como a nova Santos. Muitos sítios se instalaram ali por conta desta propaganda.
O sonho do óleo negro
Ronaldo Bastos é um ambientalista cauteloso. Não é adepto de ações radicais. Acredita na diplomacia e na capacidade de negociação com empresas e governos. Mas ser diplomata não significa amenizar o olhar sobre o cenário que se desenha a sua volta. Neste sentido, o biólogo é implacável com o caminho que a Baixada Santista deseja tomar para queimar etapas de desenvolvimento. Um dos delírios seria o sonho do óleo negro, a ansiedade em enriquecer com a exploração da camada de pré-sal. “Nossa tecnologia ainda é muito primitiva”.
Ronaldo também não poupa o fascínio da humanidade pelo consumo e pela tecnologia. “Em casos de catástrofes, as consequências serão menores para quem possui menos tecnologia”.
Guaiaó: A Baixada Santista fala demais em pré-sal. Mas, há três anos, o discurso dominante era de revisão da matriz energética. Por que o assunto saiu da agenda pública?
Ronaldo: Quais são as matrizes energéticas viáveis para mantermos a industrialização que achamos que queremos? A industrialização hoje requer muita energia elétrica. As opções para a Europa e o Japão vêm de queima de combustível fóssil – as termelétricas – e, inclusive, de exploração de usinas atômicas. Nós temos a opção hidroelétrica. É melhor? Depende. O Estado de São Paulo não tem mais nenhum grande rio onde a fauna aquática não foi eliminada ou substituída. O lago de uma usina hidrelétrica provoca enorme evaporação de água, que altera clima local, regional e global. As implicações são inúmeras, não apenas relacionadas à biologia de curto prazo, os efeitos no bioma. A janela de condições climáticas ideais está se fechando. Até os políticos sabem disso. E nossa tecnologia não consegue fazer previsões. Já a energia solar e a energia eólica são ainda inviáveis. Quem acredita nisso hoje precisa rever os conceitos de física.
Guaiaó: Santos atravessa uma fase de especulação imobiliária fortíssima. Mais de 60 edifícios em construção e outros tantos projetos aprovados pela Prefeitura. A cidade está entre as três maiores frotas de carros; aliás, veículos cada vez maiores. Quais serão as consequências ambientais desta visão de progresso? E por que a cidade não discute as implicações desta perspectiva?
Ronaldo: Santos é uma ilha em todos os sentidos. Somos a Dubai, uma cidade que não é auto-sustentável, mas com a diferença que tem o petróleo para se manter. Estamos investindo em um futuro, o pré-sal, que ainda não é viável. Tudo isso não vai ruir? Podemos levar 70 anos para extrair petróleo. Não sou contra extrair petróleo. Sou contra extraí-lo para queimá-lo. É uma burrice tão grande quanto insistir em queimar florestas para fazer pastagens. Queimamos porque, entre outras coisas, somos dependentes do plástico. A sociedade de hoje não depende somente de energia. O que nos faz assim hoje é o plástico. (aponta para o microscópio no laboratório).
O paraíso, para o biólogo, fica a 45 minutos de carro de Santos. Inclui, no final do trajeto, meia dúzia de quilômetros em estrada de terra. “Minha vida é o campo”. Ronaldo não se refere aos prazeres da vida rural, mas ao campo de pesquisa, o lugar mais próximo do sagrado para alguém que debate qualquer assunto com argumentos científicos, exceto a fé.
De aparência frágil e simpático como a barba branca que ostenta há anos, o biólogo transformou o Vale do Quilombo, na Área Continental de Santos, como se fosse a sala de estar do apartamento onde mora. “Um ou duas horas lá recarregaram todas as minhas baterias.”
Ronaldo é um dos maiores especialistas do mundo em borboletas. Perdeu as contas da quantidade de espécimes coletados em 25 anos de devoção à ciência. As borboletas hoje estão espalhadas pelo laboratório de Biologia da Conservação, a sala 211 na Universidade Católica de Santos, em sua própria casa e no Museu de Zoologia, da Universidade de São Paulo (USP). E foi por causa de uma borboleta que Ronaldo alcançou o êxtase em pleno paraíso.
Em 2008, o biólogo seguiu com dois alunos para o Vale do Quilombo. A visita de rotina serviria para mostrar aos estudantes como funcionava a pesquisa em campo. Observar espécies de insetos – Ronaldo já trabalhou com formigas -, sentir o cheiro da natureza, interagir com os habitantes locais (pessoas, neste caso) e, se possível, coletar novos espécimes de borboletas.
Durante a visita, Ronaldo indicou uma planta para os alunos e se deparou com uma borboleta que jamais tinha visto na vida. Paralisou diante dela e se viu numa encruzilhada. Diante da possibilidade de uma espécie nova, não sabia se a coletava com a rede ou se a deixava ali. Optou por fazer algumas fotos e coletá-la depois. As fotos foram enviadas para colegas, que confirmaram ser uma borboleta Reynald, um gênero de origem amazônica. Ronaldo se sentiu aliviado: a borboleta não integrava nenhuma lista de animais em extinção. “Eu talvez nunca mais a veja na minha vida”.
Ronaldo está em constante alerta sobre o Vale do Quilombo. Vibrou com o engavetamento do projeto de exploração urbana do local, na década passada. Mas, pela experiência de quatro décadas, sabe que vigiar o paraíso representa uma missão sem intervalos ou mais algumas centenas de visitas.
Guaiaó: Depois de 40 anos no Vale do Quilombo, você conseguiu – voluntária ou involuntariamente – provocar consciência ambiental nos moradores de lá?
Ronaldo Bastos Francini: Consegui com alguns. Outros não querem ter este contato. Para eles, a natureza é para ser explorada. A forma como as pessoas usam a terra. Uma forma totalmente destrutiva.
Guaiaó: Qual é a saída para se proteger o Vale do Quilombo?
Ronaldo: Transformá-lo em Unidade de Conservação (UC). É um problema de natureza jurídica complexa. Quando o Governo Federal desapropriou a área, nos anos 70, não deu dinheiro para os donos. Hoje, são dois grandes herdeiros. E eles querem o dinheiro de volta, os tais precatórios. Se a gente pensar que o parque nacional mais antigo do Brasil, o Parque do Itatiaia, tem propriedades particulares porque até hoje a situação fundiária não foi regularizada, o futuro é difícil. Mas, no Itatiaia, por estar em área mais elevada, os moradores – alemães, austríacos e poloneses – tinham uma mentalidade mais conservacionista, diferente da mentalidade colonizadora portuguesa. Mas é preciso pensar em reservas extrativistas. Há exemplos na Amazônia, que preservam o sistema natural.
Guaiaó: E o que um biólogo, em um trabalho quase solitário, pode fazer?
Ronaldo: Não adianta querer segurar o mundo. Tenho que estudar o que precisa ser estudado, fornecer embasamento técnico e contribuir com outros projetos científicos. Preocupa-me a Área Continental, que já foi vista com olhos de industrialização no passado. Três eleições atrás, um candidato a prefeito falou em explorar o local como a nova Santos. Muitos sítios se instalaram ali por conta desta propaganda.
O sonho do óleo negro
Ronaldo Bastos é um ambientalista cauteloso. Não é adepto de ações radicais. Acredita na diplomacia e na capacidade de negociação com empresas e governos. Mas ser diplomata não significa amenizar o olhar sobre o cenário que se desenha a sua volta. Neste sentido, o biólogo é implacável com o caminho que a Baixada Santista deseja tomar para queimar etapas de desenvolvimento. Um dos delírios seria o sonho do óleo negro, a ansiedade em enriquecer com a exploração da camada de pré-sal. “Nossa tecnologia ainda é muito primitiva”.
Ronaldo também não poupa o fascínio da humanidade pelo consumo e pela tecnologia. “Em casos de catástrofes, as consequências serão menores para quem possui menos tecnologia”.
Guaiaó: A Baixada Santista fala demais em pré-sal. Mas, há três anos, o discurso dominante era de revisão da matriz energética. Por que o assunto saiu da agenda pública?
Ronaldo: Quais são as matrizes energéticas viáveis para mantermos a industrialização que achamos que queremos? A industrialização hoje requer muita energia elétrica. As opções para a Europa e o Japão vêm de queima de combustível fóssil – as termelétricas – e, inclusive, de exploração de usinas atômicas. Nós temos a opção hidroelétrica. É melhor? Depende. O Estado de São Paulo não tem mais nenhum grande rio onde a fauna aquática não foi eliminada ou substituída. O lago de uma usina hidrelétrica provoca enorme evaporação de água, que altera clima local, regional e global. As implicações são inúmeras, não apenas relacionadas à biologia de curto prazo, os efeitos no bioma. A janela de condições climáticas ideais está se fechando. Até os políticos sabem disso. E nossa tecnologia não consegue fazer previsões. Já a energia solar e a energia eólica são ainda inviáveis. Quem acredita nisso hoje precisa rever os conceitos de física.
Guaiaó: Santos atravessa uma fase de especulação imobiliária fortíssima. Mais de 60 edifícios em construção e outros tantos projetos aprovados pela Prefeitura. A cidade está entre as três maiores frotas de carros; aliás, veículos cada vez maiores. Quais serão as consequências ambientais desta visão de progresso? E por que a cidade não discute as implicações desta perspectiva?
Ronaldo: Santos é uma ilha em todos os sentidos. Somos a Dubai, uma cidade que não é auto-sustentável, mas com a diferença que tem o petróleo para se manter. Estamos investindo em um futuro, o pré-sal, que ainda não é viável. Tudo isso não vai ruir? Podemos levar 70 anos para extrair petróleo. Não sou contra extrair petróleo. Sou contra extraí-lo para queimá-lo. É uma burrice tão grande quanto insistir em queimar florestas para fazer pastagens. Queimamos porque, entre outras coisas, somos dependentes do plástico. A sociedade de hoje não depende somente de energia. O que nos faz assim hoje é o plástico. (aponta para o microscópio no laboratório).
Francini em seu laboratório na Unisantos (Foto: Marcos Piffer) |
Guaiaó: Você nasceu em Santos, esteve fora e voltou para trabalhar aqui. O que você vê quando olha para a cidade?
Ronaldo: Prédios!!! Sou do tempo em que a cidade era repleta de ruas de terra e terrenos baldios. O saneamento básico chegou em casa no início da década de 60. Meus filhos conheceram natureza porque saia com eles para longe da cidade. Santos é uma ilha. A gente só olha para o nosso umbigo. Achamos que é o melhor lugar do mundo. Tem coisas bonitas, mas tenho dúvidas. As paisagens foram um dos fatores que me fizeram voltar. Você ainda vê verde, mesmo meio descolorido. Repito: precisamos olhar para o mundo, mas também conversar com ele. Estamos atrasados em questões educacionais e tecnológicas. Achamos melhor ir para São Paulo. Viramos uma cidade-dormitório. A percepção que tenho é que paramos no tempo.
Guaiaó: Qual é o principal problema ambiental de Santos?
Ronaldo: A densidade populacional. Isso acarreta muitas outras coisas, como o trânsito. Cada prédio de 40 andares, cada um com dois, três carros na garagem. A cidade vai crescer, além da população flutuante de final de semana. O ecólogo não está interessado no tamanho da população, mas o tamanho dela em relação à área ocupada. Os efeitos da densidade já foram vistos em várias espécies e agora atingem a nossa. O aumento da densidade pode ser resolvido com políticas públicas que, de alguma maneira, podem cercear as causas. A densidade pode não ser um problema visível de curto prazo, mas é o pior.
Guaiaó: Por que o discurso ambiental não consegue a mesma penetração em certas camadas da sociedade quando comparado ao discurso político, impregnado de promessas de riqueza e desenvolvimento econômico?
Ronaldo: Dos anos 60 para cá, as grandes empresas e os políticos se apropriaram da palavra ecologia e hoje vendem produtos que não tem o menor significado ecológico. Ao mesmo tempo em que houve a apropriação deste contexto da ecologia, os ambientalistas ficaram com a imagem de xiitas. Até porque muitos deles o são. Muitas pessoas tem boas ideias, mas falta a elas base científica. A visão se torna poética, mas não convencerá as pessoas se não houver argumento sólido da ciência. O movimento ambientalista, hoje, está meio de escanteio, como malucos. E muitas das ações radicais colocam em risco a vida deles e de outras pessoas. Hoje, eu tomo muito mais cuidado com o que falo. Os ambientalistas são muito jovens ou muito velhos. O homem maduro está no mercado de trabalho.
Guaiaó: E o ambientalismo de boutique? Onde entram os consumidores que acreditam preservar o meio ambiente quando compram um produto no shopping?
Ronaldo: Alguns dos institutos que certificam os produtos nem existem de fato. É virtual. Há empresas que financiam projetos para compensar os grandes impactos ambientais. O planeta passou por problemas em larga escala. A última que conhecemos foi há 60 milhões de anos e destruiu cerca de 70% da vida. O que sobrou somos nós e outros organismos que evoluíram. Todas as espécies são egoístas, desejam apenas se reproduzir. Nós também. O que nos resta é nos educarmos. Todas as sociedades tem essa força egoísta. Será que sobreviveremos mais dez mil anos? Temos tecnologia para montar uma colônia em Marte? Conseguimos reproduzir microorganismos e algas em ambientes fechados. Mas todas as tentativas – e a Nasa investe nisso – de reproduzir a sociedade humana em ambientes fechados fracassaram.
O outro paraíso
Ronaldo viaja com frequência para a Amazônia. Ele defende que é preciso estar lá para se compreender e absorver melhor o tamanho do patrimônio e as dimensões dos problemas políticos e ambientais que machucam a região. O biólogo esteve por dois meses, em 1997 e 1999, numa reserva extrativista no Acre, local que considera exemplar na preservação da floresta.
Guaiaó: Por que a Amazônia te encanta tanto?
Ronaldo: É outro mundo. É outra experiência. Muitos moradores de lá tem mais consciência ecológica do que eu. Você anda, anda, anda e só vê florestas, ainda que muitas áreas tenham sido impactadas pela ação do homem. O Acre possui a melhor experiência de conservação ambiental que eu conheço.
Guaiaó: Por que o Acre?
Ronaldo: Por causa do Chico Mendes. Ele e seus seguidores conseguiram mudanças políticas no estado do Acre. Proporcionalmente, é o que possui o maior número de Unidades de Conservação, mais do que o Amazonas. Essas coisas me fizeram olhar para Santos. Precisamos olhar para o mundo.
“A ciência é destrutiva”
Como qualquer sujeito na modernidade, Ronaldo depende da tecnologia para trabalhar. Em seu laboratório, microcóspios com estrutura de plástico e outros recursos de análise científica. Em sua mesa, um laptop que o permite conversar com cientistas do mundo todo. “Trabalhei com muitos que sequer conheço fisicamente.” Quando está em campo, o biólogo carrega consigo variações tecnológicas, desde a rede para a coleta de insetos até a máquina fotográfica capaz de captar imagens em alta resolução.
Mas Ronaldo não rendeu à dependência. Pelo contrário, critica com veemência o estilo de vida do homem atual. “Temos coisas demais. Estendemos nosso corpo com os carros, as casas e o que guardamos dentro delas.” Neste sentido, a ciência não colaborou para uma mentalidade auto-sustentável. Apaixonado pela matemática, Ronaldo reforça que extraímos mais do que o planeta pode nos oferecer. A conta não fecha.
Guaiaó: Você respira ciência e fala dela com paixão. Como você a enxerga?
Ronaldo: A ciência é destrutiva. Muitos cientistas se especializaram de tal maneira que não conseguem falar de outros assuntos em um nível minimamente razoável. Isso limita as pessoas. E a contribuição delas é prejudicada para o nosso futuro. Fora as influências econômicas na produção científica.
Guaiaó: Por que a ciência é destrutiva?
Ronaldo: Porque trabalha com processo analítico. Vamos desmatar, por exemplo, para ver como funciona. Pode ser que, no futuro, um biólogo esteja em um ambiente e, com um computador, consiga determinar o número de espécies. Mas a mesma tecnologia dita limpa tem origens no ambiente. De onde vieram as substâncias químicas que compõem o computador? Hoje, somos 7 bilhões de pessoas. Quantas o planeta pode suportar? Crescemos exponencialmente e todas as espécies que passaram por isso caíram a zero ou a níveis baixos para recomeçar.
Guaiaó: Por que, mesmo em nível global, não ocorre uma discussão científica integrada? Os problemas não costumam ser vistos isoladamente?
Ronaldo: Isso passa pela má educação. A própria ecologia tem problemas. Os ecologistas viam os ecossistemas como sistemas fechados. Hoje, sabemos que são abertos. Ou seja: tudo o que acontece dentro dele provoca efeitos fora. A Teoria Gaia, por exemplo, tem uma qualidade poética, mas nunca foi provada cientificamente. Se o planeta (Gaia) é um organismo vivo funcionando, você pode tirar um braço que continuará vivo. Quais partes você pode tirar para que ele continue vivo? Qual é o cérebro? Qual é o coração de Gaia?
Guaiaó: A tecnologia é uma necessidade humana, desde o início da História. Mas a tecnologia, no contexto de consumo, provoca dependência. A tecnologia é também destrutiva?
Ronaldo: Muitos acham que a tecnologia é capaz de salvar o mundo de seus problemas. Se você pegar os dez alimentos mais consumidos do mundo (arroz, batata, soja etc) e produzi-los de maneira artesanal, não dá para alimentar as 7 bilhões de pessoas. É matemática! Por outro lado, as concentrações humanas dão poder para alguém plantar longe sem sabermos como, com qual tipo de tecnologia. Os custos são cada vez maiores. E os alimentos orgânicos são cada vez mais caros e, portanto, acessíveis a um grupo pequeno de pessoas. A taxa de crescimento humano e de uso dos recursos é maior do que a tecnologia para a reposição do consumo. A produção por hectare de milho é maior do que há 30 anos. Mas, na África, as pessoas ainda morrem de fome. É um problema também político. Nós somos escravos da tecnologia, como usuários de crack e cocaína. A sociedade de hoje entrou em um parafuso de consumo e tecnologia que não consegue sair mais. Só vamos retroceder se houver uma catástrofe. Quanto mais longe o país estiver deste centro de consumo e tecnologia, mais chance terá de sobreviver.
Como qualquer sujeito na modernidade, Ronaldo depende da tecnologia para trabalhar. Em seu laboratório, microcóspios com estrutura de plástico e outros recursos de análise científica. Em sua mesa, um laptop que o permite conversar com cientistas do mundo todo. “Trabalhei com muitos que sequer conheço fisicamente.” Quando está em campo, o biólogo carrega consigo variações tecnológicas, desde a rede para a coleta de insetos até a máquina fotográfica capaz de captar imagens em alta resolução.
Mas Ronaldo não rendeu à dependência. Pelo contrário, critica com veemência o estilo de vida do homem atual. “Temos coisas demais. Estendemos nosso corpo com os carros, as casas e o que guardamos dentro delas.” Neste sentido, a ciência não colaborou para uma mentalidade auto-sustentável. Apaixonado pela matemática, Ronaldo reforça que extraímos mais do que o planeta pode nos oferecer. A conta não fecha.
Guaiaó: Você respira ciência e fala dela com paixão. Como você a enxerga?
Ronaldo: A ciência é destrutiva. Muitos cientistas se especializaram de tal maneira que não conseguem falar de outros assuntos em um nível minimamente razoável. Isso limita as pessoas. E a contribuição delas é prejudicada para o nosso futuro. Fora as influências econômicas na produção científica.
Guaiaó: Por que a ciência é destrutiva?
Ronaldo: Porque trabalha com processo analítico. Vamos desmatar, por exemplo, para ver como funciona. Pode ser que, no futuro, um biólogo esteja em um ambiente e, com um computador, consiga determinar o número de espécies. Mas a mesma tecnologia dita limpa tem origens no ambiente. De onde vieram as substâncias químicas que compõem o computador? Hoje, somos 7 bilhões de pessoas. Quantas o planeta pode suportar? Crescemos exponencialmente e todas as espécies que passaram por isso caíram a zero ou a níveis baixos para recomeçar.
Guaiaó: Por que, mesmo em nível global, não ocorre uma discussão científica integrada? Os problemas não costumam ser vistos isoladamente?
Ronaldo: Isso passa pela má educação. A própria ecologia tem problemas. Os ecologistas viam os ecossistemas como sistemas fechados. Hoje, sabemos que são abertos. Ou seja: tudo o que acontece dentro dele provoca efeitos fora. A Teoria Gaia, por exemplo, tem uma qualidade poética, mas nunca foi provada cientificamente. Se o planeta (Gaia) é um organismo vivo funcionando, você pode tirar um braço que continuará vivo. Quais partes você pode tirar para que ele continue vivo? Qual é o cérebro? Qual é o coração de Gaia?
Guaiaó: A tecnologia é uma necessidade humana, desde o início da História. Mas a tecnologia, no contexto de consumo, provoca dependência. A tecnologia é também destrutiva?
Ronaldo: Muitos acham que a tecnologia é capaz de salvar o mundo de seus problemas. Se você pegar os dez alimentos mais consumidos do mundo (arroz, batata, soja etc) e produzi-los de maneira artesanal, não dá para alimentar as 7 bilhões de pessoas. É matemática! Por outro lado, as concentrações humanas dão poder para alguém plantar longe sem sabermos como, com qual tipo de tecnologia. Os custos são cada vez maiores. E os alimentos orgânicos são cada vez mais caros e, portanto, acessíveis a um grupo pequeno de pessoas. A taxa de crescimento humano e de uso dos recursos é maior do que a tecnologia para a reposição do consumo. A produção por hectare de milho é maior do que há 30 anos. Mas, na África, as pessoas ainda morrem de fome. É um problema também político. Nós somos escravos da tecnologia, como usuários de crack e cocaína. A sociedade de hoje entrou em um parafuso de consumo e tecnologia que não consegue sair mais. Só vamos retroceder se houver uma catástrofe. Quanto mais longe o país estiver deste centro de consumo e tecnologia, mais chance terá de sobreviver.
Dois irmãos
Era uma vez dois irmãos. O mais velho nasceu em 1927. O mais novo chegou ao mundo há 20 anos. O intervalo de nascimento já seria assombroso para a história da medicina, mas fica ainda mais bizarro quando descobrimos que a mãe é a mesma.
Dona Promessa pariu seus dois filhos por inseminação artificial. O pai é desconhecido. O que Dona Promessa fez, ao longo dos anos, foi trocar de marido para se sentir rejuvenescida. A cada novo padrasto dentro de casa, nascia nos filhos a esperança de um protetor até o fim.
Ambos alimentavam o sonho de ter uma vida plena, com recursos e acompanhamento de perto para que deixassem de ser o que mais detestavam: um projeto da mãe.
Depois de uns três padrastos – o número é impreciso por conta dos amantes ocasionais -, o filho mais velho saiu de casa. Cansou-se de uma existência embrionária. Sentia-se uma criança mal amada. Sentia que – se ficasse em casa – jamais se tornaria um adulto.
Magoada, Dona Promessa o enterrou em vida. Tinha um filho caçula, mais popular entre os parentes ingênuos, todos crentes que o menino finalmente vingaria. O garoto acreditou nas profecias maternas. Jurou que jamais seria como o irmão, um projeto inacabado de família.
O menino foi coberto de mimos. Ganhou até um animal de estimação. O tucano substitua o irmão. Fingia dialogar com o bicho, que tagarelava como um papagaio. “Trabalhar 24 horas por dia, sete dias por semana.” Era a frase que o menino mais adorava ouvir do tucano, que gritava sempre que um flash se acendia.
Dona Promessa sentia um vazio. Não percebia que a ausência do filho mais velho a machucava. Convivia com a intuição de que alguém precisava fazer companhia ao caçula.
Em 2010, Dona Promessa tomou uma decisão. Ela importou um primo dos meninos, na casa dos 50 anos de idade. O problema é que o primo apresentava uma deficiência: era menor do que os demais, uma maquete de gente. Mesmo assim, Dona Promessa fez festa. Veio até um tio distante, José Serra, cortar o bolo. Afinal, o primo tinha grife, nome e sobrenome: Ponte Santos-Guarujá.
Naquele mesmo ano, uns seis meses depois, dois acontecimentos alteraram a biografia da família. O primo morreu. Dizem as más línguas que Dona Promessa o enterrou sem derramar única lágrima.
A boa notícia foi que o filho mais velho (seria o bom filho?) à casa retornou. Embora idoso, o Túnel Santos-Guarujá não passa de uma criança por vezes simpática, suficiente para alegrar o irmão, que cresceu um pouquinho este ano. Pena que ainda não consegue ficar de pé. O VLT, apelido carinhoso do pivete, sofre até hoje as consequências de uma gravidez mal planejada.
Nas últimas duas semanas, foi possível ver os dois irmãos brincando embaixo da mesa, nas reuniões de família, na casa de Dona Promessa. Até o tucano, que andava meio amuado, andou berrando com os garotos. Túnel e VLT apostam que mamãe os tratará melhor ano que vem, quando os clientes farão votos de sucesso a mais um aniversário de Dona Promessa.
Para desgosto deles, Dona Promessa jurou de pés juntos, no último encontro familiar, que estava grávida. E que Túnel, o mais velho, teria um irmão gêmeo. Outro túnel? Até o tucano duvidou. Dúvida que contaminou todos os parentes, cientes que aquela mãe nunca quis que seus filhos crescessem. Nunca quis que seus projetos virassem obras feitas.
quinta-feira, 12 de setembro de 2013
A árvore que esconde a floresta
A denúncia nasceu durante reunião do Conselho da Cidade de São Paulo, na semana passada. A voz era de Anderson Lopes Miranda, integrante do Movimento da População em Situação de Rua, da capital. Segundo ele, moradores de rua estariam sendo despejados durante a madrugada, no bairro do Jabaquara. Os responsáveis pela “exportação de gente” seriam funcionários da Prefeitura de Santos.
De acordo com Anderson Miranda, muitos moradores de rua procuraram o movimento para pedir ajuda. A denúncia foi publicada, no último dia 4, na coluna de Sônia Racy, no jornal O Estado de S.Paulo. A secretária de Assistência Social, Rosana Russo negou as acusações e disse que “não exportamos seres humanos”.
É complicado provar as denúncias, assim como é evidente que não se trata de prática inédita. Nos anos 90, a Prefeitura de São Paulo foi acusada de fazer o processo inverso. Eram famosas as kombis que largavam pessoas aos pés da Serra do Mar.
Outros casos aconteceram no Paraná. Na década passada, cidades do interior despejavam andarilhos em Curitiba. Em entrevistas, muitos moradores eram favoráveis à faxina de seres humanos. Não é preciso caminhar muito para ouvir opiniões semelhantes em Santos. Pouco se toca no assunto, pois prevalece a invisibilidade diante do desigual que dorme em papelão.
É difícil romper com uma estrutura viciada. Ações isoladas não garantem mudanças na infraestrutura. É preciso, além de espaços físicos, profissionais bem remunerados, qualificados e com condições de trabalho.
Uma das assistentes sociais, convocada recentemente por conta de concurso público, procurava em seções da própria Secretaria de Assistência Social vaga para um morador de rua. Ele frequenta o Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua, o Centro POP, inaugurado no final do primeiro semestre.
Todos os abrigos e albergues estavam lotados. O prefeito Paulo Alexandre Barbosa disse, ao jornal O Estado de S.Paulo, que a cidade dobrou para 400 o número de vagas em abrigos. Mas o município tem cerca de mil moradores nas ruas. Com noites chuvosas e frias, o déficit fica exposto, da mesma forma que as marquises são insuficientes para quem procura um prato quente de sopa.
Esta semana também começou a circular, nas universidades, o recrutamento da FIPE. O anúncio chama estudantes para trabalhar no censo de população de rua. A Prefeitura vai pagar R$ 221 mil à instituição ligada à USP. Seria uma noite de trabalho em outubro, com entrega dos dados em 180 dias. É possível contabilizar uma população, com características nômades, numa noite? Fará diferença se alcançarmos mil moradores ou 830 pessoas, segundo dados considerados defasados pelos próprios operadores sociais?
Embora no papel a administração fale numa comissão de cinco secretarias, o problema da população de rua ainda não é tratado de maneira conjunta. Na prática, é uma árvore que mascara a floresta, carente de políticas públicas, que gritam por um trabalho além do mandato de quatro anos.
Nesta semana, começou a funcionar em Santos uma unidade da Cristolândia, ligada à Igreja Batista. O grupo atua na Cracolândia, em São Paulo. No próximo mês, outra entidade – a Missão Belém – trabalhará também no atendimento aos dependentes químicos.
A Prefeitura trabalha com dados da Unifesp, que indica que 86% dos moradores de rua são dependentes de álcool e outras drogas. Sem discutir a doutrina religiosa destas entidades, é essencial o diálogo e a troca de informações para que todas as ações sejam conectadas a longo prazo. As árvores às margens da floresta agradecem.
quinta-feira, 5 de setembro de 2013
A farsa
Ainda no mapa |
A Baixada Santista tem 72 mil novos moradores. Trata-se do crescimento populacional em um ano, de acordo com o IBGE. Agora, a região possui 1 milhão 765 mil pessoas. Todas as cidades registraram aumento. Praia Grande foi o município com maior elevação: 15.577 habitantes.
Bertioga teve o maior crescimento proporcional. A população aumentou 6,7%. São mais 3.375 pessoas. Santos registrou o menor crescimento (3,2%). A maior cidade da região passou a ter 13.539 novos moradores, o que leva a população a 433.153 habitantes.
Além dos dados do IBGE, chegaram à imprensa esta semana duas pesquisas sobre metropolização. A primeira indicava que a Baixada Santista não apresenta características de região metropolitana. A segunda análise sequer a considerava como tal.
Os estudos e as informações do IBGE confirmam o que a sensibilidade política grita há anos. Em primeiro lugar, a Baixada Santista passa por transformações, sem levar em conta planejamento, sustentabilidade, mobilidade urbana ou quaisquer outras expressões que a classe política desgasta em promessas.
Dos congestionamentos à falta de emprego para os jovens, do déficit de habitação popular aos espigões de riqueza concentrada, dos problemas ambientais ao transporte público, a região fingiu não enxergar as alterações geográficas humanas. Apostou em galinhas dos ovos de ouro que sofrem mutações anuais. Turismo de negócios, pré-sal e assim por diante.
Em segundo lugar, a metropolização da Baixada Santista é uma lenda, conversa para vítimas de estelionato político. Oficialmente, com pompa e dinheiro público, a Região Metropolitana da Baixada Santista existe desde 1996. São 17 anos de cansaço só em ouvir o nome do fantasma.
Daí, nasceram o Conselho de Desenvolvimento e a Agência Metropolitana. O Conselho, na prática, reproduz a velha brincadeira da dança das cadeiras. Os prefeitos se revezam na presidência e, quando o rodízio é quebrado, fazem birras. A última foi Márcia Rosa, de Cubatão, preterida pela colega de Peruíbe, Ana Preto. Para conter o chororô cubatense, o Conselho abriu exceção e se reuniu por lá.
A Agência Metropolitana seria o instrumento de políticas públicas para a região. Você conhece alguma? Cada cidade resolve – ou empurra para o vizinho – seus problemas de saúde, educação, transporte etc.
O lixo urbano é um exemplo. Os prefeitos falaram, discutiram, articularam, negociaram e tantos outros verbos sinônimos para dar em nada. Até incinerador entrou, certa vez, na pauta. Cada um pensou em si. Santos correu para a Área Continental. São Vicente manda o lixo para Mauá. Praia Grande desativou lixão, o que gerou depósitos informais.
A Agência também adota a troca, de tempos em tempos, de seus comandantes. Muitos foram políticos com mandato e, hoje, estão fora dos holofotes. Como feudo do Governo do Estado, a AGEM acolhe antigos colaboradores. O atual é Marcelo Bueno, ex-deputado estadual.
A última reunião do Condesb, de número 166, aconteceu realmente em Cubatão, no último dia 27. O secretário estadual de Meio Ambiente, Bruno Covas, foi convidado para fazer um balanço de sua pasta.
Neste ponto, o Condesb é coerente. Ali, gastar saliva é a política de ordem. Assim, a Região Metropolitana passa a existir, não nas ruas, mas nos gabinetes dos tagarelas. E com o agravante de 72 mil cabeças a mais.
sábado, 31 de agosto de 2013
Carta aos bons médicos
Médico cubano é vaiado ao chegar no Brasil (Foto: Folhapress) |
Texto publicado originalmente no site Cinezen Cultural, em 29 de agosto de 2013.
Caros médicos,
Gostaria de fazer um apelo a vocês, ainda capazes de saltar o muro do corporativismo, da intolerância, do preconceito, da arrogância com os pacientes que precisam urgentemente de atendimento, qualquer atendimento. Não assinem embaixo na receita venenosa das lideranças de classe. Como em muitas categorias profissionais, as lideranças falam sobre um mundo irreal, discursam sobre um cenário onde a política soa como ingrediente único que afasta o humano do debate e das soluções.
O desembarque de médicos estrangeiros no Brasil despertou o que há de pior na categoria médica. Vi o corporativismo no nível da mesquinharia. Testemunhei a xenofobia a ponto de se esbarrar em conflitos ideológicos que parecem velhos fantasmas do tempo em que os esqueletos tinham patente militar e praguejavam tradição, família e propriedade.
Os representantes de vocês, bons médicos, protagonizam uma batalha política com o governo – e alimentada por parte da imprensa – que atira no lixo séptico a oportunidade de se conversar sobre saídas para a saúde pública. E de expor os irresponsáveis pelo quadro atual. Mas não. É preferível legislar em causa própria, na soberba de quem se basta dentro de um hospital. Normalmente, são estes líderes que protegem os coleguinhas que se apavoram no momento de crise, se entopem de remédios para o próximo plantão e empurram as responsabilidades e os ônus para colegas de outras profissões, que enxergam como serviçais.
O programa Mais Médicos é, obviamente, outro remédio paliativo, uma política de governo que não nos traz perspectivas de longo prazo. É fruto de um governo que vive do recuo, movendo-se conforme a maré do noticiário, do Congresso Nacional ou do STF.
Enxergo também as lideranças médicas mais interessadas em fazer xixi no poste do que em colocar na mesa o que se faz com a estrutura de saúde no país. A demarcação de território se transformou em estandarte de uma batalha no qual as vítimas somos nós, dependentes da boa vontade de um modelo que deveria funcionar por obrigação.
O paciente sem direito à plano de saúde está pouco se lixando para qual idioma fala o homem vestido de branco. Vamos parar de engolir, por favor, a conversa fiada, rasteira, surrada de quem divide o mundo entre direita e esquerda, ou entre PT e PSDB. Ambos são irmãos siameses na negligência e na má fé quando estão no poder.
Vocês, bons médicos, não podem se omitir diante de uma guerra de (des)informação, na qual prevalecem distorções estatísticas, chutes matemáticos e outros dados que atendem aos interesses de quem faz política em benefício próprio. Faltam médicos, sim! E em todos os lugares, exceto onde há concentração de renda.
Vocês sabem que a formação dos colegas cubanos, portugueses, espanhóis é sólida. Assim como tem conhecimento de que a formação do médico brasileiro é entupida de problemas como uma veia hipertensa. Para muitos estudantes de Medicina, o mundo ideal não teria pacientes. E, se existissem por qualquer eventualidade cósmica, seriam atendidos por robôs.
Os universitários fogem como criança de seringa quando ouvem falar em avaliação em final de curso. E não precisa escapar para as periferias ou para o interior para vivenciarmos barberagens cotidianas dentro de hospitais, consultórios e postos de saúde. Já vi residente diagnosticar hipertensão numa paciente em dois minutos de conversa. Isso sem medir a pressão, além de informado por ela que era portadora de lúpus e com um comunicado da reumatologista. Gênio ou charlatão?
Os médicos estrangeiros não vão tomar o lugar de vocês, bons médicos. Talvez ocupem – em um futuro distante – as vagas de profissionais vagabundos, que dormem em plantões enquanto pacientes mofam, sangram e sentem dor em bancadas frias de salas de esperas dos prontos-socorros. Os estrangeiros talvez fiquem no lugar dos profissionais irresponsáveis, que enterram o juramento de Hipócrates, a cada vez que assinam o ponto e saem à francesa, colaborando para entulhar pessoas que imploram por atendimento.
Sei – seria ingênuo pensar o contrário – que saúde pública não se faz somente com médicos. São necessários de gazes a técnicos de raio-X, de soro a enfermeiros, de esparadrapos a psicólogos, de macas e leitos a auxiliares de enfermagem. Saúde pública não se faz somente com boa vontade. Mas saúde pública também se faz com humanidade.
O que as regiões distantes do país precisam, assim como as periferias, é de humanidade. De gente que goste de gente! Até para que se possa cobrar – e insuflar os pacientes – os bandidos de gravata e mandato que costumam embolsar o dinheiro da gaze, soro e macas.
Vocês, médicos, não podem perder a oportunidade de desembaraçar o modelo de saúde atual. Vivemos um momento político favorável, capítulo que gera temor aos assaltantes burocratas. As ruas não mudam a mentalidade – inclusive porque falta de caráter caminha até o túmulo - , mas a classe política agiu em causa pública. Não importa se a seringa se aproximou da bunda. É preciso curar a doença.
A chegada dos médicos cubanos escancarou o isolamento da classe médica. Duvidem de suas lideranças. Reflitam se elas realmente agem pela coletividade ou se padecem da síndrome de pequeno poder. Vocês sabem que a relação com seus pacientes – e o bem estar deles – é o que os mantém vivos. E vocês, também.
Todos nós temos histórias com médicos. Boas e ruins. Cansei de ser atendido por especialistas em viroses. Ou escravos de exames. Ou profissionais de mãos amputadas porque nunca as vi tocar em pacientes. E todos estes sujeitos falavam português, eram supostamente bem formados, arrotavam uma elitização em suas roupas, carros do ano e viagens de férias.
Conheci, em contrapartida, médicos que se preocupam com o humano, sem o olho no relógio, sem os ouvidos na sala de espera, sem os dedos na calculadora das relações monetárias. Nunca pedi por caridade. Apenas me lembro de gente como Hélio, Arlindo, Ismar e Patrícia, pessoas que doaram o tempo justo e suficiente para compreender o que se passava na vida de alguém que se sentou à frente deles. Como o médico de um velho amigo, que telefona para ele para perguntar sobre o almoço. Afinal, seu paciente sofre de diabetes.
Bons médicos, não caiam de joelhos diante do tecnicismo. Não somos máquinas que andam e respiram, movidas a sangue, tecidos e órgãos. Somos humanos, independentemente de onde moramos e de quanto temos em nossas contas bancárias. E desejamos ser atendidos por pessoas que escolheram se dedicar às outras, falando português, espanhol, aramaico ou simplesmente caladas.
Bons médicos, não rejeitem quem quer fazer saúde pública. E cuidem de seus colegas que engolem as pílulas do corporativismo e da politicagem rasteira para vomitar intolerância e presunção. Estes, sim, estão doentes e não sabem.
quinta-feira, 29 de agosto de 2013
À espera de um milagre
Ponte Santos-Guarujá: eis o mistério da fé! |
As histórias da carochinha nascem como placebo contra a ausência de projetos concretos ou políticas públicas. Os contos de fadas são pontuais, pois podem ser trocados por outros na semana seguinte. Basta que a classe política se sinta pressionada em mostrar serviço. Ou melhor, encenar.
Infelizmente, uma parcela da imprensa contribui com a lenda ao comprar, mastigar, engolir e digerir sem dor as falácias dos contadores de histórias. A inexistência de crítica auxilia na construção da imagem da terra que sempre espera pela obra que mudará, definitivamente, seu destino. É como se muitos jornalistas aceitassem sem pensar – e assinassem embaixo – a megalomania dos governantes e seus plantadores de ficção.
Nesta semana, no mundo (ir)real, duas manchetes representaram a ressurreição de antigos cadáveres. A primeira se referia à emancipação do distrito de Vicente de Carvalho, em Guarujá. A história renasceu depois de debates dentro da Câmara Municipal, por conta de um grupo de moradores que resolveu recolher assinaturas dos eleitores.
Na prática, o que há de concreto, além de conversas de plenário? Quem são estes moradores? Vicente de Carvalho tem estrutura para ser cidade? Quanto seria a perda de Guarujá? Na hipótese de se conseguir 20 mil assinaturas de eleitores, o processo navegaria por um ano na burocracia da Assembleia Legislativa e na devolução à comunidade local.
Outra história de cavaleiros e dragões é a exploração comercial do Caminho do Mar, a antiga Estrada Velha. De tempos em tempos, o Governo do Estado renova esta promessa. Desta vez, jura ter criado uma comissão. Quem conhece política sabe o quanto uma comissão pode ser sinônima de andamento paquidérmico de um projeto.
Para sair da inércia, o Governo do Estado contaria com o suporte da Agência Metropolitana da Baixada Santista, especializada em vender a imagem de região interligada entre os nove municípios. A interligação que ocorre em reuniões com café da manhã sofisticado, dança das cadeiras entre prefeitos e muitos sorrisos. É a benção da metropolização, sem data para a vida real.
Nos últimos 20 anos, todas as cidades da região tiraram do armário monstros que prometiam o milagre do desenvolvimento econômico. Cubatão teria um Ceasa. Guarujá seria sede do aeroporto metropolitano. Praia Grande também criou sua própria versão da piada aérea. Peruíbe teria um porto à la Eike Batista. Itanhaém receberia o Parque da Xuxa, garantia de turismo além do sol e da praia.
De todas essas, a que mais se aproximou da realidade foi a Ponte Santos-Guarujá, que ganhou uma maquete em meio século. A obra em miniatura foi inaugurada pelo então candidato à presidência José Serra. Depois de eleito, Geraldo Alckmin – também diplomado no lançamento de projetos natimortos – enterrou a ideia. Talvez estivesse envergonhado, pois até a ficção e a fantasia têm limites para a crença.
quarta-feira, 21 de agosto de 2013
Ainda vivos
Seria leviano apostar que os dois homens não se conhecem. Talvez tenham se cruzado em abrigos. Ou dividido calçadas. Ou dormido em provisórias comunidades de uma noite só, embaixo de marquises.
O fato é que eles se parecem e vivenciam situações semelhantes. São parecidos nos poucos objetos, praticamente um saco de latinhas de alumínio e a roupa do corpo, mais os chinelos de dedo em número menor que os pés mereceriam. A barba e os cabelos brancos cobrem os rostos e os tornam quase iguais. A única diferença é o olhar, sempre único.
Conheci um deles na avenida Pedro Lessa, entre os canais 5 e 6. Tentava se abrigar embaixo do toldo de uma padaria, por volta da 16 horas. Frio de 13 graus. Estava molhado, fruto da chuva que se inclinava para desviar da proteção de momento.
O outro “residia” embaixo de um ponto de ônibus, na avenida Conselheiro Nébias. Assustado, ele se escondia atrás dos bancos, entre o muro de um estacionamento e o próprio ponto. Cobria-se com uma capa de plástico, que o protegia da chuva, mas parecia inútil diante o frio, desta vez na casa dos 11 graus. Encolhido como um bicho, o homem era invisível para quem tinha pressa e aguardava por transporte público.
A atual secretária de Assistência Social de Santos, Rosana Russo, me parece uma pessoa bem intencionada. Na semana retrasada, por exemplo, reuniu-se com coordenadores e assistentes sociais, além de professores e alunos da Unifesp. Ali, começou-se a pensar em como resolver uma série de problemas sociais, inclusive a questão dos moradores de rua. Mas não dá esperar seis meses, de acordo com o tempo médio de promessas de Governo.
Debater estatísticas é irrelevante diante da urgência do frio. Não precisa ser alienígena para notar como a população de rua cresceu. Emergência é fazer mágica para abrigar mil pessoas numa cidade cuja capacidade de acolhimento é de 220 vagas. E com uma Secretaria que possui o orçamento patético de R$ 40 milhões anuais, ainda que a promessa seja dobrar em 2014.
A própria secretária afirmou, no Jornal Enfoque, na Santa Cecília TV, sobre a necessidade de diálogo entre as áreas da Prefeitura. Morador de rua é também problema gravíssimo de saúde pública. Mais do que inserir enfermeiros nas equipes de operadores sociais, tornou-se essencial a criação de uma força-tarefa para salvar vidas.
E nenhuma ação será eficiente se os prefeitos não conversarem sobre a população flutuante. Quando as reuniões do Conselho de Desenvolvimento Metropolitano deixarão de ser um café da manhã colonial, onde são distribuídos sorrisos, relatórios e comissões? Quando os egos vão enxergar àqueles que perderam a autoestima faz tempo?
Cada morador de rua é um argumento vivo que desmente os dados de uma cidade que se vangloria da qualidade de vida. Cada morador de rua é a resposta clara para um município que se deitou na cama da falsa ostentação, em edifícios com fachadas que fingem riqueza.
Cada morador de rua é a evidência das estatísticas que crescem e nos esfregam na cara a desigualdade social que obriga políticos a dar, no mínimo, explicações sobre o problema. Os invisíveis, quando se amontoam em calçadas, se transformam em manchas que desenham a incompetência de um modelo que se rendeu à economia da desumanização.
O frio não tolera palavrório. O frio exige respostas emergenciais. Ou vamos esperar os números mudem, desta vez com enterros, e não mais com atendimentos em abrigos superlotados.
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