quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Ainda vivos


Seria leviano apostar que os dois homens não se conhecem. Talvez tenham se cruzado em abrigos. Ou dividido calçadas. Ou dormido em provisórias comunidades de uma noite só, embaixo de marquises. 

O fato é que eles se parecem e vivenciam situações semelhantes. São parecidos nos poucos objetos, praticamente um saco de latinhas de alumínio e a roupa do corpo, mais os chinelos de dedo em número menor que os pés mereceriam. A barba e os cabelos brancos cobrem os rostos e os tornam quase iguais. A única diferença é o olhar, sempre único.

Conheci um deles na avenida Pedro Lessa, entre os canais 5 e 6. Tentava se abrigar embaixo do toldo de uma padaria, por volta da 16 horas. Frio de 13 graus. Estava molhado, fruto da chuva que se inclinava para desviar da proteção de momento.

O outro “residia” embaixo de um ponto de ônibus, na avenida Conselheiro Nébias. Assustado, ele se escondia atrás dos bancos, entre o muro de um estacionamento e o próprio ponto. Cobria-se com uma capa de plástico, que o protegia da chuva, mas parecia inútil diante o frio, desta vez na casa dos 11 graus. Encolhido como um bicho, o homem era invisível para quem tinha pressa e aguardava por transporte público.

A atual secretária de Assistência Social de Santos, Rosana Russo, me parece uma pessoa bem intencionada. Na semana retrasada, por exemplo, reuniu-se com coordenadores e assistentes sociais, além de professores e alunos da Unifesp. Ali, começou-se a pensar em como resolver uma série de problemas sociais, inclusive a questão dos moradores de rua. Mas não dá esperar seis meses, de acordo com o tempo médio de promessas de Governo.

Debater estatísticas é irrelevante diante da urgência do frio. Não precisa ser alienígena para notar como a população de rua cresceu. Emergência é fazer mágica para abrigar mil pessoas numa cidade cuja capacidade de acolhimento é de 220 vagas. E com uma Secretaria que possui o orçamento patético de R$ 40 milhões anuais, ainda que a promessa seja dobrar em 2014.

A própria secretária afirmou, no Jornal Enfoque, na Santa Cecília TV, sobre a necessidade de diálogo entre as áreas da Prefeitura. Morador de rua é também problema gravíssimo de saúde pública. Mais do que inserir enfermeiros nas equipes de operadores sociais, tornou-se essencial a criação de uma força-tarefa para salvar vidas.

E nenhuma ação será eficiente se os prefeitos não conversarem sobre a população flutuante. Quando as reuniões do Conselho de Desenvolvimento Metropolitano deixarão de ser um café da manhã colonial, onde são distribuídos sorrisos, relatórios e comissões? Quando os egos vão enxergar àqueles que perderam a autoestima faz tempo?

Cada morador de rua é um argumento vivo que desmente os dados de uma cidade que se vangloria da qualidade de vida. Cada morador de rua é a resposta clara para um município que se deitou na cama da falsa ostentação, em edifícios com fachadas que fingem riqueza.

Cada morador de rua é a evidência das estatísticas que crescem e nos esfregam na cara a desigualdade social que obriga políticos a dar, no mínimo, explicações sobre o problema. Os invisíveis, quando se amontoam em calçadas, se transformam em manchas que desenham a incompetência de um modelo que se rendeu à economia da desumanização.

O frio não tolera palavrório. O frio exige respostas emergenciais. Ou vamos esperar os números mudem, desta vez com enterros, e não mais com atendimentos em abrigos superlotados.

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