Marcus Vinicius Batista
Caro eleitor punitivo,
Com a vida voltando ao normal e o novo presidente agindo dentro de sua normalidade, você acreditou que poderia se despir da fantasia social de domingo. Não precisaria mais ser eleitor, cumpriu sua obrigação, e era hora “de deixar o homem trabalhar”.
Você conseguiu o que desejava e é seu direito. É importante dizer, não a você, mas aos truculentos, que é direito. Só que há uma distância entre colaborar com a derrota do adversário – rejeitado por você, não por Deus! – e evitar as discussões cotidianas sobre política.
Numa eleição sem precedentes, caro amigo, política ainda será rastilho de pólvora por algum tempo. Ainda bem. Você não pregou que era fundamental acompanhamento contínuo de quem exercita o poder com mandato. Democracia é assim. Assim talvez o seja para ti.
Sei que você se enxerga como uma pessoa moderada, típica da classe média, pagadora de impostos, trabalhadora em excesso, horrorizada com tanta corrupção. Não questiono este discurso, e creio que seja uma postura, de fato. Você é meu espelho, você mora em meu microcosmo.
A diferença entre nós é o fardo que colocou no seu lombo. Agora que a raiva começa a se diluir no dia-a-dia, você me dá sinais de que o voto emocional, o voto de indignação, o fez simbolicamente violento. Estender o próprio limite, antes desconhecido, pode machucar. Isso talvez o deixe constrangido, comportamento que transparece nas entrelinhas das rodas de conversas, das discussões do intervalo de trabalho, nos elevadores e até no banheiro.
Diante desta tarefa rara, você busca escapar das conversas sobre política. Elas tocam geralmente nos atos do presidente a ser empossado, na sua equipe, no seu palavrório de campanha, nas especulações de nomes de caráter e gosto duvidosos. Você não se manifesta, abaixa a cabeça, sorri de canto de boca. Mea culpa seria necessário? Não sei, emoção e razão caminham juntas dentro de nós.
Como se considera um sujeito ponderado, avesso à desqualificação do outro, equilibrado nas opiniões e nos atos, você evita o argumento falho, mas real, que justifica seu voto. Por que falar do perdedor? Um mérito no pós-jogo. Ele é passado no Executivo federal; por sinal, há dois anos, embora suas heranças povoassem seus pensamentos por semanas até a decisão de clicar outro número na urna eletrônica.
Quem sabe o silêncio calculado mascare a dificuldade em encontrar argumentos consistentes no novo? Você pensou nisso antes? Defender sua escolha, sem cair na tentação de atacar o outro?
Lembre-se: a escolha foi seu direito. Mas assinou um papel pelas razões erradas? Não jogue nas costas do tempo, não o utilize como solução do destino. O tempo é volúvel por natureza, perceptível de forma particular por cada um de nós.
Sua incerteza é o preço do voto útil, do voto que guilhotina o réu nosso de cada eleição. Assim, seu silêncio é justificável. Na dúvida entre a sanidade e a confissão de obsessão, melhor ficar em pose monástica, com sorriso de Dalai Lama.
Você votou também pela dúvida. E se apoia nela quando se encoraja em participar da conversa. O benefício da dúvida para o novo presidente. Você se mostra um sujeito otimista, mas que legisla em causa própria, quase um Poliana.
“Vamos esperar”, você diz.
“Vamos torcer”, você reforça.
“Ele não vai fazer tudo o que falou”, você teme.
“Deus vai nos ajudar”, você apela, sem reconhecer que transfere responsabilidade.
Certamente, o Altíssimo tenha ocupações demais para nos informar, outra vez, que não nasceu no Brasil. Qualquer argumento morre de inanição depois de cinco séculos de violência.
Você caiu em si. Você é diferente daqueles que acompanharam Bolsonaro desde o início da campanha. Estes eleitores não são da mesma crença que você. Eles têm fé no homem. Compartilham de seus valores, muitos até se expõem, inclusive de forma violenta, em nome Dele. São convertidos, parte do processo.
Você votou por descrença e agora, nos olhares, na fala um tom abaixo do normal, na saída à francesa da sala, indica que a racionalidade faz com que seu medo mude de endereço. Você tem medo do que fez? O liquidificador de sentimentos é tão previsível nesta altura quanto foi seu voto. Só que a raiva, ensina a cultura popular, é o veneno que tomamos enquanto desejamos a “desgraça” do outro.
Como Deus virou água na boca dos políticos, só te resta reconhecer os pecados, caso os julgue deste modo. Nunca vou apontar o dedo para ti. O “te avisei” será seu, se houver a dor única do arrependimento.
Compreendo seu sofrimento, que se parece com o meu, ao ver a política se vestir de guerra, com suas propagandas, derrubando soldados feito pássaros pelas mãos de um menino inconsequente e ressentido, armado com uma espingarda de chumbinho.
A má notícia é que ele não governará para você. Ele deveria governar para todos, mas os primeiros passos indicam que o caminho da seletividade está definido. Não silencie. Dialogue. Ouça, acima de tudo. Proponha. Acompanhe de perto.
Estes são os primeiros degraus para quem fechou os olhos com raiva e agora percebeu que talvez tenha falado demais. Ou apertado um botão vermelho, o da emergência, não o do partido-gatilho de obsessões eleitorais.