segunda-feira, 5 de maio de 2014

Entre bananas e macacos


A história de racismo em torno da refeição feita pelo jogador Daniel Alves nos indica como brasileiros são hipócritas quando confrontados com o próprio espelho. Casos de discriminação racial no futebol são muito mais comuns do que costumam pregar convencionais fotos em redes sociais.

O racismo está impregnado na biografia do futebol nacional. Dos negros proibidos de vestir as camisas de vários clubes cariocas até o clube de Santos que barrou a entrada de Pelé quando era desconhecido. De juízes humilhados no Rio Grande do Sul a atletas xingados por torcidas e jogadores adversários em torneios continentais.

Bananas não são armamentos novos. Essas bombas de efeito moral foram utilizadas contra brasileiros na Polônia e na Rússia. Tiros simbólicos de intolerância contra desconhecidos e contra estrelas como Roberto Carlos. A reação de Daniel Alves, espontânea, irônica e necessária, recolocou o assunto em questão. Mas ao preço de uma moralidade embananada?

Neymar provou mais uma vez ter o perfil do jogador atual. Mimado, cercado de bajuladores, vendedor de quinquilharias, covarde em falar o que pensa. Mas, desta vez, a orientação ultrapassou a fronteira da estupidez. Racismo é uma cicatriz cultural e histórica para ser tratada como campanha de marketing. 


Como um jogador da importância de Neymar aceita transformar uma violência cotidiana – vista em todo o planeta – em foto para vender a si mesmo? Nada surpreendente para quem choraminga diante da CNN quando critica a diretoria do Santos, em quem aplicou – com cumplicidade ou não – um chapéu financeiro, fora a história fiscal nebulosa.

Por que resolvemos afirmar só agora nossa macaquice? Por que sempre relegamos ao pé de página os episódios quase diários de racismo? O cinismo de mostrar bananas mostra o quanto adoramos comê-las de sobremesa, após engolir sapos como prato principal.

Não somos todos macacos. A campanha, nascida da mediocridade publicitária, expõe o nível de ignorância em torno do racismo no país. Salvo os inocentes, a turma que adora se dizer primata é a mesma que renega práticas racistas. A discriminação sempre pertence aos outros.

A ignorância também resume a violência numa campanha rasteira de tirar fotos de adesão ao vácuo de informação. Vendemos camisetas, cultivamos amigos de rede social, vomitamos indignação até a página 2. Mas não reconhecemos os cadáveres de desigualdade social. Enquanto exalamos rebeldia de shopping, não enxergamos o quanto chamar alguém de macaco significa estigmatizar negros como animais.



A premissa é falsa. Não somos todos iguais. Somos uma nação culturalmente complexa, de múltiplas diferenças. Seríamos mais civilizados e maduros se entendêssemos e respeitássemos as diferenças do que amenizar culpas com o falso discurso da igualdade. E ainda por cima fingirmos cidadania sendo enganados como consumidores bananas.

É triste testemunhar que a crueldade humana, como jogar bananas em uma pessoa por conta da cor da pele e da origem, seja substituída pelo tom carnavalesco de esvaziar – em imagens padronizadas – uma chaga social que contamina o Brasil desde o nascimento colonial.

Somos realmente todos macacos, numa sociedade dividida em gorilas, micos, chimpanzés e orangotangos? De fato, cedo ou tarde, todos comem bananas.

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Em tempo: o racismo virou rotina de tal maneira que dois novos casos brotaram no noticiário esta semana. O primeiro episódio envolveu Donald Sterling, proprietário do time de basquete norte-americano Los Angeles Clippers. O dirigente foi banido da NBA depois de ter feitos comentários racistas com a namorada V. Stiviano.


Donald Sterling 
Uma gravação explica tudo: “me incomoda muito você querer aparecer ao lado de pessoas negras. Por que você faz isso? Você pode dormir com negros, pode trazê-los, pode fazer o que quiser. A única coisa que peço a você é que não divulgue isso. E não os traga aos meus jogos”, declarou Sterling.

Além de banido, ele terá que pagar multa de US$ 2,5 milhões. Se o futebol também fosse assim ...

Dos Estados Unidos para o litoral de São Paulo. Em Bertioga, a vereadora Valéria Bento (PMDB) acusa um servidor público de tê-la chamado de macaca. O acusado é chefe de departamento na Secretaria de Desenvolvimento Social, Trabalho e Renda.

A vereadora prestou queixa em delegacia. Segundo a parlamentar, o servidor teria dito: “o serviço está uma bagunça, e a culpa é da Valéria, aquela macacona.” A vereadora pediu também a abertura de inquérito administrativo contra o servidor.

O acusado se defendeu em redes sociais. A alegação é de que ele também seria negro. “(...) todo mundo sabe que amo os animais e jamais compararia um macaco com essa vereadora. Animal não merece ser comparado assim. (...) Eu e minha família já sofremos muito com este tipo de preconceito por sermos negros, mas nunca deixamos nos abalar.”

Pela defesa, um vereador seria pior do que um macaco? Outro ponto: houve protestos na Câmara Municipal, com presença das bananas, a fruta-rei da semana.

sexta-feira, 2 de maio de 2014

A tortura nunca acabou


A morte do tenente-coronel da reserva Paulo Malhães reacendeu o medo em torno dos cadáveres – reais ou simbólicos - que cercam a ditadura militar. O tenente-coronel foi encontrado morto em casa, na zona rural de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense.

Malhães foi morto por asfixia. Três homens invadiram a residência dele na sexta-feira, dia 25 de abril. A mulher foi amarrada, enquanto o tenente-coronel era executado. Todas as armas da casa foram roubadas. Os primeiros dados da investigação falam em queima de arquivo.

O tenente-coronel deu um depoimento forte há cerca de um mês na Comissão da Verdade. Paulo Malhães foi agente do Centro de Informações do Exército na ditadura militar. No depoimento, ele reconheceu tortura, mortes e ocultação de cadáveres durante o período. Uma frase dele: “Naquela época, não existia DNA. Quando você vai se desfazer de um corpo, quais partes podem determinar qual é a pessoa? Arcada dentária e digitais. Quebrava os dentes. As mãos cortava daqui para cima (apontando para as falanges)”.

A morte do tenente-coronel levanta suspeita de que ele poderia entregar mais gente da turma verde-oliva. No entanto, o que me chama a atenção é que torturas e mortes por parte de agentes do Estado são vistas como episódios de uma história cada vez mais distante.

A tortura nunca acabou, mesmo com a passagem para a democracia. Apenas mudou a cor do uniforme e a função dos torturadores. E a conivência de uma parte da sociedade permanece, seja pelo silêncio, seja pela construção de argumentos simplórios e individualistas.

A frase feita “bandido bom é bandido morto” é um dos primeiros argumentos que surgem quando se debate tortura no Brasil. Além de embutir a ideia de que todas as vítimas de tortura são culpadas, a proposta vem acompanhada de um segundo elemento frágil. “Quero ver se for com você ou com algum parente seu?”

A recíproca poderia ser verdadeira. E se fosse você o confundido pela polícia ou um parente seu fosse torturado? O que diria? Na verdade, tortura e mortes devem ser responsabilizadas, e não enaltecidas como efeitos colaterais ou como inerentes ao processo de segurança pública. A solução passa, necessariamente, pelo pensamento coletivo e reforço das instituições, que devem expurgar suas laranjas podres, e não promovê-las.

Torturas e mortes somente foram transferidas dos quartéis para viaturas e delegacias. A prática aparece diariamente no noticiário, que empilha casos de pessoas conhecidas ou de casos eleitos. São histórias que, dependendo dos elementos dramatúrgicos, podem gerar surtos de indignação e bodes expiatórios para responder a processos administrativos. Os remédios são pontuais para causas sistêmicas.

Há mais de 20 anos, o jornalista Caco Barcellos denunciou no livro “Rota 66”, o comportamento de policiais que matam em quantidade que deixaram corados de vergonha assassinos em série endeusados pela cultura pop norte-americana. Nós também temos nossos deuses. Muitos destes policiais mantém mandatos políticos até hoje, com o mesmo discurso de “bandido bom é bandido morto.”

O livro, que levou Barcellos a morar na Europa por dois anos por conta das ameaças de morte, indicava que boa parte das vítimas da Rota, em São Paulo, eram negros, com carteira assinada, sem antecedentes criminais e moradores de periferia. Foram mortos com tiros nas costas ou na cabeça; neste caso, o tiro veio de cima para baixo, o que dava contornos de execução.

Os autos de resistência – nome burocrático para execuções – representam um dos sintomas da descrença no sistema de segurança. É uma doença paradoxal. Ao mesmo tempo em que se defende a limpeza social de “bandidos”, a população não confia nos policiais – até porque sabe do que são capazes com a aprovação dela – e sustenta a justiça com as próprias mãos. A “moda” de se amarrar pessoas em postes – culpados ou não – é reflexo cristalino disso.

Mesmo que se fechem as cortinas ou que as luzes sejam apagadas, os esqueletos ainda permanecem sentados na mesa de jantar. A história não virou poeira. Ela está ao lado, viva nas mesmas práticas de uma cultura que mente quando diz ser pacifista.

terça-feira, 22 de abril de 2014

O lixo e os cachorros


Moradores da rua Piauí, no Campo Grande, em Santos, reduziram o risco de pisar em surpresas na calçada. Em um dos postes, instalaram um aro de metal que prende diversos sacos plásticos. Assim, nenhum dono de cachorro pode alegar amnésia e deixar de limpar as fezes de seu animal.

A quatro quilômetros dali, na rua Ricardo Pinto, na Aparecida, um morador colocou uma placa numa árvore. A placa pede que os donos de cachorros se lembrem que são civilizados e não emporcalhem a calçada. 

Suporte instalado no bairro da Aparecida, em Santos

As duas ações se juntam a outras pelas ruas de Santos e simbolizam como comportamentos podem ser alterados sem a necessidade ou “medo” de uma legislação, e sim por pressão, organização social e comportamento cidadão.

No caso, há uma lei que aborda o recolhimento de fezes por parte dos donos de animais de estimação. Mas ninguém nunca foi multado. A lei existe desde 1995 e, obviamente, a Prefeitura não destinou fiscais para multar os porcos (não me refiro aos cachorros, coitados). Até porque não tem pessoal para atender a todas as demandas jurídicas que brotam no plenário do Poder Legislativo.

Uma segunda lei sobre o assunto foi aprovada, em 2001, e revogou a multa como obrigação legal. Ou seja: para que uma lei que não prevê punição aos infratores?

Nesta semana, Santos passou por uma situação semelhante. O prefeito Paulo Alexandre Barbosa sancionou a lei que prevê multa para quem joga lixo na rua. A multa pode chegar a R$ 1 mil, dependendo da quantidade de lixo despejada de forma irregular.

A lei, de autoria do vereador Kenny Mendes (DEM), altera outra lei, de 1968, que tratava do mesmo assunto. Agora, a infração envolve de bitucas de cigarro, cascas de frutas, latas, garrafas até quantidades maiores e objetos como sofás, armários e outros móveis. O prazo para regulamentação é de 60 dias. Só em junho a administração municipal vai definir a fiscalização.

Por melhores que sejam as intenções, os dois episódios acima indicam como funciona a cultura das leis no Brasil. Tanto políticos como a sociedade em geral costumam acreditar que os problemas sociais devem ser resolvidos na base da legislação, vinda de cima para baixo, sem discussões públicas.



Temos leis demais. Muitas são ultrapassadas, em outro contexto histórico. O Código de Posturas de Santos, por exemplo, é de 1968. Muitos dos artigos parecem peças de humor, tamanha a distância da realidade atual.

O excesso de leis também significa a superficialidade no tratamento de questões públicas. É mais cômodo – e gera dividendos políticos – entupir o plenário de leis do que cobrar políticas públicas ou exigir melhorias nos serviços já implantados. Aprova-se a lei e a deixa morrer no esquecimento.

Em muitas situações, parlamentares ainda jogam para a torcida e para a imprensa, diante de assuntos polêmicos. É comum vereadores apresentarem projetos de lei com a consciência de que serão vetados ou modificados na Comissão de Justiça, que analisa a viabilidade jurídica da proposta.

Muitos projetos, mesmo diante das negativas, chegam ao plenário e são votados, o que obriga um malabarismo do Poder Executivo para que a lei seja assinada. Um caso recente foi a lei que proíbe o uso de celulares em salas de aula da rede de ensino de Santos. Alguém foi punido? Houve fiscalização? Claro que não, até porque o problema envolve bom senso e educação dos envolvidos.

A consequência cultural da paranoia jurídica é a expressão “leis que pegam e leis que não pegam”. Na prática, são palavras que provam como sabotamos aquilo que defendemos. Somos cúmplices, em certo sentido, com a impunidade. Lei, deste modo, é boa para os outros. Para nós, sempre existem brechas, liminares, além da própria conivência e incompetência dos poderes.

Parlamentares se aproveitam da cultura das leis também para uso político. Um exemplo é a Câmara do Guarujá, que aprovou lei – e derrubou veto da prefeita Maria Antonieta – que obriga funcionários de primeiro escalão a morar na cidade. Geografia virou competência profissional. O objetivo era atingir um secretário, que pediu demissão. A história virou batalha judicial.

A Câmara de Santos, ainda que alguns vereadores sejam obcecados por legislação, deu um passo positivo. A casa abriu edital de licitação para catalogar a legislação existente no Município. Estima-se que existam 8500 leis diferentes. A promessa é que, depois do levantamento, ocorra uma análise para eliminar leis conflitantes e obsoletas.

Legislar deveria ser um ato horizontal. Os moradores do Campo Grande e da Aparecida se juntaram – sem se conhecer - aos moradores de um prédio na esquina das ruas Vergueiro Steidel e Castro Alves, no Embaré, numa lição cidadã.

Em cinco árvores, foram amarrados pequenos cestos plásticos de lixo. A sujeira ali acabou. Ações valem muito mais do que letra morta.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Os machos vestem saias

Sempre desconfiei da pesquisa do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) sobre Tolerância social à violência contra as mulheres. Mas, embora sofra críticas por conta da metodologia, a pesquisa nunca me pareceu distante da realidade. Também não pensei que os equívocos na leitura dos dados merecessem tamanha ânsia de desqualificação do trabalho.

As polêmicas dos tempos atuais, na verdade, servem para atrair minha atenção aos detalhes. Os pormenores nos apontam em quais armários moram nossos esqueletos. O que me interessa é o recheio, e não a cereja do bolo.

Na pesquisa, o recheio azedou. O trabalho do Ipea não nos mostra somente o óbvio, que a sociedade brasileira é machista, mas – essencialmente – nos indica a dimensão do machismo no imaginário das mulheres. Justamente elas, que deveriam se proteger da violência simbólica do macho.

As mulheres são dois terços dos 3810 entrevistados. É desproporcional em relação à população brasileira, um erro técnico. Só que os resultados apavoraram quem reflete sobre as desigualdades e os preconceitos de gênero neste país.

As mulheres, em sua maioria, ainda sonham com a família de publicidade de margarina. 87,8% concordam (total ou parcialmente) com a afirmação: “toda mulher sonha em se casar.” Seis em cada dez acreditam que “uma mulher só se sente realizada quando tem filhos”. Neste pacote, entra figura do macho alfa, o macho provedor. Para 63,8% dos entrevistados, “os homens devem ser a cabeça do lar.”

Quando a pesquisa passeia pela sexualidade, fica evidente a presença da relação Casa Grande e Senzala. 55% concordam que “tem mulher que é para casar, tem mulher que é para a cama.” Entre a sinhazinha e a escrava dos tempos modernos, muitas mulheres – conheço várias – se sentiriam ofendidas, inclusive quando rejeitadas porque eram “para casar” e desejavam apenas um relacionamento rápido. 


Neste sentido, percebe-se também o caminho da submissão. Um em cada quatro entrevistados aceita que “a mulher casada deve satisfazer o marido na cama, mesmo quando não tenha vontade.” Isso me lembra o coronel Jesuino, personagem de José Wilker na novela Gabriela, que dizia para a esposa: “deite que vou lhe usar”. 

É claro que há ainda a violência sexual. É o ângulo que chamou a atenção da mídia e onde estava localizado o maior erro de avaliação. Mas o escorregão não apaga as manchas sociais. Uma em cada quatro pessoas concorda que “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas.”

Na Baixada Santista, uma mulher é estuprada por dia. Alguém, com o mínimo de senso de humanidade, acredita na hipótese de que as vítimas desejaram ser violentadas? Três em cada quatro agressores são familiares ou pessoas próximas.

Quem sabe poderíamos aprender com um exemplo extremo? Na Arábia Saudita, nove em cada dez homens acreditam que maquiagem significa que a mulher deseja ser violentada.

Com erro ou não, a pesquisa nos dá o recado: Mulheres, libertai-vos. É melancólico perceber que muitas das vítimas da submissão e da opressão masculina são exatamente aquelas que assinam embaixo na cartilha do macho.

terça-feira, 8 de abril de 2014

Liberdade para quem?


Nomes de políticos cassados em placa na Câmara
Municipal de Santos (Foto: G1 Santos)

A Câmara de Santos assinou, em 1º de abril, um capítulo histórico. O Poder Legislativo, em parceira com a Comissão da Verdade do município, conduziu a devolução dos mandatos de 16 ex-vereadores e dos ex-prefeitos José Gomes, cassado em 1964, e Esmeraldo Tarquínio, cassado e que não pôde assumir o cargo em 1966. Dos 18 políticos, somente o ex-vereador Luiz Rodrigues Corvo, hoje advogado em São Paulo, está vivo e discursou em plenário.

O ato simbólico serve como mais uma lição de que a ditadura militar de 21 anos – e não uma década, como alguns intelectuais desejam amenizar – deve ser lembrada. Este período histórico merece e exige reflexão, mas jamais comemoração como paradigma de cidadania.

O ato da Câmara de Santos não foi isolado. Em Natal, no Rio Grande do Norte, o Legislativo local restituiu os mandatos do ex-prefeito Djalma Maranhão e do vice Luis Gonzaga dos Santos, também cassados durante o regime militar. 



O processo de reparação teve início em 2012, quando a Câmara dos Deputados, em Brasília, realizou uma cerimônia de devolução dos mandatos de 173 parlamentares. Entre eles, os ex-governadores Leonel Brizola e Mário Covas, além de Plinio de Arruda Sampaio, candidato à presidente pelo PSOL em 2010, e do advogado Gastone Righi, liderança política de Santos.

Em agosto de 2013, 14 parlamentares comunistas também tiveram seus mandatos restituídos na Câmara Federal. Na lista, o escritor Jorge Amado e Carlos Mariguela. Todos haviam sido cassados em 1948, durante o governo de Eurico Gaspar Dutra.

A devolução dos mandatos não precisa produzir efeito prático, e sim manter acesa a necessidade de se desnudar o que a censura insistiu em esconder por duas décadas. Pensar o regime militar é um ato de educação política, tão frágil neste país quanto à relevância do debate público, que muitas vezes resulta em exercícios de intolerância, tão comuns em tempos de velocidade, construção e difusão de informações.

A Universidade Católica de Santos, por exemplo, abriu as portas para relembrar e gerar a troca de experiências entre aqueles que viveram a ditadura ou a estudaram a fundo. Com auditórios lotados, houve três exibições do documentário “O dia que durou 21 anos”, dirigido por Camilo Tavares e lançado em 2013. Camilo é filho do jornalista Flavio Tavares, um dos 15 presos políticos banidos do país por envolvimento no sequestro do embaixador dos Estados Unidos, Charles Elbrick.

Um exemplo negativo foi a manifestação dentro de uma sala de aula, na Universidade de São Paulo, quando um professor foi impedido de defender a ditadura militar. Alunos invadiram a sala em, encapuzados, impediram o professor de ter a palavra.

É claro que defender a ditadura militar, diante de tanta informação sobre o período, soa como uma opinião deslocada, desinformada e – por que não? – patética. Mas o processo democrático só sobrevive com a pluralidade de pontos de vista e a liberdade de simplesmente ser indiferente a eles. E ver um sujeito em cima do banquinho na praça, pregando ao vento, é mais melancólico. É a voz que grita em silêncio, que nasce morta pelo ridículo. 




Calar alguém na marra porque ele pensa diferente, ainda que defenda um modelo indefensável, significa se tornar irmão gêmeo dele. Calar os diferentes é o que a ditadura militar fez por 21 anos. 

Dar a palavra aos defensores do regime é permitir que eles tenham a chance, num clima de liberdade, de ouvir seus erros e suas bravatas ao som das próprias vozes. É assim, das Câmaras às salas de aula, que talvez se aprenda o valor da liberdade e da democracia.

domingo, 30 de março de 2014

31 de março




Os 50 anos do Golpe de 1964, a serem lembrados em 31 de março, rasgaram cicatrizes e fizeram com que antigas feridas voltassem a sangrar. Junto com o sangue coagulado e encoberto por ataduras políticas, renasceram distorções em torno da tagarelice eleitoral e de valores tão obsoletos quanto os militares no poder.

Com a proximidade da data, é preciso tirar a poeira de certos aspectos que não devem ser vistos como notas de rodapé, mas como pontos importantes de um período desagradável da História brasileira.

Os 50 anos do golpe devem ser lembrados, e não comemorados, como grita uma minoria da classe política, representada em palanques – eventualmente – por bravatas de polemistas com mandato. Comemorar significa celebrar, enaltecer, valorizar. A lembrança nos aponta outra direção, o caminho do aprendizado, que visa evitar a repetição de erros, sejam políticos, econômicos ou sociais.

A segunda correção envolve a nomenclatura. O que houve em 31 de março de 1964 foi um golpe, e não uma revolução. As palavras carregam peso histórico, e este lastro não deve passar por maquiagens. Os militares tomaram o poder à força, rasgando as regras democráticas diante de uma paranoia artificial de que o Brasil se tornaria uma nação comunista.

Futurologia nunca foi um argumento consistente, ainda mais quando impregnada de propaganda política. O Brasil era um jogador dentro de uma partida com dois times em guerra fria.

Em 1964, não aconteceu uma revolução. O sistema político se manteve em essência. O modelo econômico sofreu poucas alterações. Revolução implica em ruptura radical. Os peões trocaram de lugar, mas o tabuleiro permaneceu o mesmo.

A aproximação dos 50 anos do Golpe teria ressuscitado uma direita organizada, sedenta pela volta dos militares ao poder. Comentários de balcão de padaria e blefes de ativistas de Internet não significam que as ruas ficarão lotadas de manifestantes ávidos por mudanças políticas. Basta o fracasso da marcha da família publicidade de margarina.

A direita nunca morreu. Ela, de fato, encolheu e entendeu que, até ontem, inclusive por conta da própria ditadura, pegava mal se assumir como direitista. Na prática, tenho dúvidas se existem, no Brasil atual, direita e esquerda, salvo as exceções extremas e nada representativas.

A política se ajoelhou diante da economia. Partidos de origens distintas incineraram o próprio passado para beber do poder. Políticos pulam de um lado a outro do muro como se fossem crianças que brincam de polícia e ladrão, ora invertendo papéis. Aliás, o muro caiu no século passado e levou com ele as diferenças ideológicas.

Hoje, todos navegam no centro, agarrados como náufragos nas alianças eleitorais. Vermelhos, verdes, azuis, todos os partidos vestem uma só cor, numa única direção. E assassinaram os velhos conceitos de direita e esquerda, irmãs com esqueletos ditatoriais nos armários.

Engana-se quem pensa que o país atravessa uma onda de neoconservadorismo. Na verdade, é o velho conservadorismo de sempre. Só que, desta vez, encontrou um banquinho na praça, dentro de redes sociais, para esbravejar, bater o pé e fazer birra.

Por ironia, a democracia é o que dá liberdade para as manifestações de todas as ordens. Até para os protestos que pedem ações autoritárias. Até para quem nunca entendeu o que é uma ditadura. São os analfabetos políticos, incapazes de traduzir as letras da História. Ainda bem que, depois de 31 de março, vem 1º de abril.

sexta-feira, 28 de março de 2014

Um pedaço de museu


Com a aproximação da Copa do Mundo, o patriotismo brasileiro, centrado nos esportes e – eventualmente – na cultura, se sobressai como regra, o que implica na necessidade do culto aos clichês. Expressões como “melhor futebol do mundo”, “pátria de chuteiras”, “time de guerreiros”, “200 milhões de corações na ponta da chuteira” viram mantras para parte da mídia, interessada – é claro – nos dividendos comerciais da competição.

De carona, a classe política se aproveita da conjuntura favorável para torrar dinheiro em propaganda e adaptar o discurso do “ame-o ou deixe-o”. Em Santos, descontando as expectativas de casa cheia – e de lucros exorbitantes - por conta das seleções do México e da Costa Rica, a promessa de gol de placa é o Museu Pelé. O lugar virou o camisa 10 – com o perdão do trocadilho - de mais uma onda de progresso vestido de especulação.

O Museu Pelé é, de fato, um símbolo desta época de Copa do Mundo. Simboliza como o comportamento da classe política se repete em blefes, independentemente de qual seleção partidária os jogadores defendem por baixo dos ternos e das gravatas.

A estratégia de jogo é sempre sujeita a adaptações, ainda que as mudanças sejam de improviso. A palavra planejamento, por exemplo, não aparece no vocabulário. As obras do Museu Pelé estão atrasadas dois anos. O custo dobrou: de R$ 20 milhões para R$ 40 milhões. O anúncio aconteceu em 2007, mesmo ano em que o Brasil foi escolhido como sede.

Além disso, o museu não será inaugurado completo. Quando assumiu a Prefeitura, Paulo Alexandre Barbosa disse que a obra estaria pronta antes da Copa. O discurso foi reforçado até janeiro deste ano, minimizando as dúvidas colocadas pelos jornalistas.

Na semana passada, o secretário municipal de Turismo, Luiz Dias Guimarães, afirmou que o Museu Pelé não abriria as portas com todos os setores concluídos. Em outras palavras, o museu será inaugurado por volta de 9 de junho, com maquiagem definitiva ou de oportunidade. Até agora, a Prefeitura não bateu o martelo sobre quando cortará a fita.

A questão não é somente política. É matemática. Quando faltavam 104 dias para a abertura da Copa, o Diário Oficial de Santos publicou o cronograma de serviços do museu. A Eletrowal teria 120 dias para implantar a entrada de energia. A Viabiliza Engenharia e Construções, 100 dias para instalar pisos, tampos e bancadas de granito. Já a P.D da Silva Rocha, 90 dias para instalar os pisos de mármore. E a HJI Instalações, também 90 dias para colocar o forro metálico. Diante do histórico de atrasos, basta fazer as contas.

O acervo, que precisa ser organizado conforme normas museológicas, engrossa a lista de dificuldades. Fora a organização das peças, viabilizar o museu é um processo que implica também na contratação e capacitação de pessoas, envolvendo toda a hierarquia, mais projetos paralelos de fundo educacional.

Nos intervalos da obra, as promessas em campo. O secretário estadual de Turismo, Claudio Valverde, prevê que o Museu será o ponto mais visitado do Estado de São Paulo, superando o Zoológico da Capital. É como chutar quem será o campeão da Copa, em 13 de julho.

O Museu Pelé vai entrar no ritmo carnavalesco que contamina a Copa do Mundo. A tática é previsível. Festa, sorrisos, juras de amor à pátria, políticos em torno do rei (se ele aparecer!). Pagaremos a conta após o apito final, por um espaço que precisará de reparos tão logo nasça para o público. Um golaço, só que contra.