quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Mulheres raras


 Marcus Vinicius Batista


Raras são as mulheres que nunca conviveram com o fantasma do abuso sexual. Que não conhecem um relato, uma história, um fragmento de dor de alguém, próximo ou distante, vítima da violência masculina no Brasil. Isso quando não protagonizam o episódio e, daí em diante, entram numa alameda escura sem possibilidade de escolha ou retorno.

Raras mulheres são aquelas que nunca sentiram uma mão boba no ônibus ou metrô lotado. Ou o homem sentado ao lado, que finge dormir ou explicita seu ato num sorriso maroto, cujo cotovelo escapa e esbarra em seus seios. A mulher que testemunha o corredor diminuir de tamanho, aperto que “autoriza” o sujeito se encostar nela e espremê-la enquanto ele olha para o mundo lá fora numa simulação de movimento que entende como natural.

Raras mulheres são aquelas que nunca foram reprovadas por olhares – e, às vezes, por palavras de moral e bons costumes – por conta de suas roupas, sua maquiagem, seu jeito de andar, falar ou se sentar, como se dessem salvo-conduto para que os homens agissem de acordo com suas “necessidades”.

Raras são as mulheres que nunca foram classificadas entre duas categorias: a mulher para casar e a mulher para sacanagem. A sinhazinha e a mucama. A reprodução moderna da Casa Grande e da Senzala que permite ao homem ter dois comportamentos, um para o cidadão de bem que adestra e exibe a mulher, outro para o cidadão de bem que precisa “libertar suas energias”.

Raras são as mulheres que nunca se sentiram culpadas ou envergonhadas por serem vítimas de violência. A palavra dura, o tapa, o controle financeiro, a humilhação pública diante de amigos e parentes, a ausência de escolha profissional, o sexo quando o outro deseja. “Não foi nada”, recomenda-se justificar. “Eu mereci”, sugere-se repetir em público. “Ele trabalha tanto”. “Ele está com problemas”, segue o receituário.

Raras são as mulheres que, violentadas, conseguem denunciar a selvageria dos “homens que não sabem o que fazem”. Que conseguem enfrentar a desconfiança de gente do sistema de segurança, do sistema de saúde, do Poder Judiciário, de muitas religiões.

Raras são as mulheres que foram ouvidas quando disseram não, não quero. É preciso ser chata, desenvolver melhor a comunicação para lidar com a surdez alheia, com a cegueira seletiva do outro, que – inclusive neste caso – considera a persistência uma qualidade.

Raras são as mulheres que podem beber em público sem serem observadas como vadias. Homem enche a lata. Mulher dá vexame. Homem é o engraçadão da turma. Mulher está seduzindo. Se estiver de saia curta, batom vermelho e decote, ela está pronta para o abate, como muitos gostam de pronunciar. Ela está querendo, ela está pedindo, falas que envolvem os casados, solteiros, tiozões do churrasco, bêbados ou sóbrios.

Raras são as mulheres que aparecem nas estatísticas de violência sexual, crime no qual se estima que somente 10% dos casos são notificados. E raras aquelas que vão testemunhar a condenação do agressor, com quem conviveram em família, em casa, na vizinhança, no trabalho.

Raras são as mulheres que nunca ouviram seu desempenho profissional ser associado à capacidade de seduzir o chefe, o colega de trabalho. Ou, por outro lado, que nunca ouviram uma piada feito só brincadeira, uma palavra obscena fantasiada de estava só comentando, que é isso, você está exagerando. O teste do sofá, uma instituição brasileira que beira ser item curricular.

O Brasil, ao contrário, não é um país raro. É um lugar comum, na sua perversidade particular de lidar com mulheres. O país da minha filha, nunca. Será? Mas a do outro, quem sabe? 

2 comentários:

  1. Vivemos dias piores. A cada dia precisamos nos mobilizar e aos demais para reagir às barbaridades cometidas contra as mulheres, contra as pessoas negras, contra os mais pobres. Estamos cansadas, mas não desistiremos de lutar por respeito e condições dignas de vida. Queremos nos manter vivas e precisamos de mais pessoas - mulheres e homens nessa luta!

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  2. Comportamento secular, explicitado como normal, arraigado, porém até pouco tempo, porque ser notícia se é aceito por todos?!!!! Graças esse tal de “feminismo” que incomoda tanto, as mulheres começam a tomar consciência de que não é normal nada disso, é crime, e como tal, precisa ser exposto , num grito coletivo, sem parar, até que todas nós, mulheres, consigamos nos proteger umas às outras!!!

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