sexta-feira, 2 de maio de 2014

A tortura nunca acabou


A morte do tenente-coronel da reserva Paulo Malhães reacendeu o medo em torno dos cadáveres – reais ou simbólicos - que cercam a ditadura militar. O tenente-coronel foi encontrado morto em casa, na zona rural de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense.

Malhães foi morto por asfixia. Três homens invadiram a residência dele na sexta-feira, dia 25 de abril. A mulher foi amarrada, enquanto o tenente-coronel era executado. Todas as armas da casa foram roubadas. Os primeiros dados da investigação falam em queima de arquivo.

O tenente-coronel deu um depoimento forte há cerca de um mês na Comissão da Verdade. Paulo Malhães foi agente do Centro de Informações do Exército na ditadura militar. No depoimento, ele reconheceu tortura, mortes e ocultação de cadáveres durante o período. Uma frase dele: “Naquela época, não existia DNA. Quando você vai se desfazer de um corpo, quais partes podem determinar qual é a pessoa? Arcada dentária e digitais. Quebrava os dentes. As mãos cortava daqui para cima (apontando para as falanges)”.

A morte do tenente-coronel levanta suspeita de que ele poderia entregar mais gente da turma verde-oliva. No entanto, o que me chama a atenção é que torturas e mortes por parte de agentes do Estado são vistas como episódios de uma história cada vez mais distante.

A tortura nunca acabou, mesmo com a passagem para a democracia. Apenas mudou a cor do uniforme e a função dos torturadores. E a conivência de uma parte da sociedade permanece, seja pelo silêncio, seja pela construção de argumentos simplórios e individualistas.

A frase feita “bandido bom é bandido morto” é um dos primeiros argumentos que surgem quando se debate tortura no Brasil. Além de embutir a ideia de que todas as vítimas de tortura são culpadas, a proposta vem acompanhada de um segundo elemento frágil. “Quero ver se for com você ou com algum parente seu?”

A recíproca poderia ser verdadeira. E se fosse você o confundido pela polícia ou um parente seu fosse torturado? O que diria? Na verdade, tortura e mortes devem ser responsabilizadas, e não enaltecidas como efeitos colaterais ou como inerentes ao processo de segurança pública. A solução passa, necessariamente, pelo pensamento coletivo e reforço das instituições, que devem expurgar suas laranjas podres, e não promovê-las.

Torturas e mortes somente foram transferidas dos quartéis para viaturas e delegacias. A prática aparece diariamente no noticiário, que empilha casos de pessoas conhecidas ou de casos eleitos. São histórias que, dependendo dos elementos dramatúrgicos, podem gerar surtos de indignação e bodes expiatórios para responder a processos administrativos. Os remédios são pontuais para causas sistêmicas.

Há mais de 20 anos, o jornalista Caco Barcellos denunciou no livro “Rota 66”, o comportamento de policiais que matam em quantidade que deixaram corados de vergonha assassinos em série endeusados pela cultura pop norte-americana. Nós também temos nossos deuses. Muitos destes policiais mantém mandatos políticos até hoje, com o mesmo discurso de “bandido bom é bandido morto.”

O livro, que levou Barcellos a morar na Europa por dois anos por conta das ameaças de morte, indicava que boa parte das vítimas da Rota, em São Paulo, eram negros, com carteira assinada, sem antecedentes criminais e moradores de periferia. Foram mortos com tiros nas costas ou na cabeça; neste caso, o tiro veio de cima para baixo, o que dava contornos de execução.

Os autos de resistência – nome burocrático para execuções – representam um dos sintomas da descrença no sistema de segurança. É uma doença paradoxal. Ao mesmo tempo em que se defende a limpeza social de “bandidos”, a população não confia nos policiais – até porque sabe do que são capazes com a aprovação dela – e sustenta a justiça com as próprias mãos. A “moda” de se amarrar pessoas em postes – culpados ou não – é reflexo cristalino disso.

Mesmo que se fechem as cortinas ou que as luzes sejam apagadas, os esqueletos ainda permanecem sentados na mesa de jantar. A história não virou poeira. Ela está ao lado, viva nas mesmas práticas de uma cultura que mente quando diz ser pacifista.

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