sexta-feira, 1 de abril de 2016

Os hospedeiros


Marcus Vinicius Batista

O dinheiro promoveu o acaso. O bloqueio dele pela Justiça. Os dois pacientes, acostumados ao luxo, tiveram que dividir o quarto do hospital. Servir-se do sistema público que tanto execraram ou negligenciaram no trabalho. Estavam lado a lado, cama a cama, isolados por conta de uma doença. Enfermidade que os transformou em hospedeiros.

Os sintomas eram idênticos. Os exames os colocavam no mesmo tratamento, distantes do mundo para se proteger e proteger os outros de contaminação. Pedro Tenório e Paulo Sérgio De Bianchi tiveram origens diferentes, embora morassem perto um do outro, cruzaram-se muitas vezes na vida profissional, chegaram a gritar juntos pelas mesmas causas, mas jamais foram amigos. Haviam respeitado as desavenças eventuais, cutucavam-se mutuamente, mas nunca violência física. Respeito às origens e às semelhanças, medo de virar vidraça na comodidade do telhado.

Pedro e Paulo tiveram que rasgar a fantasia de tantos anos. Muitos apostam que os dois acreditavam cegamente em pertencer à Turma do Bem. Viam-se juntos em duas camas, descobriram-se irmãos de sangue e vírus. O problema é que fingiam não saber o que tinham dentro de si. Ignoraram as recomendações públicas, abusaram do vício e da vaidade. Uma enfermeira comentou que deveria ser do sangue. Um médico pediu novos exames para saber o grau da infecção. Suspeita de herança genética.

Os sintomas se desenvolveram a passos lentos. O vírus ficou encubado por anos, profetizou um atendente. Delírios de grandeza escorriam pelo nariz. Cinismo brotava como manchas na pele. O pus de cicatrizes corrompidas exalava cheiro podre a cada grito de insatisfação. A paralisia controlava com autoritarismo parte do corpo. Mas ambos mantinham a pose; apenas sussurros penetravam pelo vão da única janela do quarto.

Os amigos de farra, de pastores a donos de fazendas, os largaram quando souberam da doença. Tenho medo de pegar, falou um ao telefone. Os dois tinham amigos comuns, chegaram a trocar alianças com gente da mesma família, casaram-se com parentes distantes, de clãs entrelaçados de tempos de chumbo. Chumbo, pau de arara e silêncio constantes.

Os médicos olhavam para Pedro e Paulo sem misericórdia. Estão aqui porque mereceram, afirmou um dos homens de branco. Outro retrucou que paciente é paciente, não importam as escorregadas e a vida de ostentação. Ouviu que era isso mesmo, que ficassem na ala dos desesperados, onde poucos sobreviviam à uma doença que corroia até os ossos. Nem mutilação de partes gangrenadas adiantava no último estágio. Era deixar para morrer. Paulo talvez durasse mais tempo. Pedro dava impressão de que o caixão já deveria ter sido encomendado. Surpresas seriam evitadas.

Pedro e Paulo Sérgio mediam as palavras quando conversavam entre si. Não era o momento de atacar um ao outro. Pedro tinha uma mutação do vírus mais intensa em seu organismo. Paulo havia entrado em processo de cura, ilusão para uma doença que persiste na família desde o século passado.

Pedro Tenório sentia dores mais agudas. Paulo parecia estar em remissão. Parecia, pois o médico tratou de enterrar as esperanças no último boletim. O vírus ainda estava lá. Adormecido, mas pronto para um acordo com aquele organismo.

O médico entrou no quarto com ares de preocupação. Diante da expressão de dúvida dos pacientes, ele foi direto:

— Tenho uma boa e uma má notícia. A boa: Pedro Tenório, o vírus está deixando seu corpo. A má: ele deixou muitos estragos, causou danos demais. Não sei se é possível manter o tratamento. Podem haver sequelas.

Antes de qualquer resposta, até para fugir logo daquele ambiente séptico, o médico olhou para o outro paciente e, com formalidade, disparou:

— Senhor Paulo Sérgio De Bianchi, seus índices pioraram. Não posso afirmar com certeza, mas tenho a impressão de que o vírus ressuscitou, acordou em seu organismo. Os sintomas mais sérios podem voltar. Mas prometo acompanhar o senhor mais de perto, junto com minha equipe.

Pedro fechou os olhos, respirou para medir as palavras:

— Doutor, então o senhor tem um diagnóstico definitivo? Seja honesto!

— Tenho sim. Os exames foram refeitos e é impossível contestar o resultado. Vocês dois sofrem, realmente, do mesmo mal. Hospedaram o mesmo vírus em épocas diferentes de suas vidas, mas ele é mutante, adaptou-se ao corpo de vocês e não perde a natureza de sanguessuga. Avisem seus familiares que a estrada ainda será difícil. O tratamento levará alguns anos, pelo menos, com prescrição médica - talvez, talvez - para o resto da vida. Nós chamamos a doença pela sigla do nome científico do vírus. Não há ainda um nome popular. É o Proselitimus Maracutae Dependentis Brasiliensis.

— Nome comprido, coerente com a gravidade, né?, ironizou Pedro Tenório.

— Melhor chamá-lo de PMDB. É mais simples.

O médico fechou o prontuário, forçou o sorriso e saiu da sala.

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