Com o aumento do interesse pela política (com ressalvas), algumas expectativas foram demolidas voto a voto no último domingo. Uma delas foi a imagem de que sujeitos eleitos, vestidos de terno e gravata e com muito dinheiro no bolso, seriam cavalheiros que nos fariam comparar Brasília com a Câmara dos Lordes, em Londres. Esperávamos, ao menos, que fingissem diante da importância do que seria votado.
A visibilidade na TV por conta do impeachment derrubou o castelo de areia e mostrou, por trás dele, que a representação política de baixo nível é o que temos para hoje. E temos, entre outras coisas, por conta do sistema político, que merece uma reforma desde que me conheço por gente, reforma engavetada por Michel Temer após os protestos de 2013. Cerca de 90% dos deputados eleitos exercem mandato por causa do quociente eleitoral e tremem as pernas quando ouvem falar em voto distrital, por exemplo.
Não me entenda mal. O problema não é a histeria em si, mas a intensidade da manifestação do sintoma. Percebo que a surpresa e a tristeza das pessoas vêm da descoberta de que quase todos os deputados federais encararam a votação como um passeio no parque. Foram horas de tortura para aqueles que tentaram acompanhar um dia histórico na política nacional.
O choque foi de tamanha profundidade que o assunto disputa espaço com as consequências do processo de impeachment. Ficamos tão bêbados de desfaçatez que acordamos de ressaca após ver tanta gente chapada diante do microfone.
O festival de agradecimentos não é surpresa. Políticos misturam público e privado como crianças mexem achocolatado com leite. No caso do impeachment do Collor, também aconteceu. Nas Câmara Municipais, a maior parte dos trabalhos transita entre requerimentos inúteis (filhotes da mãe burocracia) e distribuição de títulos, comendas e medalhinhas. No Congresso, muitos deles viram a chance dos dez segundos de fama, a oportunidade de lembrar da mãe, do filho, do pai, do sobrinho (este o deputado se esqueceu do nome). Só faltou, como bem lembrou José Simão, cumprimentar a amante.
O Congresso como varanda de casa ficou evidente para o deputado Eduardo da Fonte, que estava com seu filho ao lado e queria que ele dissesse o voto. A ação foi barrada pelo presidente Eduardo Cunha. O plenário era o quintal de casa em tarde de churrasco.
Quem concorreu com as famílias é o invicto cujo santo nome escorre por todos os vãos. Deus também esteve no Congresso, em voz e celebração. Outro ato previsível, inclusive por conta da bancada da Bíblia, pluripartidária na fé e nas formas de ganhar o "dízimo". É o típico comportamento do fiel possuído. Quando vence, mérito dele. Quando algo dá errado, culpa dos outros, inclusive de Deus. No domingo, em Brasília, foi dia de vitória para a maioria da bancada.
O bolo no meio do picadeiro teve duas cerejas, tão diferentes, mas que ficaram parecidas com o clima contagiante do papel picado. A cusparada de Jean Willis foi acolhida por muitos como uma forma de punição merecida à Jair Bolsonaro, que dedicou seu voto à memória do coronel Carlos Alberto Ustra, um dos principais assassinos da ditadura militar.
Não vejo como aprovar a atitude do deputado Jean Willis. Uma coisa é a imbecilidade de Bolsonaro, um deputado inexpressivo que conquistou uma pequena camada da população, principalmente entre os de maior renda. Uma coisa é a fanfarronice de um parlamentar anacrônico, defensor de causas ultrapassadas pela história, que alimenta preconceitos, enquanto desvia o foco do nepotismo e da improdutividade dentro da Câmara Federal.
O ato de Jean Willis é injustificável, passível de reprovação como comportamento que se espera de um deputado federal, a antítese da postura que sonhávamos em ver num processo de votação desta relevância. Compreendo a reação intempestiva diante de um copo que transbordou após anos de xingamentos, deboches e outras agressões. Mas Jean Willis deveria usar os canais - ainda que frágeis - que a própria instituição possui.
Gostaria de ressuscitar uma expressão que caiu em desuso, sepultada pelos próprios parlamentares ao estenderem os limites da ética ao insuportável. Ambos seriam enquadrados por falta de decoro parlamentar, uma espécie jurídica extinta. Fariam companhia à Paulinho da Força, sindicalista pelego que se tornou camareiro do poder, em Brasília. Paulinho defendeu um bolão sobre o resultado da votação, com o perdão da rima pobre, como se o cargo de presidente da República fosse tão importante como o goleiro do time da rua.
A Câmara Federal atual é a mais conservadora desde a ditadura militar. Mas conservadorismo não significa falta de educação, de decência e de respeito com o cargo que ocupam. Essa agressão aos eleitores e à instituição tem outro nome, que não consigo definir numa palavra.
O domingo talvez se resuma na profecia de Eduardo Cunha, o líder de sete peles: "Deus tenha misericórdia dessa nação!" Aposto que, embora citado, Deus não sabe onde fica a Câmara dos Deputados.
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