sexta-feira, 15 de abril de 2016

Dom Quixote veste vermelho


Marcus Vinicius Batista

Mais do que o cancelamento do discurso da presidente Dilma Rousseff na TV, ele ficou indignado com a suspensão da nova batalha. Não precisava de armas. A voz e o dedo em riste eram a garantia de resistência contra as panelas que bateriam na vizinhança.

Como sempre, deixaria a mulher em casa, na frente da TV, e iria até o quintal nos fundos do prédio, no Embaré, em Santos. O papel dela se resumia a acompanhar o noticiário e criticá-lo. Lá, no quintal, ele pretendia repelir coxinhas, falar mal da Rede Globo, lembrar dos escândalos que envolvem o PSDB no Governo de São Paulo. Política se faz na rua e, antes de tudo, dentro de casa; era sua prática há décadas, desde que se envolveu com o sindicato e largou a sala de aula.

Respirava e sobrevivia pela política. Passava parte do dia ao telefone, articulando, aconselhando, adiantando soluções, debatendo problemas. O sindicato era sua vida, seu sustento, seu amor. Conheceu, por sinal, a esposa nas batalhas sindicais. Ela é sua maior interlocutora, mas também sua maior adversária. Sempre estiveram na mesma chapa, mas ela não deixa de apontar o dedo quando quer impor sua posição política ou apontar o que julga serem erros dele.

Na guerra contra os coxinhas, ele virou um cavaleiro solitário naquela quadra. Nem a mulher teve coragem de se expor à orquestra de panelas no mês passado. Ele foi sozinho para espinafrar a coxinhada, em suas próprias palavras, audíveis para os vizinhos no café da manhã do dia seguinte. Ele não se incomoda com a privacidade em xeque. Nem as janelas fechadas barram seus discursos.

Na batalha de março, a impressão era de que iria enfartar. Os moinhos de ventos faziam um som ensurdecedor. As panelas esbravejavam, acompanhadas de "Fora Dilma" e palavras indecorosas tanto quanto machistas. Suas veias saltaram, seu cabelo despenteou e ele urrava em cima do cavalo imaginário: "Coxinhas. Estúpidos que assistem à Rede Globo. Tucanos!"

Ele listava os escândalos em torno do PSDB, parte deles inaudíveis por conta das panelas, das risadas e do mantra "Fora Dilma". Andava de uma ponta a outra do corredor de espada quixotesca em punho. Naquela fantasia, abriu várias frentes de batalha, o primeiro sinal de que a estratégia de vitória deveria falhar. Napoleão e Hitler perderam suas guerras porque, entre outras razões, dividiram seus exércitos. E ele, então, que estava sozinho e jamais poderia quebrar a lei da física de um corpo em dois lugares ao mesmo tempo!



Com a voz falhando e a camiseta vermelha suada, ele abandonou o front oeste, onde lutou contra quatro janelas de um edifício de alto padrão. Mudou a tática e resolveu enfrentar uma senhora que estava no segundo andar do prédio ao lado ao dele. Ambos edifícios antigos, de três andares.

O inimigo se encontrava bem perto, ao alcance da espada imaginária de empunhadura vermelha e trabalhista. Contra a vizinha histérica, repetia o discurso, conseguia calar a voz inimiga, restrita ao "Fora Dilma".

Depois de 20 minutos de confronto intercalado com silêncios, um cessar-fogo sem diplomacia. Cansaço, mesmo. Bufava de exaustão. O rosto parecia mais vermelho do que a bandeira da estrela solitária, pregada na janela da sala. Cara fechada de nervosismo de quem volta para o quartel-general sem saber se feriu ou se matou.

Olhando daqui, apostaria que todos perderam pela irrelevância do ato político. Pela caricatura de uma briga comprada, na qual todos morreram de falta de ética há anos. Mas ele resiste. A vida sempre foi de resistência, de enfrentamento, de discussão, de reuniões para ser contra a opressão e a exploração, palavras sempre presentes nas conversas ao telefone ou nas discussões com a mulher na área de serviço.

Na manhã seguinte, ele estava orgulhoso de extravasar contra os coxinhas. Não teve dúvidas: colou dois adesivos na janela da sala. O primeiro deles atacava a Rede Globo. O segundo era o mantra do lado de cá do muro, onde ele morava: "Não vai ter golpe!".

Satisfeito, passou a coleira no cachorro, abriu a porta e foi passear de boné, camiseta e chinelo pelas ruas do bairro. Assim como todos os dias.

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