Tristeza e divertimento, dependendo do personagem na TV |
Marcus Vinicius Batista
Tive dificuldades para dormir essa noite, insônia das bravas que me perseguiu durante a madrugada. Talvez o sintoma biológico de algum resquício de idealismo, comentei com minha mulher. Talvez a consequência de uma melancolia que me perseguiu desde o final da tarde, conforme acompanhava a votação na Câmara dos Deputados.
Minha atenção se alternou, a partir das oito da noite, entre a votação – via celular – e a série de TV “House of Cards”, na qual Michel Temer ganha outro nome, Frank Underwood e é interpretado por Kevin Spacey, ainda que os dois não se conheçam. O dia começou com uma série criminal e terminaria com uma política; na vida prática e também na dramatúrgica, quase o mesmo gênero.
Com menos de uma hora de votação, estava claro o resultado. Desejava mesmo acompanhar o tamanho do estrago no Governo Federal. Antes que os cães de arquibancada ladrem e arranhem, considero a administração atual muito ruim e que merece pagar pelo alto preço da venda da alma ao diabo. O problema é considerar angelical a comitiva infernal – e moralmente ilegítima - que incendiou os trabalhos em Brasília.
Quando faltavam uns 15 votos para que se alcançasse a meta para a abertura do processo de impeachment, resolvi sair de casa. O calor e uma tristeza crescente exigiam uma sacudida nas pernas. Precisava dar uma volta pelo bairro, sentir um pouco o clima, pensar um pouco no que testemunhava. Conversei com minha mulher, Beth, e fui comprar sorvete.
Andei duas quadras e entrei na pizzaria modelo forno-motoboy mais próxima. Não vendiam mais sorvete. A TV, ligada na transmissão ao vivo da Câmara, não provocava reações na atendente nem no motoboy de plantão. Somente a gritaria dos deputados federais, falando de Deus, da mãe, do corretor de seguros, preenchia o espaço.
Caminhei outras duas quadras e cheguei num bar na rua atrás da minha casa. Ali, garçons, o caixa e eu nos cumprimentamos pelo nome. O boteco tinha umas quatro mesas ocupadas, todas famílias de olho na TV. Enquanto pagava pelos sorvetes, assistia na TV os encaminhamentos para o resultado final. Faltavam três votos. A imagem, focalizada em Beto Mansur, o contador-secretário-amigo-do-Eduardo, gerou a reação imediata de um cliente. “Olha ele lá! Brincadeira!”
Sorri, paguei o Renato, silencioso sobre o momento político, e me despedi. Ao atravessar a rua, uma voz saiu de uma das janelas: “Só falta um!”. Fogos de artifício preenchiam o silêncio. Uma mulher batia palmas.
Enquanto o deputado Bruno Araújo lacrava o processo de votação, eu virava a esquina de casa. Nos prédios de alto padrão, três vuvuzelas ressuscitavam o clima de Copa do Mundo, como se nós, a seleção e a democracia não tomássemos quase dois anos depois uma nova goleada de 7 a 1, ou qualquer outro número que indique a vergonha que deveríamos sentir diante dos políticos que escolhemos.
Os fogos ficaram mais intensos. Alguns “Fora Dilma!” ecoaram na quadra onde moro. A melancolia cresceu, aliada à vergonha. Não consigo ver motivo para comemoração. Testemunhamos um partido que trocou um projeto político por uma prática de poder ilícita. E pouco percebemos que demos um cheque em branco para quem ocupará seu lugar, gente que estaria presa se não tivesse mandato e poder. Se nós, sujeitos comuns, adotássemos ações semelhantes, estaríamos respondendo a inquéritos, processos, ações administrativas, não importa o nome burocrático. Vergonha da tese “Vamos tirar a Dilma e a gente vê”.
Minha mulher estava chocada com o circo em torno da votação. Teme por nosso futuro financeiro, pelo horizonte econômico, pela incógnita de um novo presidente acostumado a operar em próprio benefício, sempre nas sombras. Tentei acalmá-la, cansado de resistir a argumentos que também me provocam temor. Minha melancolia me dominava por uma necessidade de ficar quieto. Retomar a série de TV me permitiu calar a boca quando pouco tinha o que dizer. Calado, mas entrar no clima da dramaturgia. A política real planava na sala.
Quando deixamos a série “House of Cards”, voltamos a conversar sobre o impeachment. Na verdade, as circunstâncias que o envolvem, os motivos, os desdobramentos políticos. Confesso que fica realmente difícil segurar o distanciamento e o racionalismo que deveriam permear uma análise política naquele instante.
Desisti de querer sustentar qualquer argumento sobre o processo político. Retomamos a discussão de, em longo prazo, mudar de lugar. Antes, no ano passado, pensávamos em mudar de cidade, ideia adormecida com novas perspectivas pessoais em Santos, endereço onde nasci. Pela primeira vez, dialogamos sobre o planejamento de – a longo prazo – deixar o país, argumentos reforçados apenas na troca de olhares e sustentados por experiências de viagens.
Diante da concordância e de brincadeiras sobre países e suas opções, fomos deitar. Melancolia – acreditava eu – suprimida para reflexões mais analíticas e menos apaixonadas no dia seguinte. Mas aí veio a insônia ... o biocombustível que abastece os entristecidos e os envergonhados.
Que o sono me traga outra vez a racionalidade, minha proteção!
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