terça-feira, 13 de agosto de 2013

Obrigação e mérito

Ricardo Ferreira Gama, em imagem antiga

A morte de Ricardo Ferreira Gama, de 30 anos, engrossa o cardápio de exemplos sobre como o Estado e seus agentes públicos costumam se comportar em momentos de crise. A postura envolve uma série de características que se repetem na crença de que somos crianças abertas a ouvir o rosário de histórias da carochinha. 

Polícia Militar e Polícia Civil, depois de desdenhar testemunhas e se apressar para enterrar a história no rodapé de seus arquivos mortos, resolveram se mover. Por que a mudança? No circo do óbvio, as duas corporações saíram da hibernação diante do atestado de paralisia exposto não apenas pela imprensa, mas também por centenas de pessoas nas redes sociais.

Há cinco dias, a Polícia Militar falava em falta de provas. Engavetou um inquérito preliminar. A Polícia Civil, por meio de um de seus delegados, jurava não ter visto sinais de agressão no auxiliar de limpeza da Unifesp.

Para amenizar o impacto da negligência, as duas instituições partiram para a estratégia de sempre: transformar obrigação em mérito. A Polícia Civil enviou para Santos um delegado do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa, mais um grupo de investigadores. O crime aconteceu há 11 dias. A Polícia Militar também mudou de ideia. Agora, encaminhou o caso para a Corregedoria e para a Secretaria de Segurança.

A metamorfose também contaminou a própria Unifesp. Depois de quase duas semanas, a universidade largou o bastão dos omissos e divulgou nota oficial. A instituição resolveu, agora, repudiar o crime e oferecer ajuda à família do auxiliar de limpeza.

Para completar a redundância, a Unifesp pretende discutir a segurança do bairro com as autoridades. Após tantos assaltos, foi preciso aparecer um corpo para que a instituição se mexesse e entendesse a urgência de pensar a violência além da retórica.

Quando o mérito é insuficiente para mascarar obrigações, a ordem é avançar na ilusão da caridade. Neste sentido, é necessário falar em colaboração e deixar que isso soe como favor. Inverte-se a lógica da acusação. São curiosas, por exemplo, as declarações do advogado dos policiais.

Alex Ochsendorf, que foi policial militar enquanto estudava Direito, disse, em entrevista ao jornal A Tribuna, que os PMs “disponibilizaram os números de seus respectivos telefones e estão abrindo a intimidade deles para provar que não têm participação no crime ou nas supostas ameaças após a morte de Ricardo.”

É parte do espetáculo jurídico o blefe dos advogados. Mas é um insulto à inteligência crer que vamos engolir como favor as informações fornecidas pelos policiais. Eles estão sob investigação. Precisa dizer mais?

Além de nos conceder favores, transformar obrigação em mérito implica em cuidar das palavras. Trocá-las. Acariciá-las. Ajeitá-las para diminuir a gravidade dos fatos. Para o advogado dos PMs, as lesões no rosto do auxiliar de limpeza foram reflexos do “estado alterado” da vítima. O que isso significa? Que Ricardo se debateu a ponto da cabeça dele atingir as mãos dos PMs?

Enquanto todas as instituições tentam encenar seus papéis no teatro de sangue, os estudantes ficaram com o ônus da vida real. Muitos universitários estão fora da cidade ou morando em casas de amigos. Um deles, que presenciou a abordagem policial, fez – segundo reportagem de Bruno Lima, no jornal A Tribuna – um pedido de inclusão no Serviço de Proteção às Testemunhas, programa ligado ao Ministério da Justiça.

Para que mérito e obrigação não se diluam em impunidade, é fundamental que a história seja acompanhada não apenas pela imprensa, mas por todos nós. A questão não é julgar e condenar os policiais por antecipação. Eles precisam realmente provar que não mataram Ricardo. É direito deles á defesa. Mas, no mínimo, precisam retornar à academia porque dezenas de estudantes testemunharam uma lista de erros crassos de abordagem policial.

Só não espere das instituições a extinção da inércia. A cultura da paralisia está enroscada até nas tripas do poder. Ela pode se manifestar também pela transferência de responsabilidade. Coincidência ou não, um grupo de pessoas, composto por juristas e religiosos, além de representantes de entidades que trabalham com vítimas de violência, vai entregar essa semana uma carta ao governador Geraldo Alckmin.

O documento pede a criação emergencial de uma política de combate à tortura. A carta tem relação direta com o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, que deve ser implantado em todos os Estados. Sabe o que a Secretaria de Justiça de São Paulo disse ao jornal Folha de S.Paulo? O assunto é de responsabilidade da Assembleia Legislativa. Só nos resta esperar quem ficará com o mérito depois da obrigação cumprida.

Obs.: A Polícia Militar afastou, na última terça-feira, dia 13, os três policiais que abordaram Ricardo. Só para constar, é um procedimento obrigatório, pois o trio está sob investigação. 

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