sexta-feira, 9 de agosto de 2013

O estupro moral


Uma mulher é estuprada a cada 12 segundos no Brasil. No Estado de São Paulo, foram quase 13 mil estupros em 2012. Santos registra a média de 10 casos por mês. Sob qualquer ângulo, a violência sexual é uma epidemia. Poderia encher esta coluna de dados estatísticos que reforçariam a gravidade do problema, como fiz em dois textos no mês de maio. 

A violência sexual é uma doença democrática, que não discrimina classe social, lugar, idade ou religião. Isso mesmo, religião. A fé, misturada com política rasteira, é o que travou nos últimos meses os primeiros passos de uma política nacional contra a violência sexual.

A presidente Dilma Rousseff, depois de alguns escorregões na área da saúde, acertou ao sancionar integralmente a lei que regulamenta o atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS) às vítimas de violência sexual.

A lei estabelece que o atendimento deve incluir: 1) diagnóstico e tratamento de lesões; 2) a realização de exames para detectar doenças sexualmente transmissíveis e gravidez; 3) fornecimento de informações sobre os direitos legais da vítima e sobre todos os serviços sanitários disponíveis; 4) apoio dos profissionais de saúde para o registro policial do crime; e 5) fornecimento de contraceptivos de emergência às vítimas de estupro.

A pílula do dia seguinte é que atiçou a intolerância da bancada da bíblia, desconectada para políticas sociais, coesa eventualmente para acariciar os próprios interesses morais e econômicos. O argumento é que a pílula seria um estímulo ao aborto e facilitaria a legalização da prática no Brasil.

O Governo Federal prometeu encaminhar ao Congresso um projeto que troca o termo “profilaxia da gravidez” por “medicação com eficiência precoce para a gravidez decorrente de estupro”. A decisão atende à reivindicação de entidades católicas e evangélicas. O próprio Ministério da Saúde reconhece que a mudança na lei evitará interpretações sobre o estímulo ao aborto.

O problema não é a troca de palavras. São detalhes até certo ponto abstratos diante das pressões de igrejas de religiões variadas, que mobilizam parlamentares para pressionar o Governo. Na prática, os deputados exercitam o moralismo de conveniência, virando as costas para um problema social profundo, enraizado numa cultura de base machista. Nenhum deles levantou a mão ou abriu a boca para falar em combate à violência sexual.

Não houve surpresas, por sinal. É redundante reclamar da necessidade de Poderes laicos. Soa utópico em um país que permeou sua história pelas relações – por vezes, promíscuas – entre religião e política de Estado.

O que incomoda é perceber que, diante de interesses políticos mesquinhos, pouco se avança no sentido de proteger e dar assistências às maiores interessadas: as mulheres estupradas. Mulheres que precisam mendigar atendimento em delegacias, até porque as unidades especializadas fecham nos finais de semana, dias de maior incidência de violência sexual.

As vítimas são, muitas vezes, obrigadas a retornar para casa e conviver com o agressor, em sua maioria, parentes, vizinhos ou moradores próximos. O sistema de abrigos é insuficiente e falho.

Além da ausência de estrutura, as mulheres precisam engolir a seco o comportamento cultural que se esconde no estupro e que se traduz na ideia de que elas provocaram os agressores. Logo, foram estupradas por merecimento. É assustador ouvir homens – e muitas mulheres – dizendo: “Ela estava de shorts. Pediu para ser estuprada!”

A canetada de Dilma Rousseff é um passo importante para que o país caminhe para reduzir os índices de violência ou, no mínimo, fornecer maior conforto para as vítimas de uma experiência tão traumática. Mas não tenho fé que os falsos profetas – com mandatos ou não – abandonem o moralismo e enxerguem a questão com humanidade.

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