sábado, 31 de agosto de 2013

Carta aos bons médicos

Médico cubano é vaiado ao chegar no Brasil
(Foto: Folhapress)

Texto publicado originalmente no site Cinezen Cultural, em 29 de agosto de 2013. 

Caros médicos,

Gostaria de fazer um apelo a vocês, ainda capazes de saltar o muro do corporativismo, da intolerância, do preconceito, da arrogância com os pacientes que precisam urgentemente de atendimento, qualquer atendimento. Não assinem embaixo na receita venenosa das lideranças de classe. Como em muitas categorias profissionais, as lideranças falam sobre um mundo irreal, discursam sobre um cenário onde a política soa como ingrediente único que afasta o humano do debate e das soluções.

O desembarque de médicos estrangeiros no Brasil despertou o que há de pior na categoria médica. Vi o corporativismo no nível da mesquinharia. Testemunhei a xenofobia a ponto de se esbarrar em conflitos ideológicos que parecem velhos fantasmas do tempo em que os esqueletos tinham patente militar e praguejavam tradição, família e propriedade.

Os representantes de vocês, bons médicos, protagonizam uma batalha política com o governo – e alimentada por parte da imprensa – que atira no lixo séptico a oportunidade de se conversar sobre saídas para a saúde pública. E de expor os irresponsáveis pelo quadro atual. Mas não. É preferível legislar em causa própria, na soberba de quem se basta dentro de um hospital. Normalmente, são estes líderes que protegem os coleguinhas que se apavoram no momento de crise, se entopem de remédios para o próximo plantão e empurram as responsabilidades e os ônus para colegas de outras profissões, que enxergam como serviçais.

O programa Mais Médicos é, obviamente, outro remédio paliativo, uma política de governo que não nos traz perspectivas de longo prazo. É fruto de um governo que vive do recuo, movendo-se conforme a maré do noticiário, do Congresso Nacional ou do STF.

Enxergo também as lideranças médicas mais interessadas em fazer xixi no poste do que em colocar na mesa o que se faz com a estrutura de saúde no país. A demarcação de território se transformou em estandarte de uma batalha no qual as vítimas somos nós, dependentes da boa vontade de um modelo que deveria funcionar por obrigação.

O paciente sem direito à plano de saúde está pouco se lixando para qual idioma fala o homem vestido de branco. Vamos parar de engolir, por favor, a conversa fiada, rasteira, surrada de quem divide o mundo entre direita e esquerda, ou entre PT e PSDB. Ambos são irmãos siameses na negligência e na má fé quando estão no poder.

Vocês, bons médicos, não podem se omitir diante de uma guerra de (des)informação, na qual prevalecem distorções estatísticas, chutes matemáticos e outros dados que atendem aos interesses de quem faz política em benefício próprio. Faltam médicos, sim! E em todos os lugares, exceto onde há concentração de renda.

Vocês sabem que a formação dos colegas cubanos, portugueses, espanhóis é sólida. Assim como tem conhecimento de que a formação do médico brasileiro é entupida de problemas como uma veia hipertensa. Para muitos estudantes de Medicina, o mundo ideal não teria pacientes. E, se existissem por qualquer eventualidade cósmica, seriam atendidos por robôs.

Os universitários fogem como criança de seringa quando ouvem falar em avaliação em final de curso. E não precisa escapar para as periferias ou para o interior para vivenciarmos barberagens cotidianas dentro de hospitais, consultórios e postos de saúde. Já vi residente diagnosticar hipertensão numa paciente em dois minutos de conversa. Isso sem medir a pressão, além de informado por ela que era portadora de lúpus e com um comunicado da reumatologista. Gênio ou charlatão?

Os médicos estrangeiros não vão tomar o lugar de vocês, bons médicos. Talvez ocupem – em um futuro distante – as vagas de profissionais vagabundos, que dormem em plantões enquanto pacientes mofam, sangram e sentem dor em bancadas frias de salas de esperas dos prontos-socorros. Os estrangeiros talvez fiquem no lugar dos profissionais irresponsáveis, que enterram o juramento de Hipócrates, a cada vez que assinam o ponto e saem à francesa, colaborando para entulhar pessoas que imploram por atendimento.

Sei – seria ingênuo pensar o contrário – que saúde pública não se faz somente com médicos. São necessários de gazes a técnicos de raio-X, de soro a enfermeiros, de esparadrapos a psicólogos, de macas e leitos a auxiliares de enfermagem. Saúde pública não se faz somente com boa vontade. Mas saúde pública também se faz com humanidade.

O que as regiões distantes do país precisam, assim como as periferias, é de humanidade. De gente que goste de gente! Até para que se possa cobrar – e insuflar os pacientes – os bandidos de gravata e mandato que costumam embolsar o dinheiro da gaze, soro e macas.

Vocês, médicos, não podem perder a oportunidade de desembaraçar o modelo de saúde atual. Vivemos um momento político favorável, capítulo que gera temor aos assaltantes burocratas. As ruas não mudam a mentalidade – inclusive porque falta de caráter caminha até o túmulo - , mas a classe política agiu em causa pública. Não importa se a seringa se aproximou da bunda. É preciso curar a doença.

A chegada dos médicos cubanos escancarou o isolamento da classe médica. Duvidem de suas lideranças. Reflitam se elas realmente agem pela coletividade ou se padecem da síndrome de pequeno poder. Vocês sabem que a relação com seus pacientes – e o bem estar deles – é o que os mantém vivos. E vocês, também.

Todos nós temos histórias com médicos. Boas e ruins. Cansei de ser atendido por especialistas em viroses. Ou escravos de exames. Ou profissionais de mãos amputadas porque nunca as vi tocar em pacientes. E todos estes sujeitos falavam português, eram supostamente bem formados, arrotavam uma elitização em suas roupas, carros do ano e viagens de férias.

Conheci, em contrapartida, médicos que se preocupam com o humano, sem o olho no relógio, sem os ouvidos na sala de espera, sem os dedos na calculadora das relações monetárias. Nunca pedi por caridade. Apenas me lembro de gente como Hélio, Arlindo, Ismar e Patrícia, pessoas que doaram o tempo justo e suficiente para compreender o que se passava na vida de alguém que se sentou à frente deles. Como o médico de um velho amigo, que telefona para ele para perguntar sobre o almoço. Afinal, seu paciente sofre de diabetes.

Bons médicos, não caiam de joelhos diante do tecnicismo. Não somos máquinas que andam e respiram, movidas a sangue, tecidos e órgãos. Somos humanos, independentemente de onde moramos e de quanto temos em nossas contas bancárias. E desejamos ser atendidos por pessoas que escolheram se dedicar às outras, falando português, espanhol, aramaico ou simplesmente caladas.

Bons médicos, não rejeitem quem quer fazer saúde pública. E cuidem de seus colegas que engolem as pílulas do corporativismo e da politicagem rasteira para vomitar intolerância e presunção. Estes, sim, estão doentes e não sabem.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

À espera de um milagre

Ponte Santos-Guarujá: eis o mistério da fé!

“Ponte ligando Santos e Guarujá sai esse ano”. A manchete circulou nas redes sociais esta semana. Logo abaixo do título, vinha a informação: “Em entrevista à Rádio local, secretário de obras garante: ‘É sério, desta vez fica pronta’”. O assunto é atual, no gargarejo da política. Mas a manchete é do extinto Jornal da Baixada, datada de 17 de agosto de 1973. Ainda que seja uma piada, uma brincadeira de Facebook, a manchete simboliza como a Baixada Santista adora reciclar velhas fantasias. 

As histórias da carochinha nascem como placebo contra a ausência de projetos concretos ou políticas públicas. Os contos de fadas são pontuais, pois podem ser trocados por outros na semana seguinte. Basta que a classe política se sinta pressionada em mostrar serviço. Ou melhor, encenar.

Infelizmente, uma parcela da imprensa contribui com a lenda ao comprar, mastigar, engolir e digerir sem dor as falácias dos contadores de histórias. A inexistência de crítica auxilia na construção da imagem da terra que sempre espera pela obra que mudará, definitivamente, seu destino. É como se muitos jornalistas aceitassem sem pensar – e assinassem embaixo – a megalomania dos governantes e seus plantadores de ficção.

Nesta semana, no mundo (ir)real, duas manchetes representaram a ressurreição de antigos cadáveres. A primeira se referia à emancipação do distrito de Vicente de Carvalho, em Guarujá. A história renasceu depois de debates dentro da Câmara Municipal, por conta de um grupo de moradores que resolveu recolher assinaturas dos eleitores.

Na prática, o que há de concreto, além de conversas de plenário? Quem são estes moradores? Vicente de Carvalho tem estrutura para ser cidade? Quanto seria a perda de Guarujá? Na hipótese de se conseguir 20 mil assinaturas de eleitores, o processo navegaria por um ano na burocracia da Assembleia Legislativa e na devolução à comunidade local.

Outra história de cavaleiros e dragões é a exploração comercial do Caminho do Mar, a antiga Estrada Velha. De tempos em tempos, o Governo do Estado renova esta promessa. Desta vez, jura ter criado uma comissão. Quem conhece política sabe o quanto uma comissão pode ser sinônima de andamento paquidérmico de um projeto.

Para sair da inércia, o Governo do Estado contaria com o suporte da Agência Metropolitana da Baixada Santista, especializada em vender a imagem de região interligada entre os nove municípios. A interligação que ocorre em reuniões com café da manhã sofisticado, dança das cadeiras entre prefeitos e muitos sorrisos. É a benção da metropolização, sem data para a vida real.

Nos últimos 20 anos, todas as cidades da região tiraram do armário monstros que prometiam o milagre do desenvolvimento econômico. Cubatão teria um Ceasa. Guarujá seria sede do aeroporto metropolitano. Praia Grande também criou sua própria versão da piada aérea. Peruíbe teria um porto à la Eike Batista. Itanhaém receberia o Parque da Xuxa, garantia de turismo além do sol e da praia.

De todas essas, a que mais se aproximou da realidade foi a Ponte Santos-Guarujá, que ganhou uma maquete em meio século. A obra em miniatura foi inaugurada pelo então candidato à presidência José Serra. Depois de eleito, Geraldo Alckmin – também diplomado no lançamento de projetos natimortos – enterrou a ideia. Talvez estivesse envergonhado, pois até a ficção e a fantasia têm limites para a crença.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Ainda vivos


Seria leviano apostar que os dois homens não se conhecem. Talvez tenham se cruzado em abrigos. Ou dividido calçadas. Ou dormido em provisórias comunidades de uma noite só, embaixo de marquises. 

O fato é que eles se parecem e vivenciam situações semelhantes. São parecidos nos poucos objetos, praticamente um saco de latinhas de alumínio e a roupa do corpo, mais os chinelos de dedo em número menor que os pés mereceriam. A barba e os cabelos brancos cobrem os rostos e os tornam quase iguais. A única diferença é o olhar, sempre único.

Conheci um deles na avenida Pedro Lessa, entre os canais 5 e 6. Tentava se abrigar embaixo do toldo de uma padaria, por volta da 16 horas. Frio de 13 graus. Estava molhado, fruto da chuva que se inclinava para desviar da proteção de momento.

O outro “residia” embaixo de um ponto de ônibus, na avenida Conselheiro Nébias. Assustado, ele se escondia atrás dos bancos, entre o muro de um estacionamento e o próprio ponto. Cobria-se com uma capa de plástico, que o protegia da chuva, mas parecia inútil diante o frio, desta vez na casa dos 11 graus. Encolhido como um bicho, o homem era invisível para quem tinha pressa e aguardava por transporte público.

A atual secretária de Assistência Social de Santos, Rosana Russo, me parece uma pessoa bem intencionada. Na semana retrasada, por exemplo, reuniu-se com coordenadores e assistentes sociais, além de professores e alunos da Unifesp. Ali, começou-se a pensar em como resolver uma série de problemas sociais, inclusive a questão dos moradores de rua. Mas não dá esperar seis meses, de acordo com o tempo médio de promessas de Governo.

Debater estatísticas é irrelevante diante da urgência do frio. Não precisa ser alienígena para notar como a população de rua cresceu. Emergência é fazer mágica para abrigar mil pessoas numa cidade cuja capacidade de acolhimento é de 220 vagas. E com uma Secretaria que possui o orçamento patético de R$ 40 milhões anuais, ainda que a promessa seja dobrar em 2014.

A própria secretária afirmou, no Jornal Enfoque, na Santa Cecília TV, sobre a necessidade de diálogo entre as áreas da Prefeitura. Morador de rua é também problema gravíssimo de saúde pública. Mais do que inserir enfermeiros nas equipes de operadores sociais, tornou-se essencial a criação de uma força-tarefa para salvar vidas.

E nenhuma ação será eficiente se os prefeitos não conversarem sobre a população flutuante. Quando as reuniões do Conselho de Desenvolvimento Metropolitano deixarão de ser um café da manhã colonial, onde são distribuídos sorrisos, relatórios e comissões? Quando os egos vão enxergar àqueles que perderam a autoestima faz tempo?

Cada morador de rua é um argumento vivo que desmente os dados de uma cidade que se vangloria da qualidade de vida. Cada morador de rua é a resposta clara para um município que se deitou na cama da falsa ostentação, em edifícios com fachadas que fingem riqueza.

Cada morador de rua é a evidência das estatísticas que crescem e nos esfregam na cara a desigualdade social que obriga políticos a dar, no mínimo, explicações sobre o problema. Os invisíveis, quando se amontoam em calçadas, se transformam em manchas que desenham a incompetência de um modelo que se rendeu à economia da desumanização.

O frio não tolera palavrório. O frio exige respostas emergenciais. Ou vamos esperar os números mudem, desta vez com enterros, e não mais com atendimentos em abrigos superlotados.

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Quem se importa?


Por Vanessa Pimentel* 

Vocês os conhecem?

Ricardo Ferreira Gama, 30 anos. Auxiliar de limpeza na Unifesp, em Santos. Não. Não o conheço. Apenas ouvi e li a história do cara que foi assassinado em frente a sua casa na rua Silva Jardim.

Amarildo de Souza, 42 anos. Desaparecido há um mês e um dia, desde que policiais da UPP da Rocinha o levaram para averiguação. E não. Também não o conheço.

Fulano da Silva, Sicrano de Souza, Josés e Marias. Todos desconhecidos e me pergunto: até quando é necessário conhecer alguém para me importar com a situação dela?

Não está no manual do bom caráter, na voz do inconsciente ou até mesmo na Bíblia, amar ao próximo como a ti mesmo? Não, não que isso seja amor, santidade ou coisa parecida, mas se importar com as pessoas além lar faz parte da convivência em sociedade e de quem diz se preocupar com o futuro do mundo.

Não julgar. Pesquisar, apurar, divulgar e, com isso, ajudar, talvez seja esse um novo verbo para o Jornalismo.

Vejamos a crise da imprensa, as demissões, junções de revistas e conteúdos. Jornalistas insatisfeitos, não apenas com salários, mas com o conteúdo que produzem na obrigação do factual. As mesmas fontes, as mesmas notícias, as mesmas pessoas supostamente importantes.

Chegam as redes sociais. SOCIAIS. Dando voz ao povo. O que não daria furo nem reportagem na grande mídia ganha espaço e voz através de compartilhamentos de pessoas comuns que se identificam com a causa e não assistem mais aos jornais por não se verem representadas ali.

O fato sem importância cresce, ganha espaço, protestos, voz e, então, imprensa. A voz do povo vira fonte, a morte do cara desconhecido em situação estranha, página principal, e as autoridades responsáveis são obrigadas a se mexer.

As redes sociais vieram para lembrar aos jornalistas dos seus sonhos no banco da faculdade, da missão assumida com a tal da "imparcialidade", ainda que não exista, e isso serve para que a atenção dada ao magnata seja a mesma oferecida ao vendedor ambulante. Andam mostrando que o povo não é tão burro quanto parece e que se as grandes estruturas não ouvirem o que "vem de baixo", novas, pequenas e fortes estruturas vão se formar e juntas, criarão sim, uma nova maneira de informar.

Vejamos como exemplo a onda de protestos que começou em uma rede social. Será que a voz do povo é mesmo a voz de Deus e ela está começando a falar mais alto e incomodar quem gostava do silêncio? Se a montanha não vai a Maomé, Maomé vai até a montanha.

Será que os jornais vão acordar para essa nova realidade que se apresenta ou vão continuar demitindo, apenas para manter a mesma forma de produção? Será que vão lutar contra ou se juntar aos NINJAS? Será que esse exército cresce?

Um milhão de pessoas nas ruas do Brasil cantando o Hino Nacional para mostrar a vontade de mudar. E saíram, saímos daqui! A morte de Ricardo teria uma investigação decente se as redes sociais não tivessem "compartilhado" o caso dele? E Amarildo? Pedreiro e pescador nas horas vagas seria agora seu conhecido?

Vocês os conhecem?

*Vanessa Pimentel é estudante de Jornalismo da UNISANTA.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Obrigação e mérito

Ricardo Ferreira Gama, em imagem antiga

A morte de Ricardo Ferreira Gama, de 30 anos, engrossa o cardápio de exemplos sobre como o Estado e seus agentes públicos costumam se comportar em momentos de crise. A postura envolve uma série de características que se repetem na crença de que somos crianças abertas a ouvir o rosário de histórias da carochinha. 

Polícia Militar e Polícia Civil, depois de desdenhar testemunhas e se apressar para enterrar a história no rodapé de seus arquivos mortos, resolveram se mover. Por que a mudança? No circo do óbvio, as duas corporações saíram da hibernação diante do atestado de paralisia exposto não apenas pela imprensa, mas também por centenas de pessoas nas redes sociais.

Há cinco dias, a Polícia Militar falava em falta de provas. Engavetou um inquérito preliminar. A Polícia Civil, por meio de um de seus delegados, jurava não ter visto sinais de agressão no auxiliar de limpeza da Unifesp.

Para amenizar o impacto da negligência, as duas instituições partiram para a estratégia de sempre: transformar obrigação em mérito. A Polícia Civil enviou para Santos um delegado do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa, mais um grupo de investigadores. O crime aconteceu há 11 dias. A Polícia Militar também mudou de ideia. Agora, encaminhou o caso para a Corregedoria e para a Secretaria de Segurança.

A metamorfose também contaminou a própria Unifesp. Depois de quase duas semanas, a universidade largou o bastão dos omissos e divulgou nota oficial. A instituição resolveu, agora, repudiar o crime e oferecer ajuda à família do auxiliar de limpeza.

Para completar a redundância, a Unifesp pretende discutir a segurança do bairro com as autoridades. Após tantos assaltos, foi preciso aparecer um corpo para que a instituição se mexesse e entendesse a urgência de pensar a violência além da retórica.

Quando o mérito é insuficiente para mascarar obrigações, a ordem é avançar na ilusão da caridade. Neste sentido, é necessário falar em colaboração e deixar que isso soe como favor. Inverte-se a lógica da acusação. São curiosas, por exemplo, as declarações do advogado dos policiais.

Alex Ochsendorf, que foi policial militar enquanto estudava Direito, disse, em entrevista ao jornal A Tribuna, que os PMs “disponibilizaram os números de seus respectivos telefones e estão abrindo a intimidade deles para provar que não têm participação no crime ou nas supostas ameaças após a morte de Ricardo.”

É parte do espetáculo jurídico o blefe dos advogados. Mas é um insulto à inteligência crer que vamos engolir como favor as informações fornecidas pelos policiais. Eles estão sob investigação. Precisa dizer mais?

Além de nos conceder favores, transformar obrigação em mérito implica em cuidar das palavras. Trocá-las. Acariciá-las. Ajeitá-las para diminuir a gravidade dos fatos. Para o advogado dos PMs, as lesões no rosto do auxiliar de limpeza foram reflexos do “estado alterado” da vítima. O que isso significa? Que Ricardo se debateu a ponto da cabeça dele atingir as mãos dos PMs?

Enquanto todas as instituições tentam encenar seus papéis no teatro de sangue, os estudantes ficaram com o ônus da vida real. Muitos universitários estão fora da cidade ou morando em casas de amigos. Um deles, que presenciou a abordagem policial, fez – segundo reportagem de Bruno Lima, no jornal A Tribuna – um pedido de inclusão no Serviço de Proteção às Testemunhas, programa ligado ao Ministério da Justiça.

Para que mérito e obrigação não se diluam em impunidade, é fundamental que a história seja acompanhada não apenas pela imprensa, mas por todos nós. A questão não é julgar e condenar os policiais por antecipação. Eles precisam realmente provar que não mataram Ricardo. É direito deles á defesa. Mas, no mínimo, precisam retornar à academia porque dezenas de estudantes testemunharam uma lista de erros crassos de abordagem policial.

Só não espere das instituições a extinção da inércia. A cultura da paralisia está enroscada até nas tripas do poder. Ela pode se manifestar também pela transferência de responsabilidade. Coincidência ou não, um grupo de pessoas, composto por juristas e religiosos, além de representantes de entidades que trabalham com vítimas de violência, vai entregar essa semana uma carta ao governador Geraldo Alckmin.

O documento pede a criação emergencial de uma política de combate à tortura. A carta tem relação direta com o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, que deve ser implantado em todos os Estados. Sabe o que a Secretaria de Justiça de São Paulo disse ao jornal Folha de S.Paulo? O assunto é de responsabilidade da Assembleia Legislativa. Só nos resta esperar quem ficará com o mérito depois da obrigação cumprida.

Obs.: A Polícia Militar afastou, na última terça-feira, dia 13, os três policiais que abordaram Ricardo. Só para constar, é um procedimento obrigatório, pois o trio está sob investigação. 

Quem matou Ricardo?



O medo e a indignação uniram estudantes e professores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Muitos vestidos de preto, eles saíram em passeata na última sexta-feira, em protesto contra a morte de Ricardo Ferreira Gama, de 30 anos. 

Ricardo foi executado com oito tiros na madrugada de 2 de agosto, na porta de casa, na rua Silva Jardim, na Vila Mathias, em Santos. Os assassinos eram, segundo testemunhas, quatro homens, em duas motos. Ele trabalhava como auxiliar de limpeza na Unifesp, que fica na mesma rua.

Ricardo foi abordado por policiais militares quando estava em frente ao campus, dois dias antes da execução. Muitos alunos faziam imagens dos PMs. Segundo os estudantes que testemunharam a abordagem, um dos policiais xingou Ricardo, que devolveu a ofensa e, por conta disso, passou a ser agredido pelos PMs.

O problema é que os estudantes registraram a agressão com seus celulares. Como Ricardo acabou na viatura, muitos universitários resolveram segui-lo, inclusive por medo da repetição do caso Amarildo, pedreiro que foi detido por PMs no Rio de Janeiro e desapareceu, em 14 de julho.

Os universitários peregrinaram por dois distritos policiais até encontrarem os PMs na Santa Casa de Santos. Ricardo teria sido liberado por negar a agressão. Em 1º de agosto, Ricardo pediu que os estudantes saíssem da história porque havia sido ameaçado em casa.

O abuso de poder teria outros desdobramentos. Sem identificação, pessoas entraram na universidade para pedir as imagens do dia 31 de julho. E novas ameaças foram feitas contra universitários.

Depois da morte de Ricardo, muitos universitários estão apavorados. Um deles, cujo nome não pode ser revelado por razões óbvias, passou a dormir na casa de uma professora. Ele foi ameaçado de morte. Outros estudantes evitam se identificar em entrevistas ou nas redes sociais pelo mesmo motivo. Temem ser perseguidos quando estiverem sozinhos.

A Polícia Civil não viu ou ouviu nada. Em entrevista ao repórter Bruno Lima, de A Tribuna, o delegado-titular do 4º DP, Rubens Nunes Paes, disse que “desconhece as agressões físicas e as ameaças feitas pelos PMs”. A morte de Ricardo vai engrossar a estatística de casos não resolvidos? De cada dez assassinatos no Estado de São Paulo, nove não tem solução.

Já a Polícia Militar se apoia na velha tática de desqualificar a vítima. Para a PM, Ricardo estaria envolvido em tráfico de drogas. A resposta oficial toma como base o relato de policiais, que teriam atendido denúncia de tráfico na rua Silva Jardim, perto da casa da vítima. Como se não houvesse várias bocas de fumo no bairro, um dos mais pobres da cidade. Além disso, o comando da PM abriu investigação preliminar, já concluída por falta de provas contra os policiais que abordaram Ricardo.

Até quando a Polícia Militar vai resolver com velocidade espantosa as suspeitas que envolvem seus membros? A corporação vai aceitar as acusações de que existem, entre seus membros, bandidos de farda, sujeitos que mancham a roupa que vestem?

Ricardo possuía quatro passagens pela polícia, duas por tráfico e duas por receptação. Vizinhos e colegas da universidade dizem que o auxiliar de limpeza tinha mudado de comportamento. Isso teria incomodado, inclusive, policiais corruptos que recebiam presentes.

Pela lógica da execução, o passado assegurava o direito à aplicação de sentença de morte. Até quando a PM vai conviver, como se não fosse com ela, com as denúncias de atos de grupos de extermínio, que julgam, condenam e executam em seus tribunais da informalidade? Ou a ordem é aceitar, como lei do cão, que toda sociedade seja obrigada a ter seus Amarildos e Ricardos?

Obs.: Assista ao vídeo que mostra Ricardo dentro da viatura da PM. 

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

O estupro moral


Uma mulher é estuprada a cada 12 segundos no Brasil. No Estado de São Paulo, foram quase 13 mil estupros em 2012. Santos registra a média de 10 casos por mês. Sob qualquer ângulo, a violência sexual é uma epidemia. Poderia encher esta coluna de dados estatísticos que reforçariam a gravidade do problema, como fiz em dois textos no mês de maio. 

A violência sexual é uma doença democrática, que não discrimina classe social, lugar, idade ou religião. Isso mesmo, religião. A fé, misturada com política rasteira, é o que travou nos últimos meses os primeiros passos de uma política nacional contra a violência sexual.

A presidente Dilma Rousseff, depois de alguns escorregões na área da saúde, acertou ao sancionar integralmente a lei que regulamenta o atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS) às vítimas de violência sexual.

A lei estabelece que o atendimento deve incluir: 1) diagnóstico e tratamento de lesões; 2) a realização de exames para detectar doenças sexualmente transmissíveis e gravidez; 3) fornecimento de informações sobre os direitos legais da vítima e sobre todos os serviços sanitários disponíveis; 4) apoio dos profissionais de saúde para o registro policial do crime; e 5) fornecimento de contraceptivos de emergência às vítimas de estupro.

A pílula do dia seguinte é que atiçou a intolerância da bancada da bíblia, desconectada para políticas sociais, coesa eventualmente para acariciar os próprios interesses morais e econômicos. O argumento é que a pílula seria um estímulo ao aborto e facilitaria a legalização da prática no Brasil.

O Governo Federal prometeu encaminhar ao Congresso um projeto que troca o termo “profilaxia da gravidez” por “medicação com eficiência precoce para a gravidez decorrente de estupro”. A decisão atende à reivindicação de entidades católicas e evangélicas. O próprio Ministério da Saúde reconhece que a mudança na lei evitará interpretações sobre o estímulo ao aborto.

O problema não é a troca de palavras. São detalhes até certo ponto abstratos diante das pressões de igrejas de religiões variadas, que mobilizam parlamentares para pressionar o Governo. Na prática, os deputados exercitam o moralismo de conveniência, virando as costas para um problema social profundo, enraizado numa cultura de base machista. Nenhum deles levantou a mão ou abriu a boca para falar em combate à violência sexual.

Não houve surpresas, por sinal. É redundante reclamar da necessidade de Poderes laicos. Soa utópico em um país que permeou sua história pelas relações – por vezes, promíscuas – entre religião e política de Estado.

O que incomoda é perceber que, diante de interesses políticos mesquinhos, pouco se avança no sentido de proteger e dar assistências às maiores interessadas: as mulheres estupradas. Mulheres que precisam mendigar atendimento em delegacias, até porque as unidades especializadas fecham nos finais de semana, dias de maior incidência de violência sexual.

As vítimas são, muitas vezes, obrigadas a retornar para casa e conviver com o agressor, em sua maioria, parentes, vizinhos ou moradores próximos. O sistema de abrigos é insuficiente e falho.

Além da ausência de estrutura, as mulheres precisam engolir a seco o comportamento cultural que se esconde no estupro e que se traduz na ideia de que elas provocaram os agressores. Logo, foram estupradas por merecimento. É assustador ouvir homens – e muitas mulheres – dizendo: “Ela estava de shorts. Pediu para ser estuprada!”

A canetada de Dilma Rousseff é um passo importante para que o país caminhe para reduzir os índices de violência ou, no mínimo, fornecer maior conforto para as vítimas de uma experiência tão traumática. Mas não tenho fé que os falsos profetas – com mandatos ou não – abandonem o moralismo e enxerguem a questão com humanidade.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

O frio dos invisíveis


O frio colocou a população de rua novamente na pauta política. O tema, invisível no cotidiano social e ignorado em campanhas eleitorais, reapareceu com o anúncio do acordo entre a Prefeitura de Santos e a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE), ligada à Universidade de São Paulo. 

Pelo contrato, a Fipe vai produzir – a partir de setembro – um censo sobre o número de moradores de rua na cidade. O serviço vai custar R$ 221 mil aos cofres públicos municipais. Não é a primeira vez que a administração municipal tateia um problema que finge acompanhar nos últimos 10 anos.

O censo é um passo, mas a política que o cerca provoca algumas dúvidas. A Prefeitura sabia, por exemplo, que a Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), sediada em Santos e com cursos nas áreas de Psicologia e Serviço Social, está produzindo uma pesquisa sobre a população de rua?

As informações estão no site da instituição, o assunto saiu na imprensa local, e servidores municipais se encontraram com professores e estudantes da universidade este ano. A promessa é que os resultados sejam divulgados em agosto, antes mesmo do início dos trabalhos da Fipe.

A Secretaria de Assistência Social estimava, há cerca de duas semanas, mil pessoas na rua. Basta andar pela cidade, dos bairros nobres da orla aos menos abastados, para constatar a grande quantidade de gente morando embaixo de marquises, perto de armazéns e nas calçadas.

Na primeira gestão de João Paulo Tavares Papa, a Prefeitura falava em 300 moradores de rua. O limite dos abrigos era de 150 vagas. Na segunda gestão, o número de gente desabrigada dobrou. O número nos abrigos permaneceu igual; aliás, o mesmo até agora.

O atual prefeito esperou sete meses para anunciar as medidas, exatamente no período mais frio do ano. Por que não se baseou na fábula da formiga e da cigarra e acelerou no verão? Se pensarmos que o censo começará em setembro, o trabalho será concluído somente no início de 2014. As dores do frio de hoje, de amanhã e da próxima semana vão aguardar?

A Fipe deverá descobrir o que assistentes sociais, psicólogos e operadores sociais comentam nos corredores da Prefeitura depois de ouvir no atendimento nas ruas. Parte desta população marginalizada tem origem em outras cidades da região, e muitos vieram de São Paulo.

Santos vai cobrar que as cidades vizinhas assumam responsabilidades? Haverá a implantação de políticas públicas metropolitanas? Até agora, a agência-cabide só gastou saliva, sorrisos e cafezinho. A Região Metropolitana ainda é um nome bonito para os jornais e a classe política.

De concreto, a Prefeitura inaugurou um centro de acolhimento para os moradores de rua, visando atendimento diurno. O imóvel pertence ao Albergue Noturno e fica na rua Conselheiro Saraiva, na Vila Nova. O aluguel custa R$ 3 mil por mês. Havia a necessidade urgente de um espaço com estes objetivos.

No entanto, o centro de acolhimento levanta outra dificuldade. E a mão-de-obra especializada para atender os moradores? Os espaços de assistência social operam no limite da capacidade. O orçamento da pasta não permite voos substanciais. Em abrigos noturnos, é comum apenas dois funcionários para cuidar de até 30 pessoas, muitas delas dependentes químicos.

A impressão é que o pacote reproduz o velho método de política de Governo, que – por conveniência – deixa no canto o passado e não projeta a longo prazo. Isso sem falar na necessidade de contexto, que inclui diálogo com demais áreas da Prefeitura, para que o morador deixe em definitivo sua condição de miserabilidade.

Se isso acontecer, teremos política pública, que ultrapassa a validade de quatro anos. Até porque, para quem utiliza uma marquise como teto do quarto sem portas e janelas, as noites têm sido longas demais.