Médico cubano é vaiado ao chegar no Brasil (Foto: Folhapress) |
Texto publicado originalmente no site Cinezen Cultural, em 29 de agosto de 2013.
Caros médicos,
Gostaria de fazer um apelo a vocês, ainda capazes de saltar o muro do corporativismo, da intolerância, do preconceito, da arrogância com os pacientes que precisam urgentemente de atendimento, qualquer atendimento. Não assinem embaixo na receita venenosa das lideranças de classe. Como em muitas categorias profissionais, as lideranças falam sobre um mundo irreal, discursam sobre um cenário onde a política soa como ingrediente único que afasta o humano do debate e das soluções.
O desembarque de médicos estrangeiros no Brasil despertou o que há de pior na categoria médica. Vi o corporativismo no nível da mesquinharia. Testemunhei a xenofobia a ponto de se esbarrar em conflitos ideológicos que parecem velhos fantasmas do tempo em que os esqueletos tinham patente militar e praguejavam tradição, família e propriedade.
Os representantes de vocês, bons médicos, protagonizam uma batalha política com o governo – e alimentada por parte da imprensa – que atira no lixo séptico a oportunidade de se conversar sobre saídas para a saúde pública. E de expor os irresponsáveis pelo quadro atual. Mas não. É preferível legislar em causa própria, na soberba de quem se basta dentro de um hospital. Normalmente, são estes líderes que protegem os coleguinhas que se apavoram no momento de crise, se entopem de remédios para o próximo plantão e empurram as responsabilidades e os ônus para colegas de outras profissões, que enxergam como serviçais.
O programa Mais Médicos é, obviamente, outro remédio paliativo, uma política de governo que não nos traz perspectivas de longo prazo. É fruto de um governo que vive do recuo, movendo-se conforme a maré do noticiário, do Congresso Nacional ou do STF.
Enxergo também as lideranças médicas mais interessadas em fazer xixi no poste do que em colocar na mesa o que se faz com a estrutura de saúde no país. A demarcação de território se transformou em estandarte de uma batalha no qual as vítimas somos nós, dependentes da boa vontade de um modelo que deveria funcionar por obrigação.
O paciente sem direito à plano de saúde está pouco se lixando para qual idioma fala o homem vestido de branco. Vamos parar de engolir, por favor, a conversa fiada, rasteira, surrada de quem divide o mundo entre direita e esquerda, ou entre PT e PSDB. Ambos são irmãos siameses na negligência e na má fé quando estão no poder.
Vocês, bons médicos, não podem se omitir diante de uma guerra de (des)informação, na qual prevalecem distorções estatísticas, chutes matemáticos e outros dados que atendem aos interesses de quem faz política em benefício próprio. Faltam médicos, sim! E em todos os lugares, exceto onde há concentração de renda.
Vocês sabem que a formação dos colegas cubanos, portugueses, espanhóis é sólida. Assim como tem conhecimento de que a formação do médico brasileiro é entupida de problemas como uma veia hipertensa. Para muitos estudantes de Medicina, o mundo ideal não teria pacientes. E, se existissem por qualquer eventualidade cósmica, seriam atendidos por robôs.
Os universitários fogem como criança de seringa quando ouvem falar em avaliação em final de curso. E não precisa escapar para as periferias ou para o interior para vivenciarmos barberagens cotidianas dentro de hospitais, consultórios e postos de saúde. Já vi residente diagnosticar hipertensão numa paciente em dois minutos de conversa. Isso sem medir a pressão, além de informado por ela que era portadora de lúpus e com um comunicado da reumatologista. Gênio ou charlatão?
Os médicos estrangeiros não vão tomar o lugar de vocês, bons médicos. Talvez ocupem – em um futuro distante – as vagas de profissionais vagabundos, que dormem em plantões enquanto pacientes mofam, sangram e sentem dor em bancadas frias de salas de esperas dos prontos-socorros. Os estrangeiros talvez fiquem no lugar dos profissionais irresponsáveis, que enterram o juramento de Hipócrates, a cada vez que assinam o ponto e saem à francesa, colaborando para entulhar pessoas que imploram por atendimento.
Sei – seria ingênuo pensar o contrário – que saúde pública não se faz somente com médicos. São necessários de gazes a técnicos de raio-X, de soro a enfermeiros, de esparadrapos a psicólogos, de macas e leitos a auxiliares de enfermagem. Saúde pública não se faz somente com boa vontade. Mas saúde pública também se faz com humanidade.
O que as regiões distantes do país precisam, assim como as periferias, é de humanidade. De gente que goste de gente! Até para que se possa cobrar – e insuflar os pacientes – os bandidos de gravata e mandato que costumam embolsar o dinheiro da gaze, soro e macas.
Vocês, médicos, não podem perder a oportunidade de desembaraçar o modelo de saúde atual. Vivemos um momento político favorável, capítulo que gera temor aos assaltantes burocratas. As ruas não mudam a mentalidade – inclusive porque falta de caráter caminha até o túmulo - , mas a classe política agiu em causa pública. Não importa se a seringa se aproximou da bunda. É preciso curar a doença.
A chegada dos médicos cubanos escancarou o isolamento da classe médica. Duvidem de suas lideranças. Reflitam se elas realmente agem pela coletividade ou se padecem da síndrome de pequeno poder. Vocês sabem que a relação com seus pacientes – e o bem estar deles – é o que os mantém vivos. E vocês, também.
Todos nós temos histórias com médicos. Boas e ruins. Cansei de ser atendido por especialistas em viroses. Ou escravos de exames. Ou profissionais de mãos amputadas porque nunca as vi tocar em pacientes. E todos estes sujeitos falavam português, eram supostamente bem formados, arrotavam uma elitização em suas roupas, carros do ano e viagens de férias.
Conheci, em contrapartida, médicos que se preocupam com o humano, sem o olho no relógio, sem os ouvidos na sala de espera, sem os dedos na calculadora das relações monetárias. Nunca pedi por caridade. Apenas me lembro de gente como Hélio, Arlindo, Ismar e Patrícia, pessoas que doaram o tempo justo e suficiente para compreender o que se passava na vida de alguém que se sentou à frente deles. Como o médico de um velho amigo, que telefona para ele para perguntar sobre o almoço. Afinal, seu paciente sofre de diabetes.
Bons médicos, não caiam de joelhos diante do tecnicismo. Não somos máquinas que andam e respiram, movidas a sangue, tecidos e órgãos. Somos humanos, independentemente de onde moramos e de quanto temos em nossas contas bancárias. E desejamos ser atendidos por pessoas que escolheram se dedicar às outras, falando português, espanhol, aramaico ou simplesmente caladas.
Bons médicos, não rejeitem quem quer fazer saúde pública. E cuidem de seus colegas que engolem as pílulas do corporativismo e da politicagem rasteira para vomitar intolerância e presunção. Estes, sim, estão doentes e não sabem.