A Universidade de São Paulo se transformou no centro da educação brasileira. Das socialites aos estudantes, dos políticos aos jornalistas, dos com-ar-condicionado aos sem-nada, muitos resolveram incluir a USP na agenda, ainda que não a conheçam, ainda que não a dimensionem dentro do sistema educacional brasileiro.
Com apoio de parte da imprensa, praticante do jornalismo “copia e cola”, pronta para vomitar as versões mais conservadoras ou elitistas, a ocupação da reitoria por universitários se transformou em um circo com uma lona maior do que o esperado. Mas o resultado nos conduziu ao mesmo endereço: a esquina onde a desinformação e o preconceito se encontram.
Estudantes e policiais militares serviram como canais que carregam sintomas de uma sociedade doente, cega como grupo e manca como consciência coletiva. Os estudantes mal são ouvidos. Ouvir com orelhas tortas não é escutar. As premissas indicam que todos ali são maconheiros e filhinhos de papai, frutos de um sistema que privilegia o topo da pirâmide em detrimento da base sócio-econômica.
É claro que muitos universitários se lambuzam com leituras teóricas em diagonal, o que os leva a crer na possibilidade de promover uma revolução sem contexto, como se estivessem congelados na década de 60. No entanto, isso não condena os estudantes que compreendem a natureza ética e social de seus papéis e, acima de tudo, percebem o quanto falta senso de coletividade no meio acadêmico, por vezes afogado em mesquinharias científicas, de costas para o mundo além dos muros e das grades.
Soa irresponsável associar como questão absoluta a vida universitária e o tráfico de drogas. O consumo não representa prerrogativa ou exclusividade do meio universitário. O assunto é questão de saúde pública e permeia todos os segmentos sociais. Associar vida estudantil à compra e venda de drogas lícitas e ilícitas é de um reducionismo ofensivo, máscara de cínicos.
Outro sintoma de uma sociedade fora do eixo é perceber como se distorce o papel e os limites da Polícia Militar. Via de regra, a sociedade teme a polícia e a associa a comportamentos irregulares. Só que, quando precisa de alguém para fazer a faxina indesejável, o mesmo grupo corre para bajular a instituição policial. Na ocupação da reitoria da USP, parte da sociedade – da boca miúda aos gritos histéricos – defendeu que os policiais batessem nos universitários. Que abusassem da autoridade e da violência, tão criticadas na mesa de chá e vibrantes na pele do Capitão Nascimento.
O autoritarismo e a intolerância se misturam com a patrulha do politicamente correto, escravo do pensamento único. A tradução é varrer dos olhos quem pensa ou se manifesta fora do padrão. É marginalizar o alheio, sem direito à defesa ou à voz de reivindicação.
A ocupação do prédio da reitoria da USP, somada aos conflitos com a PM, além dos protestos da última semana importam menos diante de um cenário onde prevalecem a ausência de diálogo e de poder de escuta. Vence o prazer de ouvir os próprios grunhidos de truculência, mesmo que desinformados, superficiais e fragmentados. Neste sentido, PM é guarda de patrimônio, jamais de gente, independentemente da conta bancária.
Alguém se lembrou de aproveitar o calor dos fatos e discutir o sistema universitário, a violência na USP ou a educação brasileira, excludente e formadora de castas? São enredos que não animam a sala de jantar.
terça-feira, 15 de novembro de 2011
sexta-feira, 14 de outubro de 2011
O que o diploma não dá
A educação recebeu uma missão tão inglória quanto improvável. Virou o exorcista que nos salva de todos os demônios. A resposta para todos os problemas sociais, que mascara as feridas na infra-estrutura em diversas áreas, como saúde, transporte e segurança pública.
Dentro da fragilidade deste discurso, tão comum na boca de políticos, empresários e até educadores, teóricos de carteirinha ou não, o diploma ressuscita como o cavaleiro que cravará a espada no peito do dragão da ignorância, da miséria e da exclusão. A banalização chega ao nível de que qualquer canudo serve. A iniciação do aprendiz pode ser via presencial, virtual, em instituição de primeiro time ou na quitanda do seu Joaquim.
Ter diploma seria, pelas promessas de campanha, o passaporte para degraus mais altos na montanha da desigualdade social. As armas para sobreviver à travessia seriam conteúdos em grande quantidade, sem conexão entre eles, informações com serventia imediata e conhecimento que ganha importância se for aplicável em tarefas, nunca em reflexão.
Sempre fomos escravos do diploma como instrumento de poder. O papel servia para diferenciar os doutores dos seres humanos mortais. Estabelecia status e acesso a círculos sociais de chave restrita. Esta visão medíocre ainda persiste dentro de muitos segmentos, inclusive na universidade.
O problema mudou, mas a natureza dele não. A expansão do ensino superior levou o diploma para camadas sociais que jamais poderiam sonhar com ele. A ilusão se manifesta quando a aquisição do diploma representa o final da linha. É o momento em que se percebe o engodo após anos de gastos e privações. O mundo lá fora não se adequou ao papel recebido em festa. Em muitos casos, ignora a essência do documento e exige aquilo que o dono dele não pode proporcionar.
Diante de uma educação cada vez mais tecnicista, as deficiências e as limitações simbolizadas pelo diploma soam mais cristalinas. E parte delas não está na estrutura da casa do saber; aliás, denominação arrogante que indica falsa exclusividade.
O diploma jamais trará decência e caráter. Nada mais frágil do que supor que horas em sala de aula vão parir uma mudança de valores. Pelo contrário, é muito mais comum reproduzir o modelo desigual e cruel do lado de fora dos muros. Parece, para muita gente, aceitável e normal vomitar arrogância e frieza, absorvidas de quem deveria combatê-la ou reforçada pelo distanciamento do mundo.
O diploma jamais entregará sensibilidade. Olhar para o outro, compreendê-lo, aceitá-lo e respeitá-lo pelas semelhanças, mas principalmente pelas diferenças, não é uma lição que pode ser ensinada por disciplina alguma. Não está nos teóricos, muito menos nas correntes de pensamento que unem e rechaçam outras ideias. A sensibilidade reside em nós, que se manifesta nas relações entre as pessoas, independentemente da posição e do número de certificados pregados nas paredes da sala.
O diploma jamais dará poesia de presente. Perceber-se dentro de um cenário e buscar em seus detalhes o combustível para prosseguir é consequência dos requisitos anteriores. Como entender o que está além da janela se não se vê a própria casa? Como entender a importância das frutas do quintal se o alimento é a cobiça sobre o que não existe ou só existe sob forma de inveja?
Não me entenda mal. O diploma é crucial e merece defesa, até porque o problema não parte dele. A enfermidade está impregnada nos seres que o enxergam como passe livre para o poder. Que, acima de tudo, o utilizam para separar, para transformar pessoas em robôs ou gado.
Neste sentido, o diploma é sem cor, gosto ou cheiro, se a educação não servir para abrir a porta e libertar, desde que o viajante tenha a consciência de que pode escolher a rota e refletir continuamente sobre outros caminhos, inclusive suspender a viagem e se lambuzar de prazer na inércia.
Dentro da fragilidade deste discurso, tão comum na boca de políticos, empresários e até educadores, teóricos de carteirinha ou não, o diploma ressuscita como o cavaleiro que cravará a espada no peito do dragão da ignorância, da miséria e da exclusão. A banalização chega ao nível de que qualquer canudo serve. A iniciação do aprendiz pode ser via presencial, virtual, em instituição de primeiro time ou na quitanda do seu Joaquim.
Ter diploma seria, pelas promessas de campanha, o passaporte para degraus mais altos na montanha da desigualdade social. As armas para sobreviver à travessia seriam conteúdos em grande quantidade, sem conexão entre eles, informações com serventia imediata e conhecimento que ganha importância se for aplicável em tarefas, nunca em reflexão.
Sempre fomos escravos do diploma como instrumento de poder. O papel servia para diferenciar os doutores dos seres humanos mortais. Estabelecia status e acesso a círculos sociais de chave restrita. Esta visão medíocre ainda persiste dentro de muitos segmentos, inclusive na universidade.
O problema mudou, mas a natureza dele não. A expansão do ensino superior levou o diploma para camadas sociais que jamais poderiam sonhar com ele. A ilusão se manifesta quando a aquisição do diploma representa o final da linha. É o momento em que se percebe o engodo após anos de gastos e privações. O mundo lá fora não se adequou ao papel recebido em festa. Em muitos casos, ignora a essência do documento e exige aquilo que o dono dele não pode proporcionar.
Diante de uma educação cada vez mais tecnicista, as deficiências e as limitações simbolizadas pelo diploma soam mais cristalinas. E parte delas não está na estrutura da casa do saber; aliás, denominação arrogante que indica falsa exclusividade.
O diploma jamais trará decência e caráter. Nada mais frágil do que supor que horas em sala de aula vão parir uma mudança de valores. Pelo contrário, é muito mais comum reproduzir o modelo desigual e cruel do lado de fora dos muros. Parece, para muita gente, aceitável e normal vomitar arrogância e frieza, absorvidas de quem deveria combatê-la ou reforçada pelo distanciamento do mundo.
O diploma jamais entregará sensibilidade. Olhar para o outro, compreendê-lo, aceitá-lo e respeitá-lo pelas semelhanças, mas principalmente pelas diferenças, não é uma lição que pode ser ensinada por disciplina alguma. Não está nos teóricos, muito menos nas correntes de pensamento que unem e rechaçam outras ideias. A sensibilidade reside em nós, que se manifesta nas relações entre as pessoas, independentemente da posição e do número de certificados pregados nas paredes da sala.
O diploma jamais dará poesia de presente. Perceber-se dentro de um cenário e buscar em seus detalhes o combustível para prosseguir é consequência dos requisitos anteriores. Como entender o que está além da janela se não se vê a própria casa? Como entender a importância das frutas do quintal se o alimento é a cobiça sobre o que não existe ou só existe sob forma de inveja?
Não me entenda mal. O diploma é crucial e merece defesa, até porque o problema não parte dele. A enfermidade está impregnada nos seres que o enxergam como passe livre para o poder. Que, acima de tudo, o utilizam para separar, para transformar pessoas em robôs ou gado.
Neste sentido, o diploma é sem cor, gosto ou cheiro, se a educação não servir para abrir a porta e libertar, desde que o viajante tenha a consciência de que pode escolher a rota e refletir continuamente sobre outros caminhos, inclusive suspender a viagem e se lambuzar de prazer na inércia.
domingo, 11 de setembro de 2011
Adeus ao filósofo
Daniel Gonzalez era admirável como escultor. Do Hipupiara ao surfista, a sensibilidade artística se perpetua em peças de fibra, espalhadas por shoppings, prédios e praças em Santos e São Vicente. Na TV, suas obras ressuscitam em Mulheres de Areia, nas mãos do personagem Tonho da Lua. Herança do pai, Serafim, que esculpiu na areia na primeira versão da novela.
Daniel Gonzalez era sensato como entrevistado. Tivemos várias conversas ao longo da minha vida profissional. Ele jamais recusava uma troca de ideias, seja em questões pontuais da cultura, seja quando pedia a ele que olhasse o mundo pela perspectiva filosófica.
Mas Daniel alterou, em definitivo, minha mentalidade quando foi meu professor. Eu tinha 17 anos e atravessava aquela fase de transição do Ensino Médio para a universidade. Descobertas e tentações no mesmo endereço, o extinto prédio da Facos, no bairro da Pompéia.
A missão de Daniel era ingrata: ensinar Filosofia às sextas-feiras, no último horário, tendo como adversária a convidativa vida noturna que cerca a faculdade. Além disso, Filosofia entrava no rol das disciplinas malditas, marcadas pela baixa popularidade entre os alunos.
No primeiro dia de aula, qualquer professor costuma estabelecer as regras de avaliação e, dependendo do caso, de convivência. Daniel ditou apenas uma norma: a ausência de todas as regras. Nada em tom professoral. Nada de anarquia no sentido pejorativo do termo. Nada de inversão ou inexistência de papéis. O relacionamento seria horizontal, com Daniel na função de faroleiro, para iluminar a estrada que se desenhava à frente.
Todos estavam aprovados. Não haveria provas ou faltas. Ficariam os alunos interessados em pensar, refletir sobre sentimentos e ações humanas. Filosofia era, a partir daquele momento, compromisso. Um pacto com o pensamento, solto do maior número possível de convenções sociais. A pauta de cada noite ficava sob responsabilidade dos convidados e tinha como alicerce fatos ou fenômenos que provocaram incômodos durante a semana.
A postura daquele filósofo era diferente, mas - acima de tudo – ultrapassava a retórica e se mostrava coerente com a forma de andar, sem rigidez, e a aparência dele. Cabelo desarrumado e barba por fazer. Camisa de botões para fora da calça; aliás, cheia de bolsos como ditava a moda surf do início dos anos 90. E pés pragmáticos, que vestiam um tênis modelo iate, sem cadarços. O pacote ficava completo com o cigarro aceso na mão direita, durante a aula, o que seria uma heresia nos tempos do politicamente correto.
Aquele professor-filósofo garantiu por palavras e ações a presença deste calouro às sextas-feiras. Apenas 20% dos estudantes compareciam, o que tornava os encontros quase particulares. Únicos.
Doze anos depois de conhecê-lo, tornei-me professor. A morte do filósofo Daniel Gonzalez foi incapaz de encerrar a aula. Continuarei a me lembrar dele quando comento com alunos sobre grandes professores. Mas a gratidão está em absorver seus ensinamentos simbólicos, traduzidos no amor pela reflexão sobre e com seres humanos.
quarta-feira, 6 de julho de 2011
O grito dos professores
Os professores gritam por socorro. As reclamações saltaram os muros e as grades das escolas e se transformaram em placas, cartazes e sola de sapato gasta nas ruas. Com as marchas em moda, o professorado resolveu, em várias partes do país, expor a própria condição, num ato de desespero, que deseja a mobilização da sociedade.
No Rio de Janeiro, os professores fizeram greve na rede estadual. Em Santa Catarina , protestos contra o Governo, que se recusa a conversar sobre novas condições de trabalho.
É redundante, mas necessário lembrar que os salários dos professores são vergonhosos. A desvalorização da profissão remete ao regime militar há quase 50 anos. Nunca se falou tanto de educação como motor de desenvolvimento, ao mesmo tempo que a contradição do discurso está personificada em profissionais mal pagos e com formação deficiente. Justamente quem deveria colocar o motor para funcionar na potência máxima.
Na Baixada Santista, a condição do professorado também se mostra absolutamente discutível. Santos, a principal cidade da região, enfrenta uma crise de mão-de-obra na rede municipal. O déficit é, no mínimo, de 230 vagas, a ponto de a secretaria dar a partida em um processo de convocação de emergência.
A falta de professores em Santos se deve, entre outras razões, à fragilidade dos salários. Um docente recebe, por hora-aula, de R$ 9 a R$ 10. Muitos profissionais migraram para Cubatão e Guarujá. Encaram viagem maior ao local de trabalho porque a remuneração por lá é melhor. Praia Grande, por sua vez, concederá reajuste de 32% em 15 de julho.
O Ministério da Educação acena com um déficit de 200 mil profissionais no país. A situação é mais grave justamente nos endereços em que os indicadores são mais baixos. Nas regiões Norte e Nordeste, professores entraram na lista de espécies em extinção. Nos grandes centros, a escassez é cristalina nos bairros periféricos, não importa a rede.
Em Santos, por exemplo, é rotineira a ausência de docentes no Caruara, na Área Continental. Até no Gonzaga, bairro nobre, vagas estavam abertas – para mais de uma disciplina – com o ano letivo em andamento.
O protesto dos professores nas ruas (ou via imprensa) é legítimo não apenas pelo aspecto democrático, como forma de contestação ao poder vigente, mas para indicar à sociedade civil como a categoria não tem condições de carregar nas costas o fardo de empurrar, de maneira solitária e idealizada, a educação ladeira acima.
Ser professor não tem relação alguma com sacerdócio ou atividade voluntária. É uma atividade profissional como qualquer outra, que merece um suporte cultural decente e remuneração compatível com os riscos e responsabilidades do ofício. Caso contrário, tende a ser multiplicar o semblante desapontado de alunos universitários que preenchem as cadeiras dos cursos de licenciaturas, numa demonstração de que muitos deles pensam em desistir da profissão antes da ultrapassar os muros da escola.
Infelizmente, o grito está restrito aos professores da rede pública. Os colegas de profissão das escolas privadas, a maioria de pequeno porte, continuam amordaçados. Sob o risco de desemprego, choram em silêncio, no canto da sala de aula, como se pensassem naquilo que poderiam fazer para engrossar o coro dos desvalidos.
Observação: A secretária de Educação de Santos, Suely Maia, concedeu, no final de junho, entrevista ao jornal Boqnews. As declarações dela ajudam a entender o problema.
sexta-feira, 20 de maio de 2011
Perdas e ganhos
— Professor, suas aulas mudaram o almoço de domingo na minha casa! Meus filhos, genros, noras e netos se assustaram com minhas opiniões, mas passaram a me ouvir com mais freqüência.
Uma vez por semana, me aproximo do que considero o modelo ideal de educação, com pouca burocracia e livre de pormenores que glorificam e sacramentam o pequeno poder. Dou aulas, desde o ano passado, na Universidade Aberta da Terceira Idade (UATI), projeto que se renova há duas décadas na Universidade Católica de Santos.
Uma tarde por semana, aprendo com mais de 40 alunos, 90% mulheres, que dividem comigo suas experiências, histórias, exemplos, erros, dúvidas e angústias. Até as certezas e verdades absolutas, por vezes colocadas em xeque pelo colega ao lado, servem de ensinamento.
As aulas flertam com a pureza e com o idealismo da educação. Não há provas. Não existem notas. Todos estão livres do estigma da reprovação. Faltas também não reprovam. O conteúdo é flexível, conforme os interesses dos alunos a partir de um diálogo com o professor. Conhecimento é reflexão, jamais escravo do utilitarismo ou da mecânica robotizada de apertar botões.
As reações dos alunos, com média de idade acima dos 65 anos, é imediata. Se não concordam com algum exemplo ou conceito, expõem suas opiniões sem impor argumentos como dogma. Não temem a patrulha alheia, comum ao sistema educacional, que esmaga a palavra dissonante e cristaliza a falsa autoridade absoluta do professor. Se eles gostam do que ouviram, são acolhedores e agradecem pela aula recebida. Muitos alunos, inclusive, prolongam o diálogo pelos corredores da universidade.
Ali, consigo perceber uma luta involuntária, mas eficiente, contra dois dos maiores males que assolam o meio acadêmico: a vaidade e a soberba. Ambas resultam na contínua confirmação de teses e opiniões, postura que consiste na surdez diante da voz do outro. O interesse maior é se deliciar com o som das próprias palavras.
São estudantes que resolveram se sentar diante de professores - alguns poderiam ser filhos - para compartilhar e usufruir de novas visões que os levem a compreender e se proteger do mundo que, acelerado, teima em querer atropelá-los. São pessoas profundamente interessadas na vida, que por vezes é arrancada deles como se o corpo enfraquecido paralisasse a mente, impossibilitada de seguir adiante.
As terças-feiras, infelizmente, também se transformaram em dias de melancolia, como as contradições que permeiam o caminho de todos nós, seres tão pretensiosos quanto frágeis. No último mês, duas alunas deixaram o curso. Ambas faleceram, uma delas no Dia das Mães.
Eram mulheres de posições fortes, dispostas a abraçar a reflexão e o debate. À moda delas, sabiam reconhecer um ponto de vista discordante, ainda que relutassem em aceitar o argumento alheio. Mas jamais faziam da crítica um exercício cruel da intolerância.
Dar aulas às terças-feiras à tarde me tornou diferente. Se melhor professor, não sei. Não houve premeditação dos envolvidos, mas a cumplicidade se constrói a cada semana a partir do interesse pelo outro e, principalmente, pelo interesse conjunto pela vida humana. É a minha forma de desejar a educação, para todas as circunstâncias, endereços e culturas.
Uma vez por semana, me aproximo do que considero o modelo ideal de educação, com pouca burocracia e livre de pormenores que glorificam e sacramentam o pequeno poder. Dou aulas, desde o ano passado, na Universidade Aberta da Terceira Idade (UATI), projeto que se renova há duas décadas na Universidade Católica de Santos.
Uma tarde por semana, aprendo com mais de 40 alunos, 90% mulheres, que dividem comigo suas experiências, histórias, exemplos, erros, dúvidas e angústias. Até as certezas e verdades absolutas, por vezes colocadas em xeque pelo colega ao lado, servem de ensinamento.
As aulas flertam com a pureza e com o idealismo da educação. Não há provas. Não existem notas. Todos estão livres do estigma da reprovação. Faltas também não reprovam. O conteúdo é flexível, conforme os interesses dos alunos a partir de um diálogo com o professor. Conhecimento é reflexão, jamais escravo do utilitarismo ou da mecânica robotizada de apertar botões.
As reações dos alunos, com média de idade acima dos 65 anos, é imediata. Se não concordam com algum exemplo ou conceito, expõem suas opiniões sem impor argumentos como dogma. Não temem a patrulha alheia, comum ao sistema educacional, que esmaga a palavra dissonante e cristaliza a falsa autoridade absoluta do professor. Se eles gostam do que ouviram, são acolhedores e agradecem pela aula recebida. Muitos alunos, inclusive, prolongam o diálogo pelos corredores da universidade.
Ali, consigo perceber uma luta involuntária, mas eficiente, contra dois dos maiores males que assolam o meio acadêmico: a vaidade e a soberba. Ambas resultam na contínua confirmação de teses e opiniões, postura que consiste na surdez diante da voz do outro. O interesse maior é se deliciar com o som das próprias palavras.
São estudantes que resolveram se sentar diante de professores - alguns poderiam ser filhos - para compartilhar e usufruir de novas visões que os levem a compreender e se proteger do mundo que, acelerado, teima em querer atropelá-los. São pessoas profundamente interessadas na vida, que por vezes é arrancada deles como se o corpo enfraquecido paralisasse a mente, impossibilitada de seguir adiante.
As terças-feiras, infelizmente, também se transformaram em dias de melancolia, como as contradições que permeiam o caminho de todos nós, seres tão pretensiosos quanto frágeis. No último mês, duas alunas deixaram o curso. Ambas faleceram, uma delas no Dia das Mães.
Eram mulheres de posições fortes, dispostas a abraçar a reflexão e o debate. À moda delas, sabiam reconhecer um ponto de vista discordante, ainda que relutassem em aceitar o argumento alheio. Mas jamais faziam da crítica um exercício cruel da intolerância.
Dar aulas às terças-feiras à tarde me tornou diferente. Se melhor professor, não sei. Não houve premeditação dos envolvidos, mas a cumplicidade se constrói a cada semana a partir do interesse pelo outro e, principalmente, pelo interesse conjunto pela vida humana. É a minha forma de desejar a educação, para todas as circunstâncias, endereços e culturas.
sexta-feira, 25 de março de 2011
Filme debate condição feminina
Por Cidinha Santos
O filme Domésticas, dirigido por Fernando Meireles, será exibido neste sábado, às 16 horas, na Estação da Cidadania, em Santos. O evento é uma iniciativa do Curso de Cultura Afrobrasileira em homenagem ao mês em que se comemora o Dia Internacional de Luta da Mulher. A apresentação é gratuita.
O cine debate tem como objetivo abordar o universo das empregadas domésticas pela ótica do trabalho e a situação da mulher negra nesse mercado, que sempre foi e tem sido ocupado por ela. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), em 2009, no Brasil, a quantidade de trabalhadoras domésticas com registro em carteira profissional era mais de 7 milhões. Isso porque houve um crescimento de nove por cento, em relação ao ano anterior. No entanto, as mulheres ainda são maioria entre as/os trabalhadoras/os domésticas/os sem carteira assinada.
Para Augusta França de Oliveira, militante do movimento de mulheres negras e coordenadora do Núcleo Pai Felipe, da Rede de Pré-vestibulares comunitários e Educação de Afrodescendentes e Carentes (Educafro) na história de desigualdade, discriminação e direitos relacionados ao trabalho da mulher. “É preciso fazer o corte racial nesta discussão com o olhar voltado para o período colonial, de modo a resgatar a história do trabalho da mulher negra escravizada.”
Após a apresentação haverá debate sobre o tema, com a participação das professoras e dos professores do Núcleo de Estudos “Quilombos Urbanos”.
Núcleo de Estudos Quilombos Urbanos – Foi criado em 2009 e é constituído por um grupo de pessoas que vem acumulando conhecimento, estudos e materiais de pesquisas sobre a temática da população negra, sua história e raiz.
Tem como objetivo a discussão de questões relevantes sobre o negro no universo cultural brasileiro, enfatizando a historiografia em torno de temáticas como história do povo negro; africanidades; o papel da escola como local de transmissão de conhecimento, de preservação da condição de vida e também como o de ação transformadora e reflexiva da condição humana; a Lei 10.639/03 (que trata do ensino de história da África e dos afrodescendentes e indígenas nas escolas); a condição da mulher negra e as relações de poder e de cidadania.
A Estação da Cidadania fica na avenida Ana Costa, 340, no Campo Grande, em Santos.
segunda-feira, 21 de março de 2011
Entre os muros, vítimas e carrascos
Sentado atrás da mesa, o professor segue o ritual de final de ano: perguntar aos alunos sobre o que aprenderam no período. As perguntas são mecânicas, à caça de reações previsíveis. No máximo, a falsa reação de surpresa. As respostas parecem variadas, de Ciências a Matemática, mas gravitam em torno de temas específicos, de interesse particular do aluno, que o professor não se interessa em detalhar.
Os questionamentos terminam ao toque do sinal. O professor François Marin se dá por satisfeito, termina a aula e – por convenção – deseja boas férias. A última a sair da sala é uma garota negra, descendente de imigrantes africanos, calada, invisível, a aluna perfeita. Seria a estudante perfeita pela disciplina, mas jamais será lembrada, pois cumpre o destino de irrelevância traçado pela escola.
O professor se esquece de perguntar o que ela havia aprendido. A aluna o aborda e diz, de maneira direta:
— Eu não aprendi nada.
O professor, surpreso, insiste no argumento de que a garota deve ter aprendido algo. E recebe o diagnóstico – com ares de definitivo, incontestável:
— Eu não entendo o que estamos fazendo aqui.
O diálogo é, para mim, a síntese da relação entre professores e alunos de uma escola pública francesa, retratada no filme “Entre os muros da escola”, direção de Laurent Cantet.
O filme apresenta, de saída, um grande mérito: não repetir o olhar norte-americano das produções sobre escola. O olhar no qual um professor representa o herói capaz de modificar o cotidiano de todos os alunos, como se fosse um processo natural e irreversível, sem choques. Neste filmes, alunos e professor não tem particularidades, somente desejos coletivos em conjunção com o sonho americano. E ainda não o alcançaram pela origem estrangeira ou por pertencerem à outra etnia, mas serão preparados pelo professor para o “American Way of Life”.
“Entre os muros”, nome original francês, indica como a escola – em muitos endereços – é a reprodução dos preconceitos, das segregações, das disputas mesquinhas de poder e da repressão social do mundo além da sala de aula. Professores e alunos, via de regra, são espécies diferentes e se encaram como tal. Possuem características próprias, valores diferentes e espírito de corpo que não inclui a solidariedade perante a outra espécie.
Unem-se somente por interesses políticos, quando ambos são prejudicados pelo sistema escolar ou quando precisam da aliança para solucionar uma questão específica. Uma relação de cinismo, de ética de interesses como exemplos comuns ao cotidiano.
Se o filme fosse dublado em português, talvez enganasse o espectador menos avisado. A escola brasileira não é apenas cercada por muros como ação de segurança pública. Os muros ressaltam os papéis: alunos, internos; professores, carcereiros; e gestores, a direção da cadeia.
Todos os atores envolvidos se comunicam somente quando necessário, a partir do script previsto pela hierarquia. Na rotina de uma unidade escolar, uns se queixam dos outros, e todos mantém o pacto de espinafrar o sistema. Prevalece o comodismo, já que o sistema é distante, impessoal, a entidade abstrata.
Indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro, “Entre os muros da escola” é uma obra que não permite a torcida. Não há bons e maus. Impossível adotar a visão maniqueísta das relações entre os personagens, com o risco de enfiarmos a cabeça no buraco da ilusão. O espectador que tem ligações diretas com a educação escolar pode ficar confuso. Professores, principalmente. Se isso acontecer, a provocação do diretor Cantet se materializou além da tela.
Professores foram alunos. E muitos se esquecem desta história. O filme faz questão de nos lembrar quase todo o tempo, exceto nas discussões entre os docentes na sala dos professores. Não é permitida a identificação rápida e indolor. O filme nos joga de um lado para outro, como se mandasse o recado: não se posicione! Você é ambos. Os erros também pertencem a você. Se os cometeu, prepare-se para sofrer as tentações das saídas inócuas e posteriormente dolorosas. A garantia de sobrevida ao modelo.
“Entre os muros da escola” esfrega no rosto do homem europeu o conflito contemporâneo da imigração. Na classe de François Marin, os alunos são filhos de imigrantes. Muitos são franceses de nascimento, e estrangeiros pela cultura. Neste ponto, Marin não os compreende. O professor – cujo sobrenome é traduzido por marinheiro – ressuscita o símbolo do colonizador europeu, incapaz de perceber que o outro é o rosto da diferença cultural, jamais a inferioridade por causa da origem.
O professor ensina francês, a língua da Metrópole, o que aumenta o distanciamento dos alunos. Ele tenta o diálogo, ora por aproximação, ora para reforçar o próprio poder, por meio da arrogância de quem vomita superioridade. François seria melhor por ser nativo e pelo papel que interpreta na escola.
Um exemplo é a aluna Esmeralda, que o questiona com freqüência. Quando ela diz que leu “A República”, de Platão, o professor não acredita, e também ironiza. Como uma aluna considera chatos os livros escolhidos e ainda por cima lê uma obra que não poderia, em tese, entender?
Nas escolas de periferia de São Paulo, será que não existem professores que desprezam – por exemplo – a cultura dos migrantes nordestinos? Políticas públicas de educação são comprometidas com a cultura popular ou propagam o poder da erudição? A escola sempre abre as portas para movimentos culturais, como o hip-hop?
O filme, embora escolha o ambiente mantido pelo Estado, permite olhar para as escolas privadas brasileiras, com adaptações. As escolas particulares não são exatamente ilhas de excelência. Menos diversa do que a pública, a escola privada também é caixa de ressonância de preconceitos. É evidente que ali se sobrepõe o olhar sócio-econômico, no qual vale a conta bancária dos pais do “cliente-aluno”, nesta ordem de importância. Professores são personal-teachers, que podem ser trocados no final de ano, como um boneco da moda.
O filme, premiado no Festival de Cannes, é baseado em livro de mesmo nome. O autor, François Bégaudeau, interpreta o professor. Os alunos não são atores profissionais. Muitos dos diálogos são improvisações, que elevam o grau de naturalidade e permitem o flerte com a escola “real”.
“Entre os muros da escola” é o nosso espelho, que indica os defeitos e as cicatrizes de todos os envolvidos. Indica a intolerância coletiva e a ditadura dos padrões de comportamentos. Analisa como o processo educacional repele os diferentes, cerceia a liberdade e valoriza os iguais. Iguais por serem submissos. Iguais por aceitarem o enquadramento, mesmo que sua subjetividade seja um detalhe.
Neste caminho, há o aluno Carl, descendente de antilhanos, que se vê como caribenho, apesar de nascido na França. Carl, visto como problema em outras unidades, não se importa mais com as decisões da escola. Passa o tempo dentro dela, com fantasias além dos muros.
A escola de François pode permitir o cinismo do espectador, distante pela língua, distante por um oceano cultural. Mas o espaço cai a zero quando olhamos para os conflitos dos personagens, para a desilusão dos professores, para o deslocamento dos alunos, para a ausência de conexão entre as partes. Escolher um lado é esconder-se atrás do muro. É mantê-lo em pé, sólido como as paredes que transformam as escolas em prisões ou castelos.
Observar por ambos os papéis (professor e aluno) traz a luz a culpa e a resignação. Os muros não escondem as vítimas. Os muros geram sombras, mas não protegem os carrascos e suas foices. Vítimas e carrascos estão nos dois lados dos muros. Não é preciso olhar de cima, pois eles não se deram conta do que estão fazendo ali!
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