Sentado atrás da mesa, o professor segue o ritual de final de ano: perguntar aos alunos sobre o que aprenderam no período. As perguntas são mecânicas, à caça de reações previsíveis. No máximo, a falsa reação de surpresa. As respostas parecem variadas, de Ciências a Matemática, mas gravitam em torno de temas específicos, de interesse particular do aluno, que o professor não se interessa em detalhar.
Os questionamentos terminam ao toque do sinal. O professor François Marin se dá por satisfeito, termina a aula e – por convenção – deseja boas férias. A última a sair da sala é uma garota negra, descendente de imigrantes africanos, calada, invisível, a aluna perfeita. Seria a estudante perfeita pela disciplina, mas jamais será lembrada, pois cumpre o destino de irrelevância traçado pela escola.
O professor se esquece de perguntar o que ela havia aprendido. A aluna o aborda e diz, de maneira direta:
— Eu não aprendi nada.
O professor, surpreso, insiste no argumento de que a garota deve ter aprendido algo. E recebe o diagnóstico – com ares de definitivo, incontestável:
— Eu não entendo o que estamos fazendo aqui.
O diálogo é, para mim, a síntese da relação entre professores e alunos de uma escola pública francesa, retratada no filme “Entre os muros da escola”, direção de Laurent Cantet.
O filme apresenta, de saída, um grande mérito: não repetir o olhar norte-americano das produções sobre escola. O olhar no qual um professor representa o herói capaz de modificar o cotidiano de todos os alunos, como se fosse um processo natural e irreversível, sem choques. Neste filmes, alunos e professor não tem particularidades, somente desejos coletivos em conjunção com o sonho americano. E ainda não o alcançaram pela origem estrangeira ou por pertencerem à outra etnia, mas serão preparados pelo professor para o “American Way of Life”.
“Entre os muros”, nome original francês, indica como a escola – em muitos endereços – é a reprodução dos preconceitos, das segregações, das disputas mesquinhas de poder e da repressão social do mundo além da sala de aula. Professores e alunos, via de regra, são espécies diferentes e se encaram como tal. Possuem características próprias, valores diferentes e espírito de corpo que não inclui a solidariedade perante a outra espécie.
Unem-se somente por interesses políticos, quando ambos são prejudicados pelo sistema escolar ou quando precisam da aliança para solucionar uma questão específica. Uma relação de cinismo, de ética de interesses como exemplos comuns ao cotidiano.
Se o filme fosse dublado em português, talvez enganasse o espectador menos avisado. A escola brasileira não é apenas cercada por muros como ação de segurança pública. Os muros ressaltam os papéis: alunos, internos; professores, carcereiros; e gestores, a direção da cadeia.
Todos os atores envolvidos se comunicam somente quando necessário, a partir do script previsto pela hierarquia. Na rotina de uma unidade escolar, uns se queixam dos outros, e todos mantém o pacto de espinafrar o sistema. Prevalece o comodismo, já que o sistema é distante, impessoal, a entidade abstrata.
Indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro, “Entre os muros da escola” é uma obra que não permite a torcida. Não há bons e maus. Impossível adotar a visão maniqueísta das relações entre os personagens, com o risco de enfiarmos a cabeça no buraco da ilusão. O espectador que tem ligações diretas com a educação escolar pode ficar confuso. Professores, principalmente. Se isso acontecer, a provocação do diretor Cantet se materializou além da tela.
Professores foram alunos. E muitos se esquecem desta história. O filme faz questão de nos lembrar quase todo o tempo, exceto nas discussões entre os docentes na sala dos professores. Não é permitida a identificação rápida e indolor. O filme nos joga de um lado para outro, como se mandasse o recado: não se posicione! Você é ambos. Os erros também pertencem a você. Se os cometeu, prepare-se para sofrer as tentações das saídas inócuas e posteriormente dolorosas. A garantia de sobrevida ao modelo.
“Entre os muros da escola” esfrega no rosto do homem europeu o conflito contemporâneo da imigração. Na classe de François Marin, os alunos são filhos de imigrantes. Muitos são franceses de nascimento, e estrangeiros pela cultura. Neste ponto, Marin não os compreende. O professor – cujo sobrenome é traduzido por marinheiro – ressuscita o símbolo do colonizador europeu, incapaz de perceber que o outro é o rosto da diferença cultural, jamais a inferioridade por causa da origem.
O professor ensina francês, a língua da Metrópole, o que aumenta o distanciamento dos alunos. Ele tenta o diálogo, ora por aproximação, ora para reforçar o próprio poder, por meio da arrogância de quem vomita superioridade. François seria melhor por ser nativo e pelo papel que interpreta na escola.
Um exemplo é a aluna Esmeralda, que o questiona com freqüência. Quando ela diz que leu “A República”, de Platão, o professor não acredita, e também ironiza. Como uma aluna considera chatos os livros escolhidos e ainda por cima lê uma obra que não poderia, em tese, entender?
Nas escolas de periferia de São Paulo, será que não existem professores que desprezam – por exemplo – a cultura dos migrantes nordestinos? Políticas públicas de educação são comprometidas com a cultura popular ou propagam o poder da erudição? A escola sempre abre as portas para movimentos culturais, como o hip-hop?
O filme, embora escolha o ambiente mantido pelo Estado, permite olhar para as escolas privadas brasileiras, com adaptações. As escolas particulares não são exatamente ilhas de excelência. Menos diversa do que a pública, a escola privada também é caixa de ressonância de preconceitos. É evidente que ali se sobrepõe o olhar sócio-econômico, no qual vale a conta bancária dos pais do “cliente-aluno”, nesta ordem de importância. Professores são personal-teachers, que podem ser trocados no final de ano, como um boneco da moda.
O filme, premiado no Festival de Cannes, é baseado em livro de mesmo nome. O autor, François Bégaudeau, interpreta o professor. Os alunos não são atores profissionais. Muitos dos diálogos são improvisações, que elevam o grau de naturalidade e permitem o flerte com a escola “real”.
“Entre os muros da escola” é o nosso espelho, que indica os defeitos e as cicatrizes de todos os envolvidos. Indica a intolerância coletiva e a ditadura dos padrões de comportamentos. Analisa como o processo educacional repele os diferentes, cerceia a liberdade e valoriza os iguais. Iguais por serem submissos. Iguais por aceitarem o enquadramento, mesmo que sua subjetividade seja um detalhe.
Neste caminho, há o aluno Carl, descendente de antilhanos, que se vê como caribenho, apesar de nascido na França. Carl, visto como problema em outras unidades, não se importa mais com as decisões da escola. Passa o tempo dentro dela, com fantasias além dos muros.
A escola de François pode permitir o cinismo do espectador, distante pela língua, distante por um oceano cultural. Mas o espaço cai a zero quando olhamos para os conflitos dos personagens, para a desilusão dos professores, para o deslocamento dos alunos, para a ausência de conexão entre as partes. Escolher um lado é esconder-se atrás do muro. É mantê-lo em pé, sólido como as paredes que transformam as escolas em prisões ou castelos.
Observar por ambos os papéis (professor e aluno) traz a luz a culpa e a resignação. Os muros não escondem as vítimas. Os muros geram sombras, mas não protegem os carrascos e suas foices. Vítimas e carrascos estão nos dois lados dos muros. Não é preciso olhar de cima, pois eles não se deram conta do que estão fazendo ali!
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