Daniel Gonzalez era admirável como escultor. Do Hipupiara ao surfista, a sensibilidade artística se perpetua em peças de fibra, espalhadas por shoppings, prédios e praças em Santos e São Vicente. Na TV, suas obras ressuscitam em Mulheres de Areia, nas mãos do personagem Tonho da Lua. Herança do pai, Serafim, que esculpiu na areia na primeira versão da novela.
Daniel Gonzalez era sensato como entrevistado. Tivemos várias conversas ao longo da minha vida profissional. Ele jamais recusava uma troca de ideias, seja em questões pontuais da cultura, seja quando pedia a ele que olhasse o mundo pela perspectiva filosófica.
Mas Daniel alterou, em definitivo, minha mentalidade quando foi meu professor. Eu tinha 17 anos e atravessava aquela fase de transição do Ensino Médio para a universidade. Descobertas e tentações no mesmo endereço, o extinto prédio da Facos, no bairro da Pompéia.
A missão de Daniel era ingrata: ensinar Filosofia às sextas-feiras, no último horário, tendo como adversária a convidativa vida noturna que cerca a faculdade. Além disso, Filosofia entrava no rol das disciplinas malditas, marcadas pela baixa popularidade entre os alunos.
No primeiro dia de aula, qualquer professor costuma estabelecer as regras de avaliação e, dependendo do caso, de convivência. Daniel ditou apenas uma norma: a ausência de todas as regras. Nada em tom professoral. Nada de anarquia no sentido pejorativo do termo. Nada de inversão ou inexistência de papéis. O relacionamento seria horizontal, com Daniel na função de faroleiro, para iluminar a estrada que se desenhava à frente.
Todos estavam aprovados. Não haveria provas ou faltas. Ficariam os alunos interessados em pensar, refletir sobre sentimentos e ações humanas. Filosofia era, a partir daquele momento, compromisso. Um pacto com o pensamento, solto do maior número possível de convenções sociais. A pauta de cada noite ficava sob responsabilidade dos convidados e tinha como alicerce fatos ou fenômenos que provocaram incômodos durante a semana.
A postura daquele filósofo era diferente, mas - acima de tudo – ultrapassava a retórica e se mostrava coerente com a forma de andar, sem rigidez, e a aparência dele. Cabelo desarrumado e barba por fazer. Camisa de botões para fora da calça; aliás, cheia de bolsos como ditava a moda surf do início dos anos 90. E pés pragmáticos, que vestiam um tênis modelo iate, sem cadarços. O pacote ficava completo com o cigarro aceso na mão direita, durante a aula, o que seria uma heresia nos tempos do politicamente correto.
Aquele professor-filósofo garantiu por palavras e ações a presença deste calouro às sextas-feiras. Apenas 20% dos estudantes compareciam, o que tornava os encontros quase particulares. Únicos.
Doze anos depois de conhecê-lo, tornei-me professor. A morte do filósofo Daniel Gonzalez foi incapaz de encerrar a aula. Continuarei a me lembrar dele quando comento com alunos sobre grandes professores. Mas a gratidão está em absorver seus ensinamentos simbólicos, traduzidos no amor pela reflexão sobre e com seres humanos.
Lindo texto. Emociante, mesmo para quem não conheceu Daniel pessoalmente.
ResponderExcluirBeijo grande.