Marcus Vinicius Batista
Não estamos preparados para a morte. A dificuldade em lidar com ela, no mundo moderno, nos faz saltar do silêncio ao espetáculo. Transformamos a morte em tabu quase paralisante, de modo que reduzimos todos os espaços possíveis para o luto. Evitamos, sempre que possível, olhar para ela, conversar sobre ela, fato que se acentua, por exemplo, entre os idosos.
Quando a finitude vem de forma abrupta, como a tragédia com jogadores da Chapecoense, jornalistas, dirigentes e tripulação, ficamos atordoados diante da complexidade de sentimentos e emoções que nos acometem, muitos deles além do acidente aéreo, mas derivados da cultura que os acompanha.
A comoção é a primeira resposta natural. Queremos saber os detalhes, compreender a história - com causas e consequências - de maneira instantânea, como prega a cartilha do contemporâneo. Queremos saber os detalhes, mas voltamos ao estado de coisas ao notarmos as dificuldades em expressar nossas reações internas. Por quê?
Optamos pela concretude dos acontecimentos. Nomes, local do acidente, causas da queda da aeronave, como ficará o campeonato, a burocracia da organização do torneio, as repercussões entre especialistas e oportunistas, tudo serve como escapatória para lidarmos conosco, a partir da morte do outro, que mal conhecemos. Por que nos comovemos? A preservação da vida como valor explica tudo?
Por trás disso, há a cultura do futebol, ainda presente - felizmente -, mesmo com a transformação do esporte em termômetro de ganância. O futebol é um dos mais eficientes mecanismos de aferição do comportamento humano. Vemos ali a selvageria humana, o tribalismo, o reflexo econômico, o uso político, a desigualdade social, a intolerância e o preconceito. Mas enxergamos também o amor, a esperança, a paixão, a generosidade, a solidariedade.
Um acidente aéreo nos provoca a compensação perante uma visão negativista e exclusiva do futebol. A tragédia nos reacende como humanos, nos revolta contra a hipocrisia, contra a fome financeira ou as palavras emitidas sem limites, sem o olhar para a dor do outro. Nem tudo pode ser piada em todas as circunstâncias. O futebol ressurge como prática coletiva, próxima do universal, acima da competitividade.
É da pior forma possível, mas o acidente aéreo nos coloca como limitados, como falíveis, como finitos. Uma hora ou outra, o futebol como associado da morte - não na violência gratuita e estúpida dos estádios, também banalizada pelo show, mas no acaso inevitável e devastador - serve como gatilho para refletirmos sobre como encaramos o esporte, a digestão dele como extensão da vida.
O luto será coletivo, midiático e elaborado de um espectro a outro da condição humana. Este luto tende a ser mais acelerado, conectado ao noticiário, com intervalos cada vez maiores conforme a distância entre o fato velho e o acontecimento mais recente. Haverá a catarse no estádio, as homenagens globalizadas, de acordo com o que é essencial para lembrarmos de que a morte, embora inevitável, machuca demais se imprevisível.
Entretanto, não se pode relativizar ou amenizar o luto individual, familiar, das pessoas que jamais esperariam perder um ente próximo num período de realizações profissionais férteis, no melhor momento da carreira de muitos jogadores, no auge de um clube visto como coadjuvante no futebol nacional. Famílias de jovens, que jamais cogitaram o término de biografias quando as histórias alcançavam o clímax.
Essas famílias necessitam de apoio, inclusive da perspectiva psicológica, medida que inclui os sobreviventes, os que não viajaram, todos que tentarão reerguer a instituição, o clube, enquanto procuram remédios para feridas profundas internas e nada palpáveis.
Campeã ou não, a Chapecoense - traduzida pelas pessoas que a mantém viva - tem que fechar para balanço, chorar o que for de direito, recolher-se para reflexão, para o luto, para a elaboração do pior episódio de sua trajetória. Só assim teremos a metamorfose de sentimentos, que transitarão pela raiva, negação, tristeza profunda até alcançar a saudade. Essa sim ficará por muito tempo e será o motor que empurrará a Chapecoense, jogadores, equipe técnica, jornalistas para um lugar bem mais confortável na memória afetiva.
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