segunda-feira, 19 de maio de 2014

Só os loucos sabem


Em 3 de maio de 1989, profissionais de saúde da Prefeitura de Santos interditaram a “Casa dos Horrores”, como era conhecida a Casa de Saúde Anchieta, localizada atrás do Hospital Beneficência Portuguesa. O Anchieta era o principal manicômio do litoral de São Paulo e a interdição o transformou em um símbolo da luta antimanicomial.

Na última semana, dois eventos tentaram manter viva a batalha contra a permanência de hospitais psiquiátricos como depósitos de pessoas. Duas universidades, Unisantos e Unifesp, promoveram uma série de debates e palestras, além de uma manifestação no Centro, com o objetivo de se discutir o cenário atual das políticas públicas de saúde mental.

No Café Rolidei, nas dependências do Teatro Municipal, o projeto TamTam – nascido dentro dos corredores e salas da Casa de Saúde Anchieta também em 1989 – realizou a Semana do Cuidar. De filmes a oficinas, o projeto mantém a chama de quem se tornou exemplo de inclusão social por meio da arte, dentro ou fora das instituições de saúde mental.

A Semana de Luta Antimanicomial é mais do que um conjunto de encontros para se reivindicar o fechamento de hospitais psiquiátricos. Trata-se, no fundo, de iluminar um comportamento paradoxal que permeia a sociedade contemporânea.

Vivemos uma era das pílulas mágicas. Nunca se vendeu tanto, com tanta variedade nas farmácias, as balinhas da felicidade. Desde a década de 60, a indústria farmacêutica conseguiu aumentar a presença de remédios – controlados ou não – no cotidiano das pessoas.

A automedicação se tornou, em muitos endereços, sinal de status, inclusive de pertencimento cultural. O doping autorizado por bulas passou a representar uma maneira de estar dentro de grupos que se queixam da vida inumana exigida deles, mas que não a abandonam porque este estilo os fornece ganhos secundários, principalmente de ordem econômico-financeira.

Outro efeito nocivo da “cultura das pílulas da felicidade” é a patologização do comportamento humano. Termos como depressão, hiperatividade, bipolaridade, stress e transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) viraram expressões corriqueiras.

Em certos círculos sociais, é possível testemunhar uma competição velada de quem se dopa mais ou de quem percorreu mais etapas do circuito das pílulas mágicas. Conheci pessoas que falavam de síndromes, transtornos e doenças como se colecionassem figurinhas da Copa do Mundo ou com orgulho de suas aventuras químicas.

O paradoxo reside na ideia de que o glamour das patologias de ordem mental contradiz com a perpetuação do preconceito contra a “loucura”. Na semana passada, o jogador Neymar disse – em uma entrevista – que a seleção brasileira não precisava de psicólogo porque não havia “doidos” no time.

Mais do que outra besteira nas palavras do atacante, é a reprodução da visão vigente de que a psicologia e a loucura são assuntos a serem evitados ou negados. Em outras palavras, temas apenas de ordem privada. Os loucos, a gente esconde. Fazer terapia, para muitos, é sinônimo de eletrochoque e surto.

Enquanto aumentamos a prateleira de medicamentos, realimentamos o preconceito contra os “loucos”. Ainda prevalece o trauma das internações, como forma de tirar os desviantes do olhar de todos. Os loucos também são encarados como incapazes – e pior – como seres inferiores numa escala cruel de (falta de) humanidade.

Neste sentido, pouco vale em termos eleitorais investir em políticas consistentes e duradouras de saúde mental. Em todos os níveis, os investimentos são baixos, no final da fila das secretarias de saúde. Para muitos políticos, loucos não rendem votos, inclusive porque parte deles podem se misturar na multidão das salas de espera.

A ironia é que a loucura jamais se relaciona com conta bancária. A saúde mental (ou ausência dela) funciona de maneira horizontal. Pirâmide social ou status são palavras inócuas, sem significado. E a lógica da loucura costuma ser outra, ainda que muitos carreguem e cultivem uma rotina de impressionar qualquer psiquiatra.

No paradoxo da medicalização, o problema, para os pobres, é a espera nas unidades de saúde. Para a classe média e os mais ricos, é a espera na fila do caixa das farmácias. Só que, no milagre da multiplicação de pílulas e patologias, os remédios (e seus efeitos) são os mesmos.

Em tempo: o título desta coluna é o nome de uma música da banda Charlie Brown Jr. Acredito que Chorão e Champignon, além dos outros integrantes, não se oporiam a este “empréstimo”, inclusive porque a temática interessaria a eles.

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