segunda-feira, 5 de maio de 2014

Sou mulher, vivo com medo


O texto abaixo foi escrito pela designer Kitty Yoshioka. É um depoimento que simboliza a vida de muitas mulheres, que sofrem violência nos mais variados níveis. O blog publica o texto com autorização da autora. Não se pode ficar em silêncio!

Kitty Yoshioka

Quando eu tinha 8 ou 9 anos, estava brincando a noitinha na rua com uma amiga, em frente ao prédio em que morávamos. Do nada, apareceu um motoqueiro do outro lado da rua. Ele ficou parado, de frente pra gente. O que ele fez? Mostrou o pau. 


Lembro que, como duas crianças, ficamos mais desesperadas do que com nojo ou algo assim. Corremos para entrar no prédio. Isso aconteceu comigo outra vez também, quando eu estava sozinha. Motoqueiro, pau pra fora, desespero.

Um pouco mais tarde, quando eu devia ter por volta de 13 ou 14 anos, estava voltando da escola para casa. Um cara passou por mim na calçada, andando rápido e apertou o pouco que eu tinha de peito na época. Assim, do nada. Passou, apertou e continuou andando. Eu me lembro de sentir um misto de medo e nojo. Lembro que meu peito ficou dolorido porque o filho da puta apertou com força. Voltei pra casa correndo, desesperada, claro.

Numa outra ocasião (nesse ano mesmo, 2014), fui renovar o contrato de aluguel com o Aloysio no cartório aqui perto de casa, andei com ele até o cartório. Resolvemos as burocracias etc. Ele iria para o trabalho, eu voltaria para casa. Fiz exatamente o mesmo trajeto que fiz quando estava com ele. São 362 metros, do cartório até a minha casa (segundo o maps) e nesse trajeto curtíssimo, quando estava sozinha ouvi cantadas, assobios e mais cantadas. Simplesmente por eu não estar acompanhada por um homem. Como se eu precisasse de um guarda-costas ou um dono para me acompanhar; caso contrário, eu serei alvo de assédios, estarei vulnerável, “pedindo para ser atacada” ou qualquer coisa babaca desse tipo.

Todos os dias da minha vida eu me olho no espelho e (além de ter que me achar bonita, mesmo com esses padrões escrotos de beleza que as pessoas impõem hoje em dia) penso, com medo: “Será que essa roupa tá muito chamativa? Será que vão me comer com os olhos, me julgar? Será que vão mexer comigo? E se mexerem? Acho que eu respondo...Mas se eu responder, será que vão vir atrás de mim? Será que vão tentar fazer alguma coisa comigo?” 


Outro dia, semana passada, deixei de sair para jantar com o Aloysio porque estava de noite e eu teria que andar sozinha e arrumada de casa até o metrô para encontrar com ele em outro lugar. Sabia que eu sentiria medo de sair na rua, sabia que sempre teria um babaca na rua para mexer comigo e já fiquei exausta por antecipação.

Rapazes, vocês já pensaram em como vivem suas esposas, namoradas, irmãs, amigas e mães? Já perguntaram pra elas se já passaram por algo desse tipo? Alguma agressão ou assédio? Quantas cantadas elas ouvem quando andam sozinha, olhares, quantos caras já tentaram agarrá-las na balada? Pela mão, pelo pescoço, pela cintura. Quando ela estava apenas tentando se divertir com algumas amigas ou tentando chegar até o banheiro? Como elas se sentem com tudo isso? Como elas lidam com tudo isso?

Acho que nunca contei todas essas histórias para ninguém (mãe, desculpa se eu não tinha te contado quando eu era pequena, devo ter ficado com medo ou vergonha, sei lá) e acho que estou falando tudo isso aqui porque estou cansada. Cansada de criar paranoias com qualquer sombra que eu vejo atrás de mim na rua, cansada de não ter liberdade pra me vestir como eu quero, quando eu quero. Ir aonde eu quero. Tudo simplesmente por eu ter nascido mulher.

Viver com medo por causa do seu gênero é horrível e cansativo. E eu não desejo isso nem para o homem mais nojento do mundo. Gostaria apenas que eu e todas as outras mulheres pudéssemos andar nas ruas livremente, sem medo de invasões. Sem ter que nos preocuparmos em correr riscos apenas porque somos mulheres. Viver sendo mulher hoje em dia é viver cheia de medos. E ninguém merece isso.


Esse texto é um desabafo, transbordei sem a necessidade de uma “gota d'agua” pra fazer isso. Mas vou dedicá-lo à todas as mulheres que o lerem. Minhas amigas e azinimigas também, por quê não? Por toda a força que a gente precisa ter pra enfrentar sacanagem, escrotisse, julgamentos e violências. E espero que, mesmo que aos poucos, a gente consiga mudar como as coisas funcionam no mundo.

Um comentário:

  1. Muito bom o desabafo. Acredito que é o sentimento da maior parte das mulheres. No ano passado, por exemplo, estava indo pegar o ônibus para o trabalho, às 11h da manhã, quando um cara de bicicleta passou por mim e olhou para todos os lados, como de costume em Praia Grande, não havia ninguém na rua. Achei que ele fosse me assaltar e como ele seguiu seu caminho, continuei o meu. Quando menos esperava ele dobrou a esquina, com o boné tampando a cara, o pinto de fora e se masturbando na minha direção. Entrei em desespero! Minha primeira reação foi tentar ligar para minha mãe. Caixa postal. Não tinha ninguém na rua. Pensei: "Fudeu! Se ele tiver armado? Se me mandar sentar na bicicleta? Se mandar colocar a boca lá? NÃO TEM NINGUÉM!". Tudo foi muito rápido, mas para mim parecia câmera lenta, quando ele finalmente estava ombro à ombro comigo, olhei para trás e vi um carro da telefônica. Me joguei na frente do carro. O cara sumiu. Eu paralisei, o motorista me colocou dentro do carro, pois eu só conseguia chorar. Lembro que ele perguntou diversas vezes o que havia acontecido, e quando eu realmente consegui falar que o homem havia mostrado o pinto, fiquei com tanta vergonha que não cabia em mim. O rapaz da telefônica me levou no trabalho da minha mãe, há duas quadras dali. Mal consegui agradecer, mas sinto que ele salvou minha vida. Passei uns quatro dias chorando antes de dormir porque lembrava da situação, sentia raiva, nojo, ódio, principalmente por pensar que ali perto havia uma escola, e no meu lugar poderia ter sido uma criança. E outra coisa que eu questionava: Eu estava indo trabalhar, de calça, sapato e camisa, além de uma jaqueta, porque estava frio. Já vivo em uma Cidade com altos índices de criminalidade, mas hoje, além dos assaltos, ainda me preocupo se o cara que passa na rua não é um tarado.

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