sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

O rap vai ao castelo

As duas mulheres cantaram à capela para as 50 pessoas. O refrão “Negra sim, mulata não” paria olhares diversos, da surpresa à admiração. A música Mulata encerrou o ritual de pouco mais de uma hora, que lotou uma sala destinada quase sempre aos debates e exposições acadêmicas. 

Preta Rara e Negra Jack: rap com política

A sala, de número 315 na porta, está acostumada com tons de pele coerentes com a clareza de suas paredes e o ar de higienização hospitalar. Naquela noite de segunda-feira, pela primeira vez, a sala estava dominada por negros, muitos sem a obsessão pelo diploma na parede de casa. Mas todos orgulhosos porque uma deles – assim o sistema universitário os vê, como de outro mundo – chegou ao fim do caminho.

Joyce personificava o regime de exceção. Defendeu seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) em História, na Unisantos, um estudo sobre o movimento hip-hop na Baixada Santista, a partir de 1993, data de nascimento na região. O trabalho foi o mais concorrido do curso. De doutores a gente com ensino fundamental. Universitários de cinco cursos, de Letras a Pedagogia. Parentes, amigos e integrantes do movimento social, cada vez menos uma tribo vista como moda.

Joyce da Silva Fernandes é candidata a uma lista de preconceitos inerentes à sociedade brasileira. Ela tinha várias credenciais para dar errado no país que finge tolerar quem não nasceu europeizado ou não embranqueceu com as benesses do poder econômico ou com a fama das celebridades.

Joyce é negra, mulher e moradora de bairro de periferia. Veste-se com amor pelas raízes africanas. Já foi chamada de macumbeira na rua e quase foi contratada como cartomante. Joyce também é rapper, outro universo dominado pelos homens. Preta Rara, seu nome artístico, também enfrenta problemas por ser caiçara. Ela e Negra Jack formam o grupo Tarja Preta, a primeira dupla de mulheres rappers do litoral de São Paulo. Hoje, apresentam-se mais na Capital e no interior, onde são tratadas com reverência pelo conteúdo politizado e feminista de suas composições.

Naquela noite de segunda-feira, Joyce não era Preta. Joyce era uma professora de História, que se legitimava pelo rigor acadêmico e pela linguagem científica. A força das letras que, por exemplo, denunciam a falsa abolição e a exploração do corpo da mulher se transformou em argumentos para analisar um dos fenômenos culturais da história recente da região.

O rap abriu as portas do castelo, normalmente atento às próprias preocupações da corte. Dentro dele, há mentes resistentes que transgridem ao compreender a necessidade de conversar com o mundo lá fora, de maneira horizontal, sem pedantismo ou arrotos de conhecimento de almanaque. 

O feminismo na rima e na postura artística

A sala 315 serviu de testemunha para um instante único, um ponto de partida para a aproximação da elite educacional com aqueles que dinamizam a cultura na base social, lutam contra os vácuos da era do consumo e constroem novos caminhos de conhecimento sobre o mundo que, inclusive, rodeia os muros do castelo. Naquela noite de segunda-feira, a sala 315 representou a chance concreta de uma sociedade em que brancos e negros, homens e mulheres, possam conviver com senso de coletividade e atenção para os problemas que insistem em permanecer sob o manto da invisibilidade social. 

A sala 315 ainda se constitui como exceção. Abrigará, possivelmente, muitos discursos, por vezes inócuos, por vezes relevantes, mas suas paredes anti-sépticas não conseguirão limpar aquela narrativa, encerrada com duas rappers que, em rimas de indignação, desnudaram a condição da mulher negra, maioria fora do castelo, visitante ocasional dentro dele.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

O chá da tarde na USP

A Universidade de São Paulo se transformou no centro da educação brasileira. Das socialites aos estudantes, dos políticos aos jornalistas, dos com-ar-condicionado aos sem-nada, muitos resolveram incluir a USP na agenda, ainda que não a conheçam, ainda que não a dimensionem dentro do sistema educacional brasileiro.

Com apoio de parte da imprensa, praticante do jornalismo “copia e cola”, pronta para vomitar as versões mais conservadoras ou elitistas, a ocupação da reitoria por universitários se transformou em um circo com uma lona maior do que o esperado. Mas o resultado nos conduziu ao mesmo endereço: a esquina onde a desinformação e o preconceito se encontram.

Estudantes e policiais militares serviram como canais que carregam sintomas de uma sociedade doente, cega como grupo e manca como consciência coletiva. Os estudantes mal são ouvidos. Ouvir com orelhas tortas não é escutar. As premissas indicam que todos ali são maconheiros e filhinhos de papai, frutos de um sistema que privilegia o topo da pirâmide em detrimento da base sócio-econômica.

É claro que muitos universitários se lambuzam com leituras teóricas em diagonal, o que os leva a crer na possibilidade de promover uma revolução sem contexto, como se estivessem congelados na década de 60. No entanto, isso não condena os estudantes que compreendem a natureza ética e social de seus papéis e, acima de tudo, percebem o quanto falta senso de coletividade no meio acadêmico, por vezes afogado em mesquinharias científicas, de costas para o mundo além dos muros e das grades.

Soa irresponsável associar como questão absoluta a vida universitária e o tráfico de drogas. O consumo não representa prerrogativa ou exclusividade do meio universitário. O assunto é questão de saúde pública e permeia todos os segmentos sociais. Associar vida estudantil à compra e venda de drogas lícitas e ilícitas é de um reducionismo ofensivo, máscara de cínicos.

Outro sintoma de uma sociedade fora do eixo é perceber como se distorce o papel e os limites da Polícia Militar. Via de regra, a sociedade teme a polícia e a associa a comportamentos irregulares. Só que, quando precisa de alguém para fazer a faxina indesejável, o mesmo grupo corre para bajular a instituição policial. Na ocupação da reitoria da USP, parte da sociedade – da boca miúda aos gritos histéricos – defendeu que os policiais batessem nos universitários. Que abusassem da autoridade e da violência, tão criticadas na mesa de chá e vibrantes na pele do Capitão Nascimento.

O autoritarismo e a intolerância se misturam com a patrulha do politicamente correto, escravo do pensamento único. A tradução é varrer dos olhos quem pensa ou se manifesta fora do padrão. É marginalizar o alheio, sem direito à defesa ou à voz de reivindicação.

A ocupação do prédio da reitoria da USP, somada aos conflitos com a PM, além dos protestos da última semana importam menos diante de um cenário onde prevalecem a ausência de diálogo e de poder de escuta. Vence o prazer de ouvir os próprios grunhidos de truculência, mesmo que desinformados, superficiais e fragmentados. Neste sentido, PM é guarda de patrimônio, jamais de gente, independentemente da conta bancária.

Alguém se lembrou de aproveitar o calor dos fatos e discutir o sistema universitário, a violência na USP ou a educação brasileira, excludente e formadora de castas? São enredos que não animam a sala de jantar.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

O que o diploma não dá

A educação recebeu uma missão tão inglória quanto improvável. Virou o exorcista que nos salva de todos os demônios. A resposta para todos os problemas sociais, que mascara as feridas na infra-estrutura em diversas áreas, como saúde, transporte e segurança pública.

Dentro da fragilidade deste discurso, tão comum na boca de políticos, empresários e até educadores, teóricos de carteirinha ou não, o diploma ressuscita como o cavaleiro que cravará a espada no peito do dragão da ignorância, da miséria e da exclusão. A banalização chega ao nível de que qualquer canudo serve. A iniciação do aprendiz pode ser via presencial, virtual, em instituição de primeiro time ou na quitanda do seu Joaquim.

Ter diploma seria, pelas promessas de campanha, o passaporte para degraus mais altos na montanha da desigualdade social. As armas para sobreviver à travessia seriam conteúdos em grande quantidade, sem conexão entre eles, informações com serventia imediata e conhecimento que ganha importância se for aplicável em tarefas, nunca em reflexão.

Sempre fomos escravos do diploma como instrumento de poder. O papel servia para diferenciar os doutores dos seres humanos mortais. Estabelecia status e acesso a círculos sociais de chave restrita. Esta visão medíocre ainda persiste dentro de muitos segmentos, inclusive na universidade.

O problema mudou, mas a natureza dele não. A expansão do ensino superior levou o diploma para camadas sociais que jamais poderiam sonhar com ele. A ilusão se manifesta quando a aquisição do diploma representa o final da linha. É o momento em que se percebe o engodo após anos de gastos e privações. O mundo lá fora não se adequou ao papel recebido em festa. Em muitos casos, ignora a essência do documento e exige aquilo que o dono dele não pode proporcionar.

Diante de uma educação cada vez mais tecnicista, as deficiências e as limitações simbolizadas pelo diploma soam mais cristalinas. E parte delas não está na estrutura da casa do saber; aliás, denominação arrogante que indica falsa exclusividade.

O diploma jamais trará decência e caráter. Nada mais frágil do que supor que horas em sala de aula vão parir uma mudança de valores. Pelo contrário, é muito mais comum reproduzir o modelo desigual e cruel do lado de fora dos muros. Parece, para muita gente, aceitável e normal vomitar arrogância e frieza, absorvidas de quem deveria combatê-la ou reforçada pelo distanciamento do mundo.

O diploma jamais entregará sensibilidade. Olhar para o outro, compreendê-lo, aceitá-lo e respeitá-lo pelas semelhanças, mas principalmente pelas diferenças, não é uma lição que pode ser ensinada por disciplina alguma. Não está nos teóricos, muito menos nas correntes de pensamento que unem e rechaçam outras ideias. A sensibilidade reside em nós, que se manifesta nas relações entre as pessoas, independentemente da posição e do número de certificados pregados nas paredes da sala.

O diploma jamais dará poesia de presente. Perceber-se dentro de um cenário e buscar em seus detalhes o combustível para prosseguir é consequência dos requisitos anteriores. Como entender o que está além da janela se não se vê a própria casa? Como entender a importância das frutas do quintal se o alimento é a cobiça sobre o que não existe ou só existe sob forma de inveja?

Não me entenda mal. O diploma é crucial e merece defesa, até porque o problema não parte dele. A enfermidade está impregnada nos seres que o enxergam como passe livre para o poder. Que, acima de tudo, o utilizam para separar, para transformar pessoas em robôs ou gado.

Neste sentido, o diploma é sem cor, gosto ou cheiro, se a educação não servir para abrir a porta e libertar, desde que o viajante tenha a consciência de que pode escolher a rota e refletir continuamente sobre outros caminhos, inclusive suspender a viagem e se lambuzar de prazer na inércia.

domingo, 11 de setembro de 2011

Adeus ao filósofo

Daniel Gonzalez era admirável como escultor. Do Hipupiara ao surfista, a sensibilidade artística se perpetua em peças de fibra, espalhadas por shoppings, prédios e praças em Santos e São Vicente. Na TV, suas obras ressuscitam em Mulheres de Areia, nas mãos do personagem Tonho da Lua. Herança do pai, Serafim, que esculpiu na areia na primeira versão da novela.

Daniel Gonzalez era sensato como entrevistado. Tivemos várias conversas ao longo da minha vida profissional. Ele jamais recusava uma troca de ideias, seja em questões pontuais da cultura, seja quando pedia a ele que olhasse o mundo pela perspectiva filosófica.

Mas Daniel alterou, em definitivo, minha mentalidade quando foi meu professor. Eu tinha 17 anos e atravessava aquela fase de transição do Ensino Médio para a universidade. Descobertas e tentações no mesmo endereço, o extinto prédio da Facos, no bairro da Pompéia.

A missão de Daniel era ingrata: ensinar Filosofia às sextas-feiras, no último horário, tendo como adversária a convidativa vida noturna que cerca a faculdade. Além disso, Filosofia entrava no rol das disciplinas malditas, marcadas pela baixa popularidade entre os alunos.

No primeiro dia de aula, qualquer professor costuma estabelecer as regras de avaliação e, dependendo do caso, de convivência. Daniel ditou apenas uma norma: a ausência de todas as regras. Nada em tom professoral. Nada de anarquia no sentido pejorativo do termo. Nada de inversão ou inexistência de papéis. O relacionamento seria horizontal, com Daniel na função de faroleiro, para iluminar a estrada que se desenhava à frente.

Todos estavam aprovados. Não haveria provas ou faltas. Ficariam os alunos interessados em pensar, refletir sobre sentimentos e ações humanas. Filosofia era, a partir daquele momento, compromisso. Um pacto com o pensamento, solto do maior número possível de convenções sociais. A pauta de cada noite ficava sob responsabilidade dos convidados e tinha como alicerce fatos ou fenômenos que provocaram incômodos durante a semana.

A postura daquele filósofo era diferente, mas - acima de tudo – ultrapassava a retórica e se mostrava coerente com a forma de andar, sem rigidez, e a aparência dele. Cabelo desarrumado e barba por fazer. Camisa de botões para fora da calça; aliás, cheia de bolsos como ditava a moda surf do início dos anos 90. E pés pragmáticos, que vestiam um tênis modelo iate, sem cadarços. O pacote ficava completo com o cigarro aceso na mão direita, durante a aula, o que seria uma heresia nos tempos do politicamente correto.


Aquele professor-filósofo garantiu por palavras e ações a presença deste calouro às sextas-feiras. Apenas 20% dos estudantes compareciam, o que tornava os encontros quase particulares. Únicos.

Doze anos depois de conhecê-lo, tornei-me professor. A morte do filósofo Daniel Gonzalez foi incapaz de encerrar a aula. Continuarei a me lembrar dele quando comento com alunos sobre grandes professores. Mas a gratidão está em absorver seus ensinamentos simbólicos, traduzidos no amor pela reflexão sobre e com seres humanos.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

O grito dos professores

Os professores gritam por socorro. As reclamações saltaram os muros e as grades das escolas e se transformaram em placas, cartazes e sola de sapato gasta nas ruas. Com as marchas em moda, o professorado resolveu, em várias partes do país, expor a própria condição, num ato de desespero, que deseja a mobilização da sociedade.

No Rio de Janeiro, os professores fizeram greve na rede estadual. Em Santa Catarina, protestos contra o Governo, que se recusa a conversar sobre novas condições de trabalho.

É redundante, mas necessário lembrar que os salários dos professores são vergonhosos. A desvalorização da profissão remete ao regime militar há quase 50 anos. Nunca se falou tanto de educação como motor de desenvolvimento, ao mesmo tempo que a contradição do discurso está personificada em profissionais mal pagos e com formação deficiente. Justamente quem deveria colocar o motor para funcionar na potência máxima.

Na Baixada Santista, a condição do professorado também se mostra absolutamente discutível. Santos, a principal cidade da região, enfrenta uma crise de mão-de-obra na rede municipal. O déficit é, no mínimo, de 230 vagas, a ponto de a secretaria dar a partida em um processo de convocação de emergência.

A falta de professores em Santos se deve, entre outras razões, à fragilidade dos salários. Um docente recebe, por hora-aula, de R$ 9 a R$ 10. Muitos profissionais migraram para Cubatão e Guarujá. Encaram viagem maior ao local de trabalho porque a remuneração por lá é melhor. Praia Grande, por sua vez, concederá reajuste de 32% em 15 de julho.  

O Ministério da Educação acena com um déficit de 200 mil profissionais no país. A situação é mais grave justamente nos endereços em que os indicadores são mais baixos. Nas regiões Norte e Nordeste, professores entraram na lista de espécies em extinção. Nos grandes centros, a escassez é cristalina nos bairros periféricos, não importa a rede.

Em Santos, por exemplo, é rotineira a ausência de docentes no Caruara, na Área Continental.  Até no Gonzaga, bairro nobre, vagas estavam abertas – para mais de uma disciplina – com o ano letivo em andamento.

O protesto dos professores nas ruas (ou via imprensa) é legítimo não apenas pelo aspecto democrático, como forma de contestação ao poder vigente, mas para indicar à sociedade civil como a categoria não tem condições de carregar nas costas o fardo de empurrar, de maneira solitária e idealizada, a educação ladeira acima.  

Ser professor não tem relação alguma com sacerdócio ou atividade voluntária. É uma atividade profissional como qualquer outra, que merece um suporte cultural decente e remuneração compatível com os riscos e responsabilidades do ofício. Caso contrário, tende a ser multiplicar o semblante desapontado de alunos universitários que preenchem as cadeiras dos cursos de licenciaturas, numa demonstração de que muitos deles pensam em desistir da profissão antes da ultrapassar os muros da escola. 

Infelizmente, o grito está restrito aos professores da rede pública. Os colegas de profissão das escolas privadas, a maioria de pequeno porte, continuam amordaçados. Sob o risco de desemprego, choram em silêncio, no canto da sala de aula, como se pensassem naquilo que poderiam fazer para engrossar o coro dos desvalidos.

Observação: A secretária de Educação de Santos, Suely Maia, concedeu, no final de junho, entrevista ao jornal Boqnews. As declarações dela ajudam a entender o problema.  

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Perdas e ganhos

— Professor, suas aulas mudaram o almoço de domingo na minha casa! Meus filhos, genros, noras e netos se assustaram com minhas opiniões, mas passaram a me ouvir com mais freqüência.

Uma vez por semana, me aproximo do que considero o modelo ideal de educação, com pouca burocracia e livre de pormenores que glorificam e sacramentam o pequeno poder. Dou aulas, desde o ano passado, na Universidade Aberta da Terceira Idade (UATI), projeto que se renova há duas décadas na Universidade Católica de Santos.

Uma tarde por semana, aprendo com mais de 40 alunos, 90% mulheres, que dividem comigo suas experiências, histórias, exemplos, erros, dúvidas e angústias. Até as certezas e verdades absolutas, por vezes colocadas em xeque pelo colega ao lado, servem de ensinamento.

As aulas flertam com a pureza e com o idealismo da educação. Não há provas. Não existem notas. Todos estão livres do estigma da reprovação. Faltas também não reprovam. O conteúdo é flexível, conforme os interesses dos alunos a partir de um diálogo com o professor. Conhecimento é reflexão, jamais escravo do utilitarismo ou da mecânica robotizada de apertar botões.

As reações dos alunos, com média de idade acima dos 65 anos, é imediata. Se não concordam com algum exemplo ou conceito, expõem suas opiniões sem impor argumentos como dogma. Não temem a patrulha alheia, comum ao sistema educacional, que esmaga a palavra dissonante e cristaliza a falsa autoridade absoluta do professor. Se eles gostam do que ouviram, são acolhedores e agradecem pela aula recebida. Muitos alunos, inclusive, prolongam o diálogo pelos corredores da universidade.

Ali, consigo perceber uma luta involuntária, mas eficiente, contra dois dos maiores males que assolam o meio acadêmico: a vaidade e a soberba. Ambas resultam na contínua confirmação de teses e opiniões, postura que consiste na surdez diante da voz do outro. O interesse maior é se deliciar com o som das próprias palavras.

São estudantes que resolveram se sentar diante de professores - alguns poderiam ser filhos - para compartilhar e usufruir de novas visões que os levem a compreender e se proteger do mundo que, acelerado, teima em querer atropelá-los. São pessoas profundamente interessadas na vida, que por vezes é arrancada deles como se o corpo enfraquecido paralisasse a mente, impossibilitada de seguir adiante.

As terças-feiras, infelizmente, também se transformaram em dias de melancolia, como as contradições que permeiam o caminho de todos nós, seres tão pretensiosos quanto frágeis. No último mês, duas alunas deixaram o curso. Ambas faleceram, uma delas no Dia das Mães.

Eram mulheres de posições fortes, dispostas a abraçar a reflexão e o debate. À moda delas, sabiam reconhecer um ponto de vista discordante, ainda que relutassem em aceitar o argumento alheio. Mas jamais faziam da crítica um exercício cruel da intolerância.

Dar aulas às terças-feiras à tarde me tornou diferente. Se melhor professor, não sei. Não houve premeditação dos envolvidos, mas a cumplicidade se constrói a cada semana a partir do interesse pelo outro e, principalmente, pelo interesse conjunto pela vida humana. É a minha forma de desejar a educação, para todas as circunstâncias, endereços e culturas.

sexta-feira, 25 de março de 2011

Filme debate condição feminina


Por Cidinha Santos

O filme Domésticas, dirigido por Fernando Meireles, será exibido neste sábado, às 16 horas, na Estação da Cidadania, em Santos. O evento é uma iniciativa do Curso de Cultura Afrobrasileira em homenagem ao mês em que se comemora o Dia Internacional de Luta da Mulher. A apresentação é gratuita.

O cine debate tem como objetivo abordar o universo das empregadas domésticas pela ótica do trabalho e a situação da mulher negra nesse mercado, que sempre foi e tem sido ocupado por ela. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), em 2009, no Brasil, a quantidade de trabalhadoras domésticas com registro em carteira profissional era mais de 7 milhões. Isso porque houve um crescimento de nove por cento, em relação ao ano anterior. No entanto, as mulheres ainda são maioria entre as/os trabalhadoras/os domésticas/os sem carteira assinada.

Para Augusta França de Oliveira, militante do movimento de mulheres negras e coordenadora do Núcleo Pai Felipe, da Rede de Pré-vestibulares comunitários e Educação de Afrodescendentes e Carentes (Educafro) na história de desigualdade, discriminação e direitos relacionados ao trabalho da mulher. “É preciso fazer o corte racial nesta discussão com o olhar voltado para o período colonial, de modo a resgatar a história do trabalho da mulher negra escravizada.” 

Após a apresentação haverá debate sobre o tema, com a participação das professoras e dos professores do Núcleo de Estudos “Quilombos Urbanos”.

Núcleo de Estudos Quilombos Urbanos – Foi criado em 2009 e é constituído por um grupo de pessoas que vem acumulando conhecimento, estudos e materiais de pesquisas sobre a temática da população negra, sua história e raiz.

Tem como objetivo a discussão de questões relevantes sobre o negro no universo cultural brasileiro, enfatizando a historiografia em torno de temáticas como história do povo negro; africanidades; o papel da escola como local de transmissão de conhecimento, de preservação da condição de vida e também como o de ação transformadora e reflexiva da condição humana; a Lei 10.639/03 (que trata do ensino de história da África e dos afrodescendentes e indígenas nas escolas); a condição da mulher negra e as relações de poder e de cidadania.

A Estação da Cidadania fica na avenida Ana Costa, 340, no Campo Grande, em Santos.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Entre os muros, vítimas e carrascos


Sentado atrás da mesa, o professor segue o ritual de final de ano: perguntar aos alunos sobre o que aprenderam no período. As perguntas são mecânicas, à caça de reações previsíveis. No máximo, a falsa reação de surpresa. As respostas parecem variadas, de Ciências a Matemática, mas gravitam em torno de temas específicos, de interesse particular do aluno, que o professor não se interessa em detalhar.
Os questionamentos terminam ao toque do sinal. O professor François Marin se dá por satisfeito, termina a aula e – por convenção – deseja boas férias. A última a sair da sala é uma garota negra, descendente de imigrantes africanos, calada, invisível, a aluna perfeita. Seria a estudante perfeita pela disciplina, mas jamais será lembrada, pois cumpre o destino de irrelevância traçado pela escola.

O professor se esquece de perguntar o que ela havia aprendido. A aluna o aborda e diz, de maneira direta:
— Eu não aprendi nada.
O professor, surpreso, insiste no argumento de que a garota deve ter aprendido algo. E recebe o diagnóstico – com ares de definitivo, incontestável:
— Eu não entendo o que estamos fazendo aqui.
O diálogo é, para mim, a síntese da relação entre professores e alunos de uma escola pública francesa, retratada no filme “Entre os muros da escola”, direção de Laurent Cantet.
O filme apresenta, de saída, um grande mérito: não repetir o olhar norte-americano das produções sobre escola. O olhar no qual um professor representa o herói capaz de modificar o cotidiano de todos os alunos, como se fosse um processo natural e irreversível, sem choques. Neste filmes, alunos e professor não tem particularidades, somente desejos coletivos em conjunção com o sonho americano. E ainda não o alcançaram pela origem estrangeira ou por pertencerem à outra etnia, mas serão preparados pelo professor para o “American Way of Life”.

“Entre os muros”, nome original francês, indica como a escola – em muitos endereços – é a reprodução dos preconceitos, das segregações, das disputas mesquinhas de poder e da repressão social do mundo além da sala de aula. Professores e alunos, via de regra, são espécies diferentes e se encaram como tal. Possuem características próprias, valores diferentes e espírito de corpo que não inclui a solidariedade perante a outra espécie.
Unem-se somente por interesses políticos, quando ambos são prejudicados pelo sistema escolar ou quando precisam da aliança para solucionar uma questão específica. Uma relação de cinismo, de ética de interesses como exemplos comuns ao cotidiano.
Se o filme fosse dublado em português, talvez enganasse o espectador menos avisado. A escola brasileira não é apenas cercada por muros como ação de segurança pública. Os muros ressaltam os papéis: alunos, internos; professores, carcereiros; e gestores, a direção da cadeia.
Todos os atores envolvidos se comunicam somente quando necessário, a partir do script previsto pela hierarquia. Na rotina de uma unidade escolar, uns se queixam dos outros, e todos mantém o pacto de espinafrar o sistema. Prevalece o comodismo, já que o sistema é distante, impessoal, a entidade abstrata.
Indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro, “Entre os muros da escola” é uma obra que não permite a torcida. Não há bons e maus. Impossível adotar a visão maniqueísta das relações entre os personagens, com o risco de enfiarmos a cabeça no buraco da ilusão. O espectador que tem ligações diretas com a educação escolar pode ficar confuso. Professores, principalmente. Se isso acontecer, a provocação do diretor Cantet se materializou além da tela.
Professores foram alunos. E muitos se esquecem desta história. O filme faz questão de nos lembrar quase todo o tempo, exceto nas discussões entre os docentes na sala dos professores. Não é permitida a identificação rápida e indolor. O filme nos joga de um lado para outro, como se mandasse o recado: não se posicione! Você é ambos. Os erros também pertencem a você. Se os cometeu, prepare-se para sofrer as tentações das saídas inócuas e posteriormente dolorosas. A garantia de sobrevida ao modelo.  
“Entre os muros da escola” esfrega no rosto do homem europeu o conflito contemporâneo da imigração. Na classe de François Marin, os alunos são filhos de imigrantes. Muitos são franceses de nascimento, e estrangeiros pela cultura. Neste ponto, Marin não os compreende. O professor – cujo sobrenome é traduzido por marinheiro – ressuscita o símbolo do colonizador europeu, incapaz de perceber que o outro é o rosto da diferença cultural, jamais a inferioridade por causa da origem.

O professor ensina francês, a língua da Metrópole, o que aumenta o distanciamento dos alunos. Ele tenta o diálogo, ora por aproximação, ora para reforçar o próprio poder, por meio da arrogância de quem vomita superioridade. François seria melhor por ser nativo e pelo papel que interpreta na escola.
Um exemplo é a aluna Esmeralda, que o questiona com freqüência. Quando ela diz que leu “A República”, de Platão, o professor não acredita, e também ironiza. Como uma aluna considera chatos os livros escolhidos e ainda por cima lê uma obra que não poderia, em tese, entender?
Nas escolas de periferia de São Paulo, será que não existem professores que desprezam – por exemplo – a cultura dos migrantes nordestinos? Políticas públicas de educação são comprometidas com a cultura popular ou propagam o poder da erudição? A escola sempre abre as portas para movimentos culturais, como o hip-hop?
O filme, embora escolha o ambiente mantido pelo Estado, permite olhar para as escolas privadas brasileiras, com adaptações. As escolas particulares não são exatamente ilhas de excelência. Menos diversa do que a pública, a escola privada também é caixa de ressonância de preconceitos. É evidente que ali se sobrepõe o olhar sócio-econômico, no qual vale a conta bancária dos pais do “cliente-aluno”, nesta ordem de importância. Professores são personal-teachers, que podem ser trocados no final de ano, como um boneco da moda.
O filme, premiado no Festival de Cannes, é baseado em livro de mesmo nome. O autor, François Bégaudeau, interpreta o professor. Os alunos não são atores profissionais. Muitos dos diálogos são improvisações, que elevam o grau de naturalidade e permitem o flerte com a escola “real”.

“Entre os muros da escola” é o nosso espelho, que indica os defeitos e as cicatrizes de todos os envolvidos. Indica a intolerância coletiva e a ditadura dos padrões de comportamentos. Analisa como o processo educacional repele os diferentes, cerceia a liberdade e valoriza os iguais. Iguais por serem submissos. Iguais por aceitarem o enquadramento, mesmo que sua subjetividade seja um detalhe.
Neste caminho, há o aluno Carl, descendente de antilhanos, que se vê como caribenho, apesar de nascido na França. Carl, visto como problema em outras unidades, não se importa mais com as decisões da escola. Passa o tempo dentro dela, com fantasias além dos muros.
A escola de François pode permitir o cinismo do espectador, distante pela língua, distante por um oceano cultural. Mas o espaço cai a zero quando olhamos para os conflitos dos personagens, para a desilusão dos professores, para o deslocamento dos alunos, para a ausência de conexão entre as partes. Escolher um lado é esconder-se atrás do muro. É mantê-lo em pé, sólido como as paredes que transformam as escolas em prisões ou castelos.
Observar por ambos os papéis (professor e aluno) traz a luz a culpa e a resignação. Os muros não escondem as vítimas. Os muros geram sombras, mas não protegem os carrascos e suas foices. Vítimas e carrascos estão nos dois lados dos muros. Não é preciso olhar de cima, pois eles não se deram conta do que estão fazendo ali!

sábado, 12 de março de 2011

Capítulos de uma aula decadente

Ao entrar na biblioteca da universidade, encontrei um ex-aluno. Recém-formado, ele é o típico sujeito pronto para exercer sua profissão sem grandes problemas. Boa formação, ético, antenado em questões sociais, preocupado em se atualizar por meio dos estudos. 

Estava contente ao saber que, por ter diploma de ensino superior, não precisaria prestar vestibular. Bastava esperar pela sobra de vagas. O rapaz pretendia fazer o curso de Direito, pois havia abandonado a sala de aula após seis meses como professor de escola pública.

A pergunta óbvia: - Por que largou?

A resposta imediata: - Desisti!!! Não dá para trabalhar à noite sob ameaças dos alunos.

Dois dias depois, uma aluna de Jornalismo veio me procurar para tirar dúvidas. Ela pretende fazer uma reportagem sobre Hiperatividade, doença da “moda” nos sistemas de ensino. Palavra da moda por duas razões.

1)  o termo foi banalizado. Muitos falam sobre a doença sem ter a menor ideia dos sintomas e do tratamento. Qualquer criança mais agitada, bagunceira ou que deseja um pouco mais de atenção pode ser classificada como hiperativa. O carimbo na testa que a tornará marginal na escola.

2) as escolas, além de não terem pessoas com formação – em muitos casos – para diagnosticar crianças com problemas de aprendizagem, não as encaminha para um profissional competente. Quando não ocorre o exercício da negação, por acordo velado entre instituição e pais para preservar da imagem da escola.

A aluna estava com dificuldades de conversar com escolas privadas sobre o tema. As equipes pedagógicas relutavam em reconhecer que poderiam ter crianças com o problema em suas classes. Quando admitiam, transferiam a culpa para os pais. No beco sem saída, tocar no assunto significa automaticamente o estigma. Desconfio que o parecer talvez fosse exercício de auto-imagem.

Escolas públicas e privadas são irmãs gêmeas diante de um espelho. Podemos localizar diferenças nos acessórios, nas roupas e, principalmente, na maquiagem, mas ambas sofrem de males semelhantes, diagnosticados por médicos diferentes e com poses idênticas de vítimas.

-  Tire esse bicho daí que o problema não é meu!

-  O diagnóstico está errado. Vou procurar uma segunda opinião.

A escola se manifesta pela rejeição ao diferente. Expulsa o sujeito que tenta lutar contra o estado de coisas. Repele quando esconde embaixo de suas carteiras, em seus armários, disfunções que poderiam servir de motor para uma reformulação estrutural.

Em ambos os casos, a escola é violenta. Enxota o professor e outros funcionários por se calar diante da violência verbal e física, interna e externa. Peca ao se calar diante de um problema de ordem médica para se fingir de instituição saudável. Omitir-se é um ato tão ou mais violento quanto assinar embaixo. Ou tomar posição com consciência do erro crasso.

O irônico da cegueira é a teimosia em fingir que enxerga. São muitos pecadores, mas poucos dispostos a se confessar ou se flagelar para “purificar” a escola. O sarcasmo, a acidez na provocação vem, por exemplo, do próprio Ministério da Educação, quando escancara na TV um filme institucional sobre o papel do professor. O tom alegre era previsível, assim como o falso simbolismo globalizante dos depoimentos em vários idiomas.

Descontando-se a falta de contexto ao se comparar lugares tão diferentes, o filme repete a velha ironia do professor como um herói, como alguém que se doa por altruísmo, por vocação em ajudar o próximo. No fundo, uma estratégia tímida para atrair pessoas dispostas a ensinar pela via escolar.

Ingênuos não são os que acreditaram no filme. Esses se encontram em estado vegetativo. Ingênuos são os que se surpreenderam quando o Ministério da Educação informou – em tom de cinismo – que faltam professores no país. O déficit de docentes tende a crescer.

Em outras palavras, professor não fica desempregado. Mas que não se meta a discutir condições de trabalho, seja com o gestor público ou com o patrão da escolinha do bairro. Até porque recebe todo mês para DAR aula!

quinta-feira, 10 de março de 2011

O uniforme fashion

A adolescência, que mescla origens biológicas e culturais, é uma fase difícil. O corpo é instável; o comportamento, inseguro; a necessidade de reconhecimento de grupo, vital. Trata-se de um período de alterações, de contestações de quem tenta se libertar de amarras e buscar a própria trajetória, diferenciando-se dos demais.

A busca pelo reconhecimento envolve também a aparência, numa sociedade de consumo que sonha com a padronização. Neste sentido, o uniforme escolar é um dos grilhões mais cruéis para o cotidiano de um adolescente. Por mais que se vistam de maneira parecida, eles jamais aceitam que essa imposição venha de terceiros, ainda mais da escola.

É preciso quebrar as regras e desafiar o senso de autoridade, desde modificações no corpo como piercings até outros acessórios da moda como bonés, casacos, calças rasgadas e mudanças no próprio uniforme.

As escolas com alunos mais ricos sempre trabalham ao gosto de freguês. Os indivíduos matriculados seriam clientes e teriam sempre razão. Faz parte do processo ilusório de fornecer uma pseudo-interatividade ao comprador.

O uniforme existe desde a Idade Antiga. De origem militar, servia para reforçar a identidade dos soldados, estabelecer a hierarquia entre os homens e seus posicionamentos no campo de batalha. Controle!

Atualmente, o uniforme atende aos mesmos propósitos, porém em um número maior de áreas. É o atendente sem nome de um restaurante fast-food, identificado apenas pelas cores. É o funcionário terceirizado de uma universidade, que se diferencia de professores e demais “colaboradores”.

A escola adotou – mesmo que de maneira simbólica - o uniforme no século XX pelas mesmas razões militares da Idade Antiga. Controlar alunos com mãos-de-ferro é o sonho de pseudo-educadores.

As instituições de ensino, muitas delas alicerçadas nas relações de consumo, perceberam que as algemas podem ser ornamentadas com flores, sem que o preso se dê conta do cárcere. É a máxima weberiana: o mecanismo de dominação ocorre quando o dominado não nota o processo de controle e auxilia na própria relação de submissão.

As escolas, localizadas em grandes capitais, notaram que o uniforme influencia no cotidiano de seus alunos adolescentes. Como a moda é preocupação recorrente de seu público, bastou terceirizar o serviço e lançar uma espécie de “coleção outono-inverno escolar”. Ou seja: o uniforme ganhou uma linha de camisetas e acessórios. O público expeliu mais uma vez a faceta consumista, com a coleção de uniformes, de várias cores.

Nesta relação de consumo, a escola lucrou novamente. Os jovens foram iludidos pela diferenciação, mas caíram de quatro na arapuca dos padrões de comportamento. As cores e os modelos das camisas são para todos, sem margem para criações autorais.

Assim, a sociedade de consumo – impregnada em um tipo de instituição que deveria primar pela cidadania – persiste em perseguir a própria utopia: o consumidor único, com pensamento único, servil aos produtos idênticos e sem as resistências tribais. A felicidade exterior e a falsa liberdade numa camiseta.

quarta-feira, 9 de março de 2011

O endereço errado


Depois de alguns anos de afastamento, provocado pelos compromissos da vida, a amizade entre nós foi retomada. Para cumprir uma promessa, fui conhecer o ambiente de trabalho dela, recém-conquistado por quem estava cheia de planos para alterar o entorno de seu universo.
           
Ao chegar no local combinado, o primeiro estranhamento. Os muros eram altos, com três metros de altura, pintados de cinza, sem vida. Talvez fosse uma nova corrente artística! A pintura era uniforme, sem identificações do lugar, sem quaisquer particularidades que dessem pistas do anônimo autor das pinceladas.
            
O recepcionista do portão de entrada estava armado de cassetete e vestia um típico uniforme de guarda. O próprio portão assustava pela imponência e por estar trancado àquela hora do dia com vários cadeados, dos mais variados formatos.
            
A justificativa do guarda para tanta preocupação eram as constantes fugas. Muitos dos internos escapavam com a luz do sol. Houve um que até sorriu para os guardas enquanto pulava o muro. Simplesmente desapareciam, às vezes com a ajuda de familiares e amigos.
            
Após a devida identificação, fui encaminhado para a recepção da unidade. Outro portão, este menor e com apenas uma tranca. Um funcionário me atendeu mecanicamente. Não foi necessária revista, pois minha amiga avisara a respeito do visitante.
            
O funcionário não foi grosseiro, mas manteve a pose. Tive que informar o que carregava na bolsa. A explicação dele foi imediata: como o lugar enfrenta diversos casos de violência, tornou-se necessário se precaver. E desconfiar de todos. Muitos dos internos têm históricos de agressão. Até armas de fogo passaram pelos mecanismos de segurança, embora os conflitos mais freqüentes envolvam socos e pontapés. Se é que isso refresca o clima.
            
Nos corredores, vários funcionários, muitos deles uniformizados. A roupa padronizada indicava um grau mais baixo na hierarquia. O trabalho consistia numa simples tarefa: monitorar os garotos o tempo todo, independentemente do que fizessem de forma oficial (limpeza, cozinha etc.). 
            
Os monitores foram treinados para compreender que – sempre, sempre - o objetivo dos homens engaiolados é sempre escapar. Qualquer aproximação, qualquer relacionamento gera desconfiança de ambas as partes. Posicionam-se como adversários no mesmo campo de batalha. Acordos informais mantém a paz temporária.
            
O tempo ali passa mais devagar, com o ar pesado, monótono, em permanente estado de tensão. Um monitor mais antigo lamentava que um dia pensou-se em recuperar ou desenvolver o indivíduo. Hoje, significava somente passar um período de suas vidas (neste caso, para todos os envolvidos).
            
O uniforme tinha outra serventia, embora a desculpa oficial consistia em sustentar o argumento de que a unidade era exemplar. O uniforme assassinava nomes. Viravam números. E ai de quem quebrasse a regra da boa aparência. Imagem é tudo, dizia a cartilha.        
            
Os indivíduos de bom comportamento – ou de bom relacionamento com a direção, que pode significar a mesma coisa – ganhavam regalias como recompensa. Conheci um deles durante a visita. Parecia um garoto de futuro. Vinha de família desestruturada, porém a mãe fazia questão de que ele se recuperasse a tempo de viver bem no mundo externo. Ela comparecia regularmente à unidade e cobrava providências da equipe diretora. Era vista como petulante e intrometida por muitos dos profissionais que trabalhavam ali. Quem era ela – na concepção deles – para criticar e dizer o que deveria ser feito, mesmo que tivesse razão?
            
O garoto fazia parte de um programa que incluía uma série de atividades extras, visando – na retórica da política pública – elevar a formação dele e assegurar que pudesse realmente sair dali com uma chance no mercado de trabalho. Ao conversar com minha amiga, no entanto, ficou claro que o programa não abria margem para a criação humana.
            
Criatividade era um empecilho. O que valia era cumprir adequadamente as regras, manter a aparência, apresentar bom comportamento e – se possível – não pensar sobre o funcionamento do sistema. E jamais questioná-lo.
            
Segundo uma das monitoras, aqueles indivíduos não tinham nada na cabeça. E repetia: cabeça vazia, oficina do diabo. Estavam ali para sair após prazo definido e – quem sabe? – mudar de instituição. Não seriam livres e – como bem frisou uma das integrantes da equipe diretiva – críticos, palavra excomungada do dicionário.
            
A filosofia que me foi apresentada se confirmava na agenda do dia. Tudo seguia a rigorosos horários: refeição, atividades físicas, visita ao pátio, encontro com familiares. Todas as tarefas – este era o nome usado de forma corriqueira – eram supervisionadas à risca.
            
Falhas eram inadmissíveis. Punições, constantes. Contagens aconteciam várias vezes ao dia, durante as filas e entradas e saídas dos pavilhões. Em muitos casos, o diálogo se mostrava peça de ficção. A conversa caminhava na base de gritos, claro que oriundos de quem tinha mais poder. 
            
Após um par de horas, minha amiga me acompanhou até a saída. Notou meu semblante decepcionado e assegurou que acreditava numa mudança. Que o local seria menos violento! Que os profissionais seriam melhor preparados para lidar com os jovens que ali estavam!
            
Que era possível pressionar os políticos para implantar mudanças estruturais de longo prazo!  E que faria o que fosse para alterar ao menos aquele micro-cosmo, aquela unidade que aprisionava pessoas!
            
Acreditei nas palavras dela, mas saí de lá com a estranha sensação de ter ido ao endereço errado. Com a devida licença poética, ela trabalha numa escola. 

terça-feira, 8 de março de 2011

O professor e o bode

Moralismo se faz com pressa. E política rasteira se pratica com desinformação. Quando os dois se juntam, para deleite dos hipócritas, julgamentos acontecem sem tempo de avaliação. Culpados e inocentes, vítimas e agressores, têm seus papéis definidos no calor da hora.

A Escola Estadual João Octávio do Santos, no Morro do São Bento, se envolveu num episódio impregnado de moralismo barato. Um dos professores de Matemática do ensino médio foi afastado por causa de uma aula. O professor utilizou exemplos de criminalidade, como tráfico de drogas e prostituição, para criar problemas aritméticos para seus alunos.

A história viraria fofoca nos bancos escolares se o assunto não chegasse à imprensa. A partir daí, as “autoridades”, em ritmo de prova de 100 metros rasos, correram para mostrar serviço e exerceram – sem assumir publicamente - os papéis de carrasco e juiz. Sequer cogitaram avaliar os riscos de um estigma, de uma execração pública para qualquer um dos atores da trama.

Os moralistas sempre agem com base em problemas pontuais. Jamais o colocam no contexto. Nunca esbarram na estrutura. Ignoram o entorno. Operam como se o mundo funcionasse no preto e no branco, sem considerar os diversos tons de cinza que transitam entre as duas cores. Reproduzem o enredo de uma novela no horário nobre, na qual mocinhos e vilões são claramente definidos, sem espaço para a contradição e as nuances.

É evidente que os exemplos utilizados pelo professor de Matemática são exagerados, reprováveis em termos pedagógicos. O professor poderia trabalhar o problema da segurança pública de inúmeras maneiras, sem dar margem a ataques histéricos e atabalhoados. É fundamental deixar cristalino que o objetivo não é defendê-lo, e sim colocar alguns aspectos que me parecem fundamentais para a compreensão mais aguda do episódio.

Embora tome decisões sozinho, um professor não é independente em absoluto. Se atua assim, é porque houve confiança ou negligência da equipe pedagógica. Quando o professor comete deslizes, a equipe tem a obrigação de orientá-lo e corrigir a rota das atividades dentro e fora da sala de aula.

Para evitar constrangimentos, é prática recorrente no planeta educação afastar o docente. O bode expiatório recebe o carimbo na testa, e a sujeira é enterrada embaixo do tapete. Não há co-responsáveis ou a percepção de oportunidade para transformar um erro em avaliação de um problema social.

Em Santos, existem escolas públicas e privadas que proibiram professores de discutir política em sala de aula às vésperas das eleições, no ano passado. Em uma das escolas, no Boqueirão, a diretora alegou que opção política era uma questão familiar e que os alunos poderiam se tornar rebeldes. Rebeldia e alienação, que poderiam ser palavras antônimas, foram costuradas como gêmeas.

No caso da Escola João Octávio dos Santos, o professor de Matemática, ao falar de criminalidade, não discorreu sobre alienígenas ou temas absolutamente distantes dos estudantes. Quem já foi ao Morro do São Bento sabe que os moradores convivem diariamente com a violência física e psicológica imposta pelo tráfico de drogas. Muitos dos adolescentes, que deveriam estudar, deixam a escola para se transformar em aviões ou vigias dos traficantes locais.

Na outra ponta da corda, a Polícia Civil anunciou – segundo reportagem do jornal A Tribuna – que investigaria possível apologia ao crime. Parece-me sensato acreditar que um professor, quando aborda a criminalidade, tem a intenção de despertar em seus alunos a consciência sobre o problema, e não formar uma geração de consumidores de cocaína e crack. Ou alguém apostaria na teoria de que um professor debate tráfico de drogas ou prostituição para recrutar soldados e garotas para o crime?

Esta história, infelizmente, engrossa o coro do delírio social. Perde-se a oportunidade de expor a frágil infra-estrutura do bairro, e permite-se que o Poder Público, omisso de carteirinha, se esconda por trás da máscara do politicamente correto. Neste festival de cinismo, prevalece o estigma – a “aula do crime”, como o caso foi intitulado –, e o principal envolvido é silenciado para assegurar que o estado de coisas sobreviva, sem maiores estragos.

Obs.: Este texto foi publicado originalmente no blog Conversas e Distrações, em fevereiro de 2011. É republicado neste espaço, a pedidos de leitores.

segunda-feira, 7 de março de 2011

Professor: esperançoso e reclamão

Quando atravessava o pátio de uma das universidades de Santos, encontrei-a pela enésima vez, mas mantive minha distância platônica. Uma professora pequena, cansada, com feições sérias. Ao mesmo tempo, rápida, agitada, ela transmite a sensação de que sempre há algo por fazer. Talvez para não quebrar a aura que construí em torno dela, nunca me aproximei para agradecê-la. A professora foi uma das responsáveis pela minha paixão por livros, embora não concorde – 25 anos depois – com muitos de seus métodos. Mas o “estrago” estava feito: a leitura como combustível de liberdade.

A lembrança pessoal é simplesmente o ponto de partida para a reflexão sobre este trabalhador contraditório, demasiado humano. É justo fazê-lo provar do próprio remédio? Sim, avaliá-lo sempre, e não enaltecê-lo um dia por ano. Distorção infeliz seria se apagássemos do quadro negro o antagonismo de suas qualidades e defeitos, elementos que o completam.


A cultura latina recomenda: mortos devem ser beatificados e dias comemorativos jamais devem servir para críticas. Assim deveria ser a reação diante de valores culturais: respeita-se, compreende-se, mas não necessariamente se aceita.

A história brasileira é desfavorável à figura do professor. O Brasil, durante a colonização e o período imperial, caminhou sem um sistema de ensino. A educação não fez parte dos planos durante quase 400 anos. A nação montou seus alicerces sem a presença de livros e educadores formais.

A elite brasileira sempre estudou fora do país. Ainda hoje o faz. Os endereços apenas se alternam. Inglaterra, França, Estados Unidos, Austrália. Depende do período histórico e dos cursos da moda. É claro que há exceções, mas que se mostram frágeis ou paliativas para mudar o cenário. O professor é personagem afetado diretamente; figura desvalorizada, vista muitas vezes como um empecilho para o desenvolvimento de um grupo de pessoas tuteladas por ele. Um entregador de informações para aqueles que visualizam os alunos como clientes e a escola como shopping center.

Pensar no papel social dele é o mínimo que se espera diante de um quadro tradicional de descontinuidade de políticas públicas. Este profissional é algoz e vítima da crise (eterna – podemos chamá-la assim?) da educação brasileira. O professor é vítima quando se mostra fruto do próprio sistema público, desmantelado a partir de 1964, inchado a partir dos anos 90 e que hoje se enxerga diante de uma encruzilhada: apostar na qualidade e perder parte dos alunos ou direcionar os recursos para mantê-los por mais tempo na sala de aula a qualquer preço.

O capuz de algoz lhe cabe bem quando o sistema o posiciona como ator principal de um teatro de sombras, no qual o jogo de cena tem valor substancial, e a essência entra como elemento de figuração. Neste momento, veste o papel de operário no sentido de apenas cumprir programas genéricos, sem o tom de pessoalidade que deveria estar presente na rotina de um processo de ensino-aprendizagem.

Ser professor é uma atividade desconectada ao reconhecimento do outro. O puro contra-senso do ser humano, que busca nas outras pessoas seu próprio caminho. Isso fica mais evidente numa sociedade calcada nas aparências, na qual ser julgado e absolvido pelos pares é inerente às relações sociais.

A falta de reconhecimento se manifesta pelo próprio trabalho dele, incapaz de ser demonstrado em períodos curtos e normalmente percebido – inclusive em momentos ruins – pelo exercício da memória do aluno quando fora da rede escolar.

O professor se caracteriza, por outro lado, pela insatisfação inerente a si mesmo. Todos os motivos anteriores o levam a reclamar do terreno a sua volta. Faz parte do exercício de crítica. Todo professor se julga um crítico social. O que ocorre, às vezes, é que muitos se deleitam com este exercício e se contentam em apenas ouvir o som da própria voz. Um prazer narcísico e doentio. A partir daí, sua figura se deteriora e ele sobrevive graças ao mero ritual mecânico de vomitar conteúdos para uma platéia disforme, desumanizada.

Na mesma universidade, outro professor me chama a atenção. Tive aulas com ele e somos colegas
. Suas opiniões ultrapassam os limites das salas, ganham corredores e pátios. Ele personifica a esperança no discurso para formar novos jornalistas, em tempos de pressões do mundo do entretenimento e do marketing. 

Por outro lado, não deixa escapar a chance de se queixar de todos os atores envolvidos nos universos acadêmico e jornalístico, inclusive ele próprio.

Os dois professores, de português ou de jornalismo, têm seus métodos, seus paradoxos, suas esperanças. Levam com eles a consciência – cristalina como água – de que formar pessoas é um território que ultrapassa as frágeis fronteiras da transmissão de informação e conhecimento. Formam seres para o mundo. E, acima de tudo, carregam e exibem com orgulho as cicatrizes de suas contradições. São humanos e – por que não? - educadores.

Obs.: Este texto foi publicado originalmente no blog Conversas e Distracoes em outubro de 2007. Caro leitor, não precisamos de datas comemorativas para remexer em boas lembranças.


domingo, 6 de março de 2011

Uma escola possível

Da janela da sala de aula, as crianças se sentem dentro de um helicóptero imaginário. Quando viram a cabeça para a esquerda, enxergam o Porto de Santos. Quando mantém os olhos à frente, vêem a orla da praia. Um pouco à direita, a Ilha Porchat. Com uma dose de paciência, testemunham o voo das asas deltas e dos paragliders.

As crianças passam boa parte do dia no alto do Morro do José Menino, entretidas em inúmeras atividades na Unidade Municipal de Ensino (UME) Padre Lúcio Floro. A escola é uma das três que trabalham em regime de tempo integral. Mais do que depositar alunos dentro dos muros por todo o dia, a Padre Lúcio Floro faz educação com poesia, assim como o religioso que – com coerência – dá nome ao espaço. (In)felizmente, o lugar é a concretização mais próxima do modelo ideal de educação, com dinheiro público.

A escola existe desde 2008. Todas as áreas são acessíveis a pessoas com deficiência física. O piso é demarcado com referências em borracha para ajudar deficientes visuais. As salas possuem placas em braille, assim como o elevador, que atende os três andares do local.

O número de grades e portões é reduzido, o que ameniza o caráter prisional que a maioria dos colégios carrega nas costas. As cores, mesmo longe da vivacidade que brilharia nos olhos de uma criança, escapam ao padrão “azul-calcinha-de-velha”, marca da rede municipal que reforça o ar cadavérico das fachadas escolares.

As salas da educação infantil não têm carteiras. No início, a construção do espaço chocou professoras, acostumadas ao modelo repressor para crianças de 3 a 5 anos. A ausência de mesas e cadeiras aproxima os alunos e dá maior liberdade para que possam conviver numa relação mais coletiva.

No ensino fundamental, até o 5º ano, as salas têm capacidade para 25 alunos, um terço menor do que a média das classes inchadas, inclusive nas escolas privadas. Na aula de informática, as crianças têm à disposição um número de computadores – todos em LCD - quase para proporção de uma máquina por aluno. Há até uma sala específica para crianças com necessidades especiais.

Conheci a escola Padre Lúcio Floro há poucos dias. A visita aconteceu com certa desconfiança. Pensava que os relatos de uma escola possível eram exagerados. Ou um exercício de legislação em causa própria, tão comum quando se fala de educação. O mais do mesmo predomina em um universo onde um enfeite adicional é alardeado como a invenção da roda.

A escola Padre Lúcio Floro vestiu, de forma efetiva, o modelo construtivista, aclamado por nove em dez educadores, praticado por poucos beatos no deserto. O construtivismo funciona como uma espécie de oxigênio na educação: todos sabem que existe, mas ninguém o vê. No final das contas, prevalece o modelo tradicional de ensino mais a política de resultados e as obsessivas estatísticas que robotizam o estudante.

Em dois anos de existência, as sementes começaram a incomodar. Os casos positivos se multiplicaram. Alunos de 1º ano, por exemplo, produzem textos com coesão e coerência, fato raro na rede pública nesta fase de aprendizagem. Crianças da educação infantil constroem conhecimento de culinária ou aprendem noções de finanças por atividades lúdicas, dentro e fora da sala de aula.

Outro exemplo: uma aluna de nove anos ficou em 4º lugar em um concurso municipal de redação. A proposta era adaptar uma notícia de jornal para conto de fadas. Dois detalhes: 1) Beatriz, a aluna, era a única do sistema público; 2) ela era a única do 4º ano. Os demais estudavam a partir do 6º ano.

A prática pedagógica é rígida, não no sentido militar disciplinador, mas para adequar um discurso coerente com a teoria. Este discurso decorre do diálogo entre equipe pedagógica (detesto o termo gestora, uma herança corporativa) e professores. A escola faz valer a autonomia diante da Secretaria de Educação, o que facilita inclusive a aplicação de recursos que chegam diretamente do Governo Federal.

Por essas e outras particularidades, a escola Padre Lúcio Floro se fortificou como uma exceção no cenário carente da educação pública. E, infelizmente, expôs as contradições do próprio sistema. Feridas que gritam e sangram diante da mesma janela do helicóptero.

Logo abaixo, no mesmo bairro, a UME Irmão José Genésio, onde equipe e professores sofrem com as políticas públicas tão instáveis quando enfermas. Mais antiga, virou em dois anos o primo pobre do morro. O cartão postal às avessas de um governo que sabe como fazer, mas opta pelo piloto automático da inércia. A paralisia que impede a metamorfose da exceção em rotina, com vista natural e panorâmica, como a admirada pelas crianças do alto da montanha.