sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

O rap vai ao castelo

As duas mulheres cantaram à capela para as 50 pessoas. O refrão “Negra sim, mulata não” paria olhares diversos, da surpresa à admiração. A música Mulata encerrou o ritual de pouco mais de uma hora, que lotou uma sala destinada quase sempre aos debates e exposições acadêmicas. 

Preta Rara e Negra Jack: rap com política

A sala, de número 315 na porta, está acostumada com tons de pele coerentes com a clareza de suas paredes e o ar de higienização hospitalar. Naquela noite de segunda-feira, pela primeira vez, a sala estava dominada por negros, muitos sem a obsessão pelo diploma na parede de casa. Mas todos orgulhosos porque uma deles – assim o sistema universitário os vê, como de outro mundo – chegou ao fim do caminho.

Joyce personificava o regime de exceção. Defendeu seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) em História, na Unisantos, um estudo sobre o movimento hip-hop na Baixada Santista, a partir de 1993, data de nascimento na região. O trabalho foi o mais concorrido do curso. De doutores a gente com ensino fundamental. Universitários de cinco cursos, de Letras a Pedagogia. Parentes, amigos e integrantes do movimento social, cada vez menos uma tribo vista como moda.

Joyce da Silva Fernandes é candidata a uma lista de preconceitos inerentes à sociedade brasileira. Ela tinha várias credenciais para dar errado no país que finge tolerar quem não nasceu europeizado ou não embranqueceu com as benesses do poder econômico ou com a fama das celebridades.

Joyce é negra, mulher e moradora de bairro de periferia. Veste-se com amor pelas raízes africanas. Já foi chamada de macumbeira na rua e quase foi contratada como cartomante. Joyce também é rapper, outro universo dominado pelos homens. Preta Rara, seu nome artístico, também enfrenta problemas por ser caiçara. Ela e Negra Jack formam o grupo Tarja Preta, a primeira dupla de mulheres rappers do litoral de São Paulo. Hoje, apresentam-se mais na Capital e no interior, onde são tratadas com reverência pelo conteúdo politizado e feminista de suas composições.

Naquela noite de segunda-feira, Joyce não era Preta. Joyce era uma professora de História, que se legitimava pelo rigor acadêmico e pela linguagem científica. A força das letras que, por exemplo, denunciam a falsa abolição e a exploração do corpo da mulher se transformou em argumentos para analisar um dos fenômenos culturais da história recente da região.

O rap abriu as portas do castelo, normalmente atento às próprias preocupações da corte. Dentro dele, há mentes resistentes que transgridem ao compreender a necessidade de conversar com o mundo lá fora, de maneira horizontal, sem pedantismo ou arrotos de conhecimento de almanaque. 

O feminismo na rima e na postura artística

A sala 315 serviu de testemunha para um instante único, um ponto de partida para a aproximação da elite educacional com aqueles que dinamizam a cultura na base social, lutam contra os vácuos da era do consumo e constroem novos caminhos de conhecimento sobre o mundo que, inclusive, rodeia os muros do castelo. Naquela noite de segunda-feira, a sala 315 representou a chance concreta de uma sociedade em que brancos e negros, homens e mulheres, possam conviver com senso de coletividade e atenção para os problemas que insistem em permanecer sob o manto da invisibilidade social. 

A sala 315 ainda se constitui como exceção. Abrigará, possivelmente, muitos discursos, por vezes inócuos, por vezes relevantes, mas suas paredes anti-sépticas não conseguirão limpar aquela narrativa, encerrada com duas rappers que, em rimas de indignação, desnudaram a condição da mulher negra, maioria fora do castelo, visitante ocasional dentro dele.

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