sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Como parecer 'inteligente' no Dia Nacional da Consciência Negra



Marcus Vinicius Batista

Se você está em crise de abstinência e precisa de uma dose de opinião para se sentir bem nas redes sociais, é só seguir o caminho abaixo. Se você sente falta de ser o protagonista dos grupos de Whatsapp, com o poder de bloquear e atrair seguidores, é só tomar posse das informações deste texto, fruto de anos de achismos e impressões colhidas em almoços, jantares, cafés da tarde onde a aparência é tudo.

Antes, uma sugestão: não se apegue às estatísticas. Nem caia na tentação de distorcê-las. Os números podem ser cruéis com você. Eles exigem sempre mais números, e o palco só estará aberto para você hoje. Amanhã, é ressaca. Para negar qualquer coisa, finja que elas não existem. Estatísticas mantém essa “qualquer coisa” em modo de sobrevivência.

Comece questionando a data de hoje. Sempre funciona. Tira o foco do que importa. Não pareça presunçoso. Não fale no “Dia da Consciência Branca”. Fale em “Dia da Consciência Humana”. Afinal, somos todos iguais, não?

Depois, tangencie – que significa “desviar um pouco” – do conceito de racismo estrutural. Não o explique. Use exemplos de presença negra na sociedade. Policiais, artistas, jogadores de futebol. Você precisa somente indicar que ouviu falar no termo ‘racismo estrutural’. Ouvir falar é o passo para o degrau seguinte.

Na sua ascensão intelectual, questione o racismo inverso. Fale sobre a discriminação que pode alcançar a todos, que o Brasil é uma sociedade onde todos vivem com harmonia. Que alegar racismo contra um grupo só – mesmo que ele seja a maioria, mas – pelo amor de Deus – não toque nisso, lembra dos números? – é manter privilégios, é desejar benefícios. Igualdade sempre.

Agora, é o momento da globalização. Coloque os Estados Unidos na conversa. O Tio Sam vai te salvar. Pode falar em nome Dele. É clichê? Depende de quem te escuta. Fale como o racismo nos Estados Unidos é diferente, que lá é pior. Só ver a violência na TV. Aqui, temos casos esporádicos, que são explorados pela mídia para ganhar dinheiro. E pule para a casinha seguinte. Você está no rumo da sabedoria.

Para não parecer arrogante, entre em questões populares. Futebol. Mencione jogadores, lembre que o melhor de todos é negro, mas fique dentro das quatro linhas. Só jogadores. Não aborde técnicos, dirigentes, médicos, crônica esportiva e assim por diante. Teus amigos, coitados, podem confundir com a Bélgica. Você está aí para esclarecer a democracia racial brasileira.

Democracia é falar em política. Então, cite a Fundação Palmares. Não toque no nome do presidente para evitar perguntas sobre quem não se conhece. Elogie como o governo não é racista, pois escolheu um negro para comandar uma fundação importante. Na retórica política, meu amigo, exceção vira regra. Forma substitui conteúdo.

Não se convenceram de que o Dia Nacional da Consciência Negra é um problema de privilégio? É a hora das cotas. Mesma regra de ouro: na política, exceção vira regra. Forma substitui conteúdo. Repita, por favor, em voz alta! Fez? Ótimo, se agarre nas fraudes, aquelas exceções que saíram na imprensa que, de vez em sempre, está do nosso lado. Se se sentir acuado, Google neles. Tudo o que sai publicado é verdade.

Agora é o momento de conter os ânimos e gerar identificação. Pegue o touro pela unha e pelo coração. Torne a coisa pessoal, meu caro. Ancestrais, relações pessoais, afetividade. Conte a história de seu tataravô que era negro, daquela prima do interior – se não lembrar do nome, tudo bem – que é negra, do amiguinho da sala de aula, o único em oito anos. De como seu tio trata bem os empregados. Na mosca! Você vai parecer sensível e provocará lágrimas nos outros. Se quiser, pode chorar também. Não é fraqueza, não.

Você conseguiu se recompor? Então, lidere e termine a conversa – dê a última palavra, sempre, como mantra para vencer – com o vídeo do Morgan Freeman. Quer melhor saída do que pegar emprestada a fala de quem interpretou Deus? Mas só use o trecho da negação. Mais do que isso, há o risco de brotar contexto, essa praga que contamina quem gosta de estudar.

Espero que dê certo. Tenho certeza de que você vai parecer ‘inteligente’ no dia de hoje. Até porque você falará com propriedade arrendada de algo que parece que não existe: o racismo. E dia 20 de novembro, meu querido, hoje é seu dia!


quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Mulheres raras


 Marcus Vinicius Batista


Raras são as mulheres que nunca conviveram com o fantasma do abuso sexual. Que não conhecem um relato, uma história, um fragmento de dor de alguém, próximo ou distante, vítima da violência masculina no Brasil. Isso quando não protagonizam o episódio e, daí em diante, entram numa alameda escura sem possibilidade de escolha ou retorno.

Raras mulheres são aquelas que nunca sentiram uma mão boba no ônibus ou metrô lotado. Ou o homem sentado ao lado, que finge dormir ou explicita seu ato num sorriso maroto, cujo cotovelo escapa e esbarra em seus seios. A mulher que testemunha o corredor diminuir de tamanho, aperto que “autoriza” o sujeito se encostar nela e espremê-la enquanto ele olha para o mundo lá fora numa simulação de movimento que entende como natural.

Raras mulheres são aquelas que nunca foram reprovadas por olhares – e, às vezes, por palavras de moral e bons costumes – por conta de suas roupas, sua maquiagem, seu jeito de andar, falar ou se sentar, como se dessem salvo-conduto para que os homens agissem de acordo com suas “necessidades”.

Raras são as mulheres que nunca foram classificadas entre duas categorias: a mulher para casar e a mulher para sacanagem. A sinhazinha e a mucama. A reprodução moderna da Casa Grande e da Senzala que permite ao homem ter dois comportamentos, um para o cidadão de bem que adestra e exibe a mulher, outro para o cidadão de bem que precisa “libertar suas energias”.

Raras são as mulheres que nunca se sentiram culpadas ou envergonhadas por serem vítimas de violência. A palavra dura, o tapa, o controle financeiro, a humilhação pública diante de amigos e parentes, a ausência de escolha profissional, o sexo quando o outro deseja. “Não foi nada”, recomenda-se justificar. “Eu mereci”, sugere-se repetir em público. “Ele trabalha tanto”. “Ele está com problemas”, segue o receituário.

Raras são as mulheres que, violentadas, conseguem denunciar a selvageria dos “homens que não sabem o que fazem”. Que conseguem enfrentar a desconfiança de gente do sistema de segurança, do sistema de saúde, do Poder Judiciário, de muitas religiões.

Raras são as mulheres que foram ouvidas quando disseram não, não quero. É preciso ser chata, desenvolver melhor a comunicação para lidar com a surdez alheia, com a cegueira seletiva do outro, que – inclusive neste caso – considera a persistência uma qualidade.

Raras são as mulheres que podem beber em público sem serem observadas como vadias. Homem enche a lata. Mulher dá vexame. Homem é o engraçadão da turma. Mulher está seduzindo. Se estiver de saia curta, batom vermelho e decote, ela está pronta para o abate, como muitos gostam de pronunciar. Ela está querendo, ela está pedindo, falas que envolvem os casados, solteiros, tiozões do churrasco, bêbados ou sóbrios.

Raras são as mulheres que aparecem nas estatísticas de violência sexual, crime no qual se estima que somente 10% dos casos são notificados. E raras aquelas que vão testemunhar a condenação do agressor, com quem conviveram em família, em casa, na vizinhança, no trabalho.

Raras são as mulheres que nunca ouviram seu desempenho profissional ser associado à capacidade de seduzir o chefe, o colega de trabalho. Ou, por outro lado, que nunca ouviram uma piada feito só brincadeira, uma palavra obscena fantasiada de estava só comentando, que é isso, você está exagerando. O teste do sofá, uma instituição brasileira que beira ser item curricular.

O Brasil, ao contrário, não é um país raro. É um lugar comum, na sua perversidade particular de lidar com mulheres. O país da minha filha, nunca. Será? Mas a do outro, quem sabe? 

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Estuprador, você está autorizado!





Marcus Vinicius Batista

Caro estuprador não intencional,

Maldita imprensa competente que resolve divulgar as coisas que deveriam ficar nas sombras! Mas, pensando bem, você acaba de receber uma notícia daquelas que valem o ano, que valem a sua liberdade. Desculpe-me, vai, temos que nos descontrair. Até porque as pessoas levam essa história de violência sexual muito a sério.

Os homens não sabem o que fazem, já dizia a velha frase. Os outros homens, aqueles que têm dinheiro, status, amigos poderosos. Esses se arriscam demais. E nos chamam quando a coisa esquenta. Tá cheio de câmeras por aí. Tá cheio de gente cheia de razão e queixas – principalmente essa mulherada ativista com falta de louça para lavar.

Somos a exceção. Nós protegemos vocês. Nós somos homens com H maiúsculo. E protegemos com intenção mesmo, alegando justamente o contrário para acolher vocês, chamados de estupradores por uma sociedade cheia de moralismo quanto ao sexo.

Nós não somos apenas bons de lei. Somos bons de lábia. Somos criativos a ponto de distorcer a própria lei e fingir que há outra que não existe. Dominamos as palavras. Viu nossa criação: ESTUPRO CULPOSO. A contradição em si vira expressão única, sinônimo de machismo, privilégio, mas também de consciência e lealdade de gênero. Estupro Culposo tem que ser escrito em letras garrafais, tamanha a genialidade do nosso Frankstein de terno, gravata e toga.

No entanto, saiba que toda palavra é letra morta – sempre quis dizer isso – sem o teatro do absurdo. Se você não sabe, é um modelo teatral mesmo – essa não inventamos -; apenas distorcemos o conceito a nosso favor.

Nós nos revezamos no palco em três personagens. Um cria o termo, o outro fica em silêncio ou – no máximo – chama a atenção com polidez. E o terceiro...Ah, o terceiro é carrasco e executor. Faz o trabalho sujo para limpar a casa. Aquele quem coloca a mulher no seu devido lugar. De novo. De novo. E de novo. Sacou o erotismo desta sequência? Como você fez quando ela também fez seu teatrinho. Como não queria se estava lá? Então ficasse em casa!

Você apenas atendeu seus desejos, estimulados por ela, claro. Olha as fotos que posta nas redes sociais. Tá querendo o quê? Olha as roupas que usa, a maquiagem, o cabelo, o andar, como fala e sorri com as amigas. Tá querendo...E você, qualquer que seja você, um dos 135 supostos agressores diários no Brasil, não faz com intenção. São as intenções da natureza humana, é preciso dizer o óbvio. Você, redundante dizer, é vítima da sedução da carne. Da sedução de quem estava com más intenções.

Meu caro estuprador, você não tem culpa de a sociedade ser assim. E nós estamos aqui para ajeitar tudo, corrigir a rota, fazer Justiça, colocando os nomes corretos nas ações e, principalmente, nas pessoas envolvidas. Você pode ter algum trabalho, passar algum sufoco, ouvir umas besteiras desta mulherada, mas é parte do jogo. Não se mantém tudo como sempre esteve sem algum esforço, habilidade, talento e união.

No final, costuma dar certo. Batemos o martelo: a culpa é da vítima!

Atenciosamente, Clube dos Machos – sub-sede Santa Catarina

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Humor e preconceito



Mariana Amarante

O humor no Brasil, por muito tempo, foi dominado por homens brancos, cis e heterossexuais, assim como todos os outros aspectos da sociedade. Portanto, é possível perceber inúmeras semelhanças nas piadas, visto que a maioria tem um alvo em comum: as minorias.

As piadas estereotipadas existem há muito tempo, sempre usadas como uma forma de retratar, de forma “engraçada”, o que a sociedade pensa de fato. Piadas preconceituosas repetem um discurso agressivo, na tentativa de manter as minorias no lugar que elas lutam para sair, além de serem rasas, sem reflexão e possuírem um único objetivo: atacar os que sempre foram atacados.

Atualmente, o questionamento sobre o limite do humor está ganhando cada vez mais força, fazendo com que muitos comediantes (não todos) repensem o tipo de piada que criam e reproduzem, e o público questione o que o faz rir. Estabelecer um limite para o humor é uma tarefa complexa, pois nos força a enxergar além da nossa “bolha” e questionar o papel da piada na sociedade.

Na minha concepção, o humor exige diálogo. O comediante deve, de certa forma, estabelecer uma conexão com o seu público, possibilitando, assim, uma troca e um crescimento para ambas as partes. O humor pode ser entretenimento e fazer com que o público tenha um momento de alívio, mas também deve trazer reflexões. 

As piadas são uma ferramenta de enfrentamento da realidade, muitas vezes fazendo com que seja mais fácil refletir e encarar situações complexas. Sendo assim, acredito que piadas estereotipadas não levam a lugar nenhum, apenas reforçam os problemas sociais já existentes, ao invés de confrontá-los.

Vários humoristas dizem que o humor precisa de um alvo, e concordo com isso. Entretanto, é necessário escolher o alvo correto. Se o tema é racismo, a piada não deve ser racista, mas sim dialogar com o público de forma que o faça refletir sobre o quanto o racismo está presente na nossa sociedade atual e fazê-lo chegar a conclusão de que isso precisa mudar. 

O humor é a verdade com um nariz de palhaço, ou seja, uma piada nunca é só uma piada. Ela carrega todo um discurso, por mais que o humorista que a faça diga que não. As piadas podem ser racistas, homofóbicas, machistas etc, mas também podem ir contra todos esses discursos opressores.

Questionar o ato de fazer piadas preconceituosas não é, de forma alguma, uma censura ao comediante. Muito pelo contrário, é uma maneira de fazê-lo enxergar que o discurso dele fere a liberdade de uma parcela da população. Não pode existir “liberdade de expressão” apenas para um grupo de pessoas, é preciso existir para todos.

Se o humorista faz uma piada preconceituosa, ele precisa, no mínimo, lidar com a revolta da parcela da população que foi atacada e assumir a responsabilidade pelo que foi dito. O humor possui responsabilidade assim como qualquer outro discurso. Volto a dizer que as piadas refletem a realidade e, se existem piadas preconceituosas, é porque vivemos em uma sociedade desigual. Ao invés de repetir o discurso, o humor pode ser usado como ferramenta para mudá-lo.

Com os questionamentos, foram surgindo espaços no humor para pessoas das minorias. Hoje, temos um cenário com mais mulheres, negros e pessoas LGBTQ+ fazendo stand-up, por exemplo. Com isso, as pessoas se sentem melhor representadas e há voz para indivíduos que não são de uma parcela privilegiada da sociedade, trazendo o humor como uma forma de enfrentamento à realidade desigual em que vivemos.

As piadas podem ser usadas para argumentar contra os preconceitos existentes e fazer o público refletir sobre a situação atual do país. Não só a situação social, mas também econômica, política, entre outras. O humor pode ser muito importante para trazer mudanças se fizermos bom uso dele, e não apenas o tratarmos como algo vazio e sem propósito.


quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Você realmente dá valor ao professor?



Marcus Vinicius Batista

Pense com calma antes de responder à pergunta acima. Não precisa ser em voz alta. Só peço honestidade. Como não me atrevo a especular, vamos colocar deste modo genérico: vivemos num lugar – fica a seu critério escolher o endereço – onde está entranhada uma das hipocrisias mais nocivas que conheço, o professor é essencial e deve ser valorizado.

O cinismo em torno do professor está dentro dele, fora dele, em torno dele. Sou professor há 18 anos e talvez esteja enfrentando as desilusões da “maioridade pedagógica”. Duvido um pouco, comportamento reforçado após sete meses de aulas on-line, período de muita observação, aprendizagem, erros, dissabores e testemunho do melhor e do pior do ser humano.

Meu filho de dez anos vivencia o mesmo período de prisão domiciliar-escolar. Estuda em uma boa escola, convive com professores que sangram para ensinar e aprender. Peço que meu filho os agradeça sempre, esperançoso de que um dia ele compreenda minha súplica e insistência.

Por outro lado, minha filha, de 18 anos e no último ano do Ensino Técnico, é vítima e alvo desta tranqueira que é o Ministério da Educação e seus líderes medievais, com seu genocídio intelectual em formato de política pública. Mari ficou cinco meses sem aulas. O ano letivo dela terminará em fevereiro de 2021, se não houver surtos governamentais ou coelhos da cartola do ministro do mês.

A pirâmide não se sustenta. Rachaduras e vazamentos corroem todas as perspectivas, da base ao topo. Vejo escolas que reduziram salários, aumentaram cargas de trabalho, “roubaram” tecnologias e tempo alheios, fingindo uma modernidade que se traveste em bobagens ocas chamadas de inovação, métodos etc. São casas que escravizam todos sem misericórdia, contando com uma servidão voluntária dos mais gananciosos ou medrosos (por trás da máscara, todo ganancioso é um apavorado, pois teme que façam com ele o que ele – capitão-do-mato – faz com seus iguais).

A mediocridade conta com a conivência de uma parcela de seus principais investidores: as famílias dos alunos. É óbvio que depende do caso, mas me assusta um perfil específico: pais e mães que enxergam seus filhos como clientes; o professor, como empregado; a escola, como pizzaria; e o ensino, como meia muçarela, meia calabresa. Não importa a qualidade do queijo ou da linguiça ou se seu filho pensa como a pizza é feita. Basta que seja entregue, se possível por um motoboy de aplicativo, o professor uberizado.

São pais e mães que oscilam entre a ilusão de um sonho no qual a escola nunca entregará e o mesmo lugar como um depósito que libertará adultos infantilizados, por algumas horas diárias, de suas responsabilidades.

Sou professor de adultos. Não tenho talento para ensinar crianças. Admiro quem trabalha com elas, diante de tantas incertezas e ingratidão. Festinha anual não é muito obrigado. Presentinho no dia 15 de outubro não passa de convenção social para limpar a imagem.

Homenagens apenas aliviam a dor quando o resto do ano se assemelha a um espancamento moral, emocional e até físico. Homenagens são um paliativo com duração de 24 horas, se tanto. Desejo o entendimento de que estudar – e repito: falo de adultos, que têm que assumir suas escolhas – significa formar-se. Construir-se. Avançar e retroceder com consciência. Fazer por onde antes de cobrar, para falar o português claro.

Vivo assombrado com a cultura do não estudo. A cultura da receita de bolo, das fórmulas, das leituras superficiais que auxiliam nas polêmicas virtuais, mas envergonham na vida. Alunos que se portam como crianças mimadas, pouco dispostos a sequer pensar nos porquês do que está sendo dito. Consomem passivamente. Culpa de muitos professores também, sendo redundante.

A vida on-line só reforçou uma inércia de muitos – sempre há exceções -, algozes e vítimas de uma escola (co-autora) que historicamente assassinou a curiosidade, a imaginação e o interesse pelo mundo em volta. Estudantes que se preocupam com questões cosméticas, tal o cliente de pizzaria que come o que lhe é servido, falsamente preocupado com os ingredientes-conteúdos, domesticados pelas notas e demais burocracias que camuflam o pensar crítico.

E nós, os professores? Caminhamos no meio do tiroteio de arma em punho, sedentos para também terceirizar a culpa, escapar da responsabilidade, sobrevivendo na contradição vítima-agressor. Se todos fogem do banco dos réus, então de quem é a culpa? Aí é que reside o coração moribundo. A bronca é de todos, mas também não é de ninguém, feito a piada sobre a responsabilidade sobre a escola pública no Brasil.

Acompanho professores exaustos, acusados de não trabalhar. Gente que estudou por décadas para contar as moedas durante boa parte do mês, quando não o mês inteiro. Mas também testemunho professores que se julgam eleitos, nos arroubos de autoritarismo e arrogância, o que inclui – em certos casos – a recusa em aprender e o olhar de superioridade sobre os demais atores desta peça mal escrita, principalmente os alunos. Como cansa ouvir professor que só sabe falar mal de estudante! A mentalidade envelhecida de quem se esquece do caminho percorrido.

Fico entristecido ao ver professores sem consciência de classe, como se não fossem trabalhadores comuns. Presas fáceis para todos os fatores que tento rascunhar neste texto pessoal. Sinto decepção em conviver, de vez em quando, com professores que sofrem de “professorite”, doença marcada por narcisismo, fala sem a necessidade de ouvinte, ausência de escuta, rompantes de sabichão, ego maior do que a escola onde trabalha.

Todos estamos sujeitos à contaminação viral. A questão é que a doença pode se tornar crônica em muitos hospedeiros. Como vacina, resta somente o autopoliciamento diário, ainda assim sem comprovação científica. Eu tento resistir, juro que tento.

E não sobrou ninguém para poupar? Não. Somos todos cúmplices no lamaçal no qual se transformou a educação. Estamos enterrados até o pescoço em moralismo, utilitarismo, tecnicismo, jogos de cena que torturam os grandes teóricos e exploram seus nomes e legados em vão, a escola como supermercado de qualidade duvidosa, o ensino como fast-food de validade vencida. Todos temos culpa na construção de uma cadeia produtiva com pouca ou nenhuma reflexão, com muitos delírios e fantasias. Sabe o papo furado de professor como missionário, como sacerdote? Esta lição caricata é básica de primeiro dia de aula.

Amanhã, estarei em sala de aula virtual. Amanhã, tentarei novamente ser um trabalhador que cumpre sua função. Sem alucinações. Da melhor maneira que for possível. Como um ofício. Com minhas malditas deficiências, inclusive. E mais uma vez com a pergunta: eu dou realmente valor ao professor?

terça-feira, 19 de novembro de 2019

Nós falhamos!



Marcus Vinicius Batista

Se falar de racismo no Brasil é chafurdar na lama do óbvio, vamos a duas constatações imediatas. A primeira é que, se você desconhece que existe discriminação racial no país e que ela está ligada de forma umbilical ao preconceito de classe social, só posso crer que existem três alternativas saltitando na sua frente:

a) ignorância absoluta do que acontece além da sua janela e talvez dentro de seu mundo de grades ou bolhas;

b) má fé por quaisquer interesses individuais ou sociais;

c) a História, a Antropologia, a Sociologia, a Filosofia, a Medicina, a Engenharia, o Direito e as demais áreas do conhecimento passaram ao largo da sua formação educacional e cultural, seja por responsabilidade de quem te educou, seja por responsabilidade sua mesmo!

Minha crença: d) Todas as alternativas anteriores.

A segunda constatação é que as instituições brasileiras sempre falharam em seus papéis para enxergar os negros, para combater o racismo ou sequer para dar voz a eles, salvo exceções, de nomes de uma lista pequena a datas comemorativas, que esfregam a regra na cara de todos. Como derivação desta redundância, é fundamental tirarmos o peso absoluto das costas das instituições, como entidades espirituais que aceitam tudo e nunca reclamam como sistema, e assumirmos a cota que nos cabe. Temos que falar sobre pessoas, sobre seres humanos (não representam a mesma gente, muitas vezes) e, principalmente, sobre o que nos faz criaturas selvagens.

Nós falhamos como indivíduos, como grupos sociais, como sociedade, como nação, como qualquer critério que nos lembremos para enquadrar as relações raciais brasileiras. Erramos porque aceitamos o politicamente correto como limite. O oportunismo da convenção social.

O equívoco se repete nas falas adequadas ao momento histórico, nos argumentos “brancos” que soam como sussurros de culpa não assumida ou de medo da retaliação.

Nós falhamos porque aceitamos a conversa mole de que tudo vai passar, de tudo está mudando como se estrada fosse linear até um desfecho de sorrisos felizes, abraços apertados, mãos dadas e arco-íris no pé da serra. Erramos de forma grosseira quando acreditamos que o outro, do alto de sua arrogância racista, vai mudar de comportamento pelo simples fato de que alguém tentou explicar a ele que o mundo é diferente de seu olhar superior.

Errei quando, no mestrado, escrevi uma dissertação sobre racismo dentro das escolas públicas pela ótica do professor que se considera negro – a primeira sobre o tema na universidade onde estudei e sou professor. Quando defendi o trabalho, há 11 anos, só tinha dois colegas negros no curso, nenhum professor, e julguei que cumpria um importante papel social ao escrever sobre um problema crônico que me incomodava desde o tempo das redações jornalísticas de predomínio branco onde atuei. Insuficiente.

Minha falha foi também acreditar somente na força da palavra. Em crer que, em sala de aula, ao abordar todos os anos, nos 17 como professor universitário, a temática do racismo no país, via construção histórica, definições conceituais, tentativa de derrubar o senso comum (exemplo: o racismo no Brasil é mais leve do que nos Estados Unidos), imagens vendidas na mídia. Jurei que poderia alterar raciocínios viciados em poder silencioso de uma plateia majoritariamente branca. Alguns talvez tenham parado para avaliar o som que vinha da lousa.

Desejo o benefício da dúvida, instalado na incapacidade de medição objetiva do trabalho de professor. O mesmo vale para o jornalista que publicou dezenas de textos sobre o assunto e insiste em rascunhar uma reflexão como esta, ciente de que os índices deficientes de medição de leitura vão cair, como acontece com os escritos sobre população de rua e violência sexual.

Nós falhamos porque tentar convencer com palavras parece placebo num momento histórico de retrocesso, de liberdade para a intolerância, para a truculência, para o palavrório que endeusa a ignorância, tanto a violenta como a oca de conteúdo. Tudo com o selo de “qualidade” das lideranças políticas e parte dos coronéis religiosos.

É a hora de não aceitarmos mais os racistas. De ter uma postura – mais do que retórica – antirracista. De não fazer só muxoxo para o papo furado de “tenho amigo negro”, “tenho primo de quinto grau”, “a avó da tia da minha madrinha foi escrava”.

Também não dá para apenas repetir as estatísticas das diferenças raciais/socioeconômicas brasileiras. Os números mudam, porém a ordem das coisas permite que se substituam os dados na mesma tabela. Copia e cola.

Não dá para se surpreender com o ar de surpresa – tão redundante quanto a própria frase - dos jornalistas ao “descobrirem” a existência de um ou outro técnico negro, ou que as torcidas europeias, brasileiras, caiçaras ou do time da faculdade entoam cânticos ou grunhidos animalescos para jogadores de futebol vistos como macacos. Ou quando “percebem” – e se calam - que os dirigentes e as entidades organizadoras literalmente jogam para a torcida.

Sempre vi datas comemorativas como uma contradição. Celebrar é lembrar juntos e isso não significa passar a mão na cabeça e fechar o bico pelo resto do ano. Significa demarcar território e se mexer. Alterar. Punir quem comete crime – racismo é crime, para ser óbvio outra vez! – em vez de engolir as desculpas esfarrapadas que cercam um silêncio misericordioso de quem se beneficia das discriminação em todas as instâncias, em todas as instituições.

sábado, 9 de novembro de 2019

A revolução pela consciência (Escritas do Cotidiano # 75)


Christian Godoi

... então a personagem expirou. Cansada de todo o sofrimento ao qual fora exposta, resolveu reunir seu grupo na quadra da centenária escola de samba do bairro. Ali, discursou, inicialmente, para um pequeno grupo. Dissera que trabalhara por trinta anos com a expectativa de conseguir tranquilidade na velhice. Não levou em consideração o tempo dedicado a outras atividades sem o devido registro...

Crescera ouvindo os adultos pregando um país em desenvolvimento. Este que não se concretizou. A miséria sempre o assombrara, fosse no campo, onde os latifundiários ganhavam cada vez mais poder; fosse na urbe, na qual as periferias tornavam-se cada vez maiores.

Ali, ela discursara; por que deveriam se manter quietos em seus barracos mal iluminados? Por que tinham que viver precariamente? Por que existiam tantos espaços, prédios e apartamentos vazios? Por que necessitavam mendigar empregos em troca de comida, praticamente? Por que deveriam ganhar apenas poucos reais por hora? Por que ver os filhos sem perspectiva de futuro? Por quê?

Por que aquela minoria da Casa Grande tinha imensos quintais, sem ter feito algo para conquistá-los? Afinal, a terra é de todos. Pregam um discurso sobre trabalho, quando a verdade sempre foi a exploração! Pregam a propriedade, quando o fato é que ganharam ou herdaram de alguém a terra, demarcada ou apropriada ainda sob o espectro colonial.

Por que, então, deveriam estes, que escutam a fala contundente da personagem, se aquietarem em seus minúsculos espaços no transporte público, assistindo ao desfile de veículos miliardários emparelharem, com seus proprietários ressecados pelo ar condicionado ignorarem a existência do entorno? Era a hora, então, dissera a personagem, de tomar aquilo que lhes era de direito: a dívida das elites para com o povo. Uma dívida que carregara cada gota de sangue índio, derramado no chão das aldeias estupradas; cada lágrima ou lembrança dos africanos capturados e encerrados no porões negreiros, envolvidos pelo calor fétido das fezes e da urina, das infecções e das mortes assistidas.

Era hora de as elites pagarem pelas chibatadas aplicadas sadicamente às costas dos revoltados pela condição de bichos que lhe eram impostas. Estes agora tinham as armas, tinham o motivo, tinham vontade. Bastava a consciência. Nenhuma casa, apartamento, ou mansão, em qualquer lugar que fosse, ficaria sem morador. Toda e qualquer propriedade seria deles a partir de agora.

O Estado não poderia mais segurá-los, desde que tivessem a consciência de que deveriam estar juntos, não em busca da conquista individual, mas do bem comum. Não precisavam de piscinas para uma família, mas sim de dignidade para todos. Era a hora. Muitos dos seus haviam chegado lá: tinham consciência, estudo, educação. Agora eram médicos, professores, engenheiros, empresários.

Por que deveriam se submeter a ficarem excluídos, distantes, nas periferias, se o centro fora construído e mantido por eles? Não, era hora da revolução. De tomar cada espaço, de dividi-lo, de desfrutá-lo, de organizá-lo, para que todos tivessem as mesmas oportunidades, e uma sociedade mais justa se formasse.

Para isso, aqueles que haviam desfrutado das benesses do capital ao longo dos séculos deveriam, em silêncio, para a manutenção de suas vidas, acatar a revolução. Afinal, só saberiam o que viriam, depois de sua conclusão...

Agora era a hora da luta, não de facções, nem de comandos, nem de partidos, mas de coletivos, de uma totalidade ainda impossível, mas que deveria ir se construindo das metrópoles em direção aos campos, e do campo em direção às aldeias... e assim foi...