Christian Godoi
... então a personagem expirou. Cansada de todo o sofrimento ao qual fora exposta, resolveu reunir seu grupo na quadra da centenária escola de samba do bairro. Ali, discursou, inicialmente, para um pequeno grupo. Dissera que trabalhara por trinta anos com a expectativa de conseguir tranquilidade na velhice. Não levou em consideração o tempo dedicado a outras atividades sem o devido registro...
Crescera ouvindo os adultos pregando um país em desenvolvimento. Este que não se concretizou. A miséria sempre o assombrara, fosse no campo, onde os latifundiários ganhavam cada vez mais poder; fosse na urbe, na qual as periferias tornavam-se cada vez maiores.
Ali, ela discursara; por que deveriam se manter quietos em seus barracos mal iluminados? Por que tinham que viver precariamente? Por que existiam tantos espaços, prédios e apartamentos vazios? Por que necessitavam mendigar empregos em troca de comida, praticamente? Por que deveriam ganhar apenas poucos reais por hora? Por que ver os filhos sem perspectiva de futuro? Por quê?
Por que aquela minoria da Casa Grande tinha imensos quintais, sem ter feito algo para conquistá-los? Afinal, a terra é de todos. Pregam um discurso sobre trabalho, quando a verdade sempre foi a exploração! Pregam a propriedade, quando o fato é que ganharam ou herdaram de alguém a terra, demarcada ou apropriada ainda sob o espectro colonial.
Por que, então, deveriam estes, que escutam a fala contundente da personagem, se aquietarem em seus minúsculos espaços no transporte público, assistindo ao desfile de veículos miliardários emparelharem, com seus proprietários ressecados pelo ar condicionado ignorarem a existência do entorno? Era a hora, então, dissera a personagem, de tomar aquilo que lhes era de direito: a dívida das elites para com o povo. Uma dívida que carregara cada gota de sangue índio, derramado no chão das aldeias estupradas; cada lágrima ou lembrança dos africanos capturados e encerrados no porões negreiros, envolvidos pelo calor fétido das fezes e da urina, das infecções e das mortes assistidas.
Era hora de as elites pagarem pelas chibatadas aplicadas sadicamente às costas dos revoltados pela condição de bichos que lhe eram impostas. Estes agora tinham as armas, tinham o motivo, tinham vontade. Bastava a consciência. Nenhuma casa, apartamento, ou mansão, em qualquer lugar que fosse, ficaria sem morador. Toda e qualquer propriedade seria deles a partir de agora.
O Estado não poderia mais segurá-los, desde que tivessem a consciência de que deveriam estar juntos, não em busca da conquista individual, mas do bem comum. Não precisavam de piscinas para uma família, mas sim de dignidade para todos. Era a hora. Muitos dos seus haviam chegado lá: tinham consciência, estudo, educação. Agora eram médicos, professores, engenheiros, empresários.
Por que deveriam se submeter a ficarem excluídos, distantes, nas periferias, se o centro fora construído e mantido por eles? Não, era hora da revolução. De tomar cada espaço, de dividi-lo, de desfrutá-lo, de organizá-lo, para que todos tivessem as mesmas oportunidades, e uma sociedade mais justa se formasse.
Para isso, aqueles que haviam desfrutado das benesses do capital ao longo dos séculos deveriam, em silêncio, para a manutenção de suas vidas, acatar a revolução. Afinal, só saberiam o que viriam, depois de sua conclusão...
Agora era a hora da luta, não de facções, nem de comandos, nem de partidos, mas de coletivos, de uma totalidade ainda impossível, mas que deveria ir se construindo das metrópoles em direção aos campos, e do campo em direção às aldeias... e assim foi...
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