Marcus Vinicius Batista
Pense com calma antes de responder à pergunta acima. Não precisa ser em voz alta. Só peço honestidade. Como não me atrevo a especular, vamos colocar deste modo genérico: vivemos num lugar – fica a seu critério escolher o endereço – onde está entranhada uma das hipocrisias mais nocivas que conheço, o professor é essencial e deve ser valorizado.
O cinismo em torno do professor está dentro dele, fora dele, em torno dele. Sou professor há 18 anos e talvez esteja enfrentando as desilusões da “maioridade pedagógica”. Duvido um pouco, comportamento reforçado após sete meses de aulas on-line, período de muita observação, aprendizagem, erros, dissabores e testemunho do melhor e do pior do ser humano.
Meu filho de dez anos vivencia o mesmo período de prisão domiciliar-escolar. Estuda em uma boa escola, convive com professores que sangram para ensinar e aprender. Peço que meu filho os agradeça sempre, esperançoso de que um dia ele compreenda minha súplica e insistência.
Por outro lado, minha filha, de 18 anos e no último ano do Ensino Técnico, é vítima e alvo desta tranqueira que é o Ministério da Educação e seus líderes medievais, com seu genocídio intelectual em formato de política pública. Mari ficou cinco meses sem aulas. O ano letivo dela terminará em fevereiro de 2021, se não houver surtos governamentais ou coelhos da cartola do ministro do mês.
A pirâmide não se sustenta. Rachaduras e vazamentos corroem todas as perspectivas, da base ao topo. Vejo escolas que reduziram salários, aumentaram cargas de trabalho, “roubaram” tecnologias e tempo alheios, fingindo uma modernidade que se traveste em bobagens ocas chamadas de inovação, métodos etc. São casas que escravizam todos sem misericórdia, contando com uma servidão voluntária dos mais gananciosos ou medrosos (por trás da máscara, todo ganancioso é um apavorado, pois teme que façam com ele o que ele – capitão-do-mato – faz com seus iguais).
A mediocridade conta com a conivência de uma parcela de seus principais investidores: as famílias dos alunos. É óbvio que depende do caso, mas me assusta um perfil específico: pais e mães que enxergam seus filhos como clientes; o professor, como empregado; a escola, como pizzaria; e o ensino, como meia muçarela, meia calabresa. Não importa a qualidade do queijo ou da linguiça ou se seu filho pensa como a pizza é feita. Basta que seja entregue, se possível por um motoboy de aplicativo, o professor uberizado.
São pais e mães que oscilam entre a ilusão de um sonho no qual a escola nunca entregará e o mesmo lugar como um depósito que libertará adultos infantilizados, por algumas horas diárias, de suas responsabilidades.
Sou professor de adultos. Não tenho talento para ensinar crianças. Admiro quem trabalha com elas, diante de tantas incertezas e ingratidão. Festinha anual não é muito obrigado. Presentinho no dia 15 de outubro não passa de convenção social para limpar a imagem.
Homenagens apenas aliviam a dor quando o resto do ano se assemelha a um espancamento moral, emocional e até físico. Homenagens são um paliativo com duração de 24 horas, se tanto. Desejo o entendimento de que estudar – e repito: falo de adultos, que têm que assumir suas escolhas – significa formar-se. Construir-se. Avançar e retroceder com consciência. Fazer por onde antes de cobrar, para falar o português claro.
Vivo assombrado com a cultura do não estudo. A cultura da receita de bolo, das fórmulas, das leituras superficiais que auxiliam nas polêmicas virtuais, mas envergonham na vida. Alunos que se portam como crianças mimadas, pouco dispostos a sequer pensar nos porquês do que está sendo dito. Consomem passivamente. Culpa de muitos professores também, sendo redundante.
A vida on-line só reforçou uma inércia de muitos – sempre há exceções -, algozes e vítimas de uma escola (co-autora) que historicamente assassinou a curiosidade, a imaginação e o interesse pelo mundo em volta. Estudantes que se preocupam com questões cosméticas, tal o cliente de pizzaria que come o que lhe é servido, falsamente preocupado com os ingredientes-conteúdos, domesticados pelas notas e demais burocracias que camuflam o pensar crítico.
E nós, os professores? Caminhamos no meio do tiroteio de arma em punho, sedentos para também terceirizar a culpa, escapar da responsabilidade, sobrevivendo na contradição vítima-agressor. Se todos fogem do banco dos réus, então de quem é a culpa? Aí é que reside o coração moribundo. A bronca é de todos, mas também não é de ninguém, feito a piada sobre a responsabilidade sobre a escola pública no Brasil.
Acompanho professores exaustos, acusados de não trabalhar. Gente que estudou por décadas para contar as moedas durante boa parte do mês, quando não o mês inteiro. Mas também testemunho professores que se julgam eleitos, nos arroubos de autoritarismo e arrogância, o que inclui – em certos casos – a recusa em aprender e o olhar de superioridade sobre os demais atores desta peça mal escrita, principalmente os alunos. Como cansa ouvir professor que só sabe falar mal de estudante! A mentalidade envelhecida de quem se esquece do caminho percorrido.
Fico entristecido ao ver professores sem consciência de classe, como se não fossem trabalhadores comuns. Presas fáceis para todos os fatores que tento rascunhar neste texto pessoal. Sinto decepção em conviver, de vez em quando, com professores que sofrem de “professorite”, doença marcada por narcisismo, fala sem a necessidade de ouvinte, ausência de escuta, rompantes de sabichão, ego maior do que a escola onde trabalha.
Todos estamos sujeitos à contaminação viral. A questão é que a doença pode se tornar crônica em muitos hospedeiros. Como vacina, resta somente o autopoliciamento diário, ainda assim sem comprovação científica. Eu tento resistir, juro que tento.
E não sobrou ninguém para poupar? Não. Somos todos cúmplices no lamaçal no qual se transformou a educação. Estamos enterrados até o pescoço em moralismo, utilitarismo, tecnicismo, jogos de cena que torturam os grandes teóricos e exploram seus nomes e legados em vão, a escola como supermercado de qualidade duvidosa, o ensino como fast-food de validade vencida. Todos temos culpa na construção de uma cadeia produtiva com pouca ou nenhuma reflexão, com muitos delírios e fantasias. Sabe o papo furado de professor como missionário, como sacerdote? Esta lição caricata é básica de primeiro dia de aula.
Amanhã, estarei em sala de aula virtual. Amanhã, tentarei novamente ser um trabalhador que cumpre sua função. Sem alucinações. Da melhor maneira que for possível. Como um ofício. Com minhas malditas deficiências, inclusive. E mais uma vez com a pergunta: eu dou realmente valor ao professor?
Sensacional. Vamos celebrar...
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