Joyce Fernandes - Preta Rara (fotos: Marcos Piffer) |
Marcus Vinicius Batista
* Este é o primeiro de quatro perfis que escrevi para a revista Guaiaó, número 12, com a capa "Aqueles que nos inspiram".
A professora de História Joyce Fernandes, de 31 anos, só percebeu que a voz de Preta Rara ecoava acima de seu controle, em agosto do ano passado, em Salvador. Ela participava de um encontro de estudantes e o show dela só foi anunciado pela organização meia hora antes de entrar de palco.
Três mil pessoas assistiram à apresentação da rapper Preta Rara, nome artístico da professora desde 2011. Ela saiu do palco escoltada por seguranças. "As meninas queriam tocar em mim. Muitas choravam."
Assim como na capital da Bahia, Preta Rara se tornou uma voz importante no ativismo social. Na metade do ano, ela criou a página Eu#Empregada Doméstica, endereço que reúne relatos de empregadas de todo o país.
A página viralizou na Internet e levou Preta Rara ao centro da mídia. Participação em programas da Rede Globo, entrevistas para toda a imprensa nacional, além de veículos americanos e europeus. Da imprensa colombiana à polonesa. No início de novembro, ela falou para 1.200 pessoas na sala São Paulo, na capital paulista, no projeto TEDxBrasil, que reúne personalidades com projetos sociais.
A exposição assustou a rapper que, cinco anos atrás, sofria para cantar de graça em palcos da periferia, num gênero musical ainda dominado por homens. Muitos rappers viam aquela moça como "café com leite", que poderia ocupar uns minutos no final da apresentação. Cachê mesmo, só fora de Santos.
Joyce Fernandes sabe o que é preconceito, de várias formas. Mulher, negra, moradora de periferia, pobre, gorda, ex-empregada doméstica. Ela faz questão de se vestir como uma mulher de raízes africanas, roupas coloridas que chamam a atenção, da admiração à intolerância. Certa vez, ela estava numa esquina, em São Vicente, quando um carro passou, a passageira colocou a cabeça para fora e gritou: "Sai, macumbeira!"
A rapper é a voz da coragem de quem enfrenta a opressão. A professora de História é o sussurro de quem tem medo. Joyce trabalhou como empregada doméstica por sete anos, seguindo o ofício da mãe e da avó. Hoje, Joyce se apavora com a ideia de que a Preta Rara perca espaço e não consiga pagar as contas do mês. "O serviço não pode ser hereditário. Tenho medo de ser empregada doméstica de novo."
Ela fez parte do curso de História, na Universidade Católica de Santos (Unisantos), trabalhando como empregada. A última patroa, de quem se desvinculou em 2010, a permitia estudar e emprestava livros. A mudança aconteceu quando conseguiu estágio como monitora no Engenho dos Erasmos, que fica no Jabaquara, em Santos, e é mantido pela USP. "Depois, ainda vivi preconceito de gente que, ao ver meu currículo e olhar para mim, duvidava que me formei em História e estagiei no Engenho."
Por isso, Joyce seguiu como professora no Colégio Exemplo, escola privada no bairro do Humaitá, na Área Continental de São Vicente. Ela trabalhou lá por quatro anos. Muitas vezes, alunos a convidam para ir até a porta da escola para provar que a professora deles é a Preta Rara. É o jeito de dizer que sentem orgulho dela.
A exposição a colocou em dúvida sobre seu papel. Os questionamentos a levaram para o divã há um ano e meio. A terapia, além de evitar que adoecesse, foi o caminho para compreender mudanças tão rápidas e tamanha visibilidade. "Não sou guru. Cometo falhas. Erro como qualquer pessoa."
Na última eleição, ela foi convidada para se candidatar à vereadora por quatro partidos. Pessoas perguntaram em quem votaria para repetir o voto dela. Joyce recebe muitas denúncias, como exploração do trabalho, assédio moral e estupro. Por outro lado, Preta Rara recebeu até consultas sobre qual cor de cabelo usar.
Para ela, o público não compreende que existe a Joyce por trás da Preta. São fantasias em torno de uma mulher forte, infalível, guerreira. É uma luta para resistir ao padrão. "Há patrulha. Tenho que ser sempre séria."
A rapper e ativista se apoiou na experiência como professora para aumentar o trabalho com crianças. Nasceu a Oficina de Rimas. "As crianças se identificam. Minha imagem também está ligada a eles."
Eu#Empregada Doméstica transformou Joyce Fernandes, Preta Rara, na porta-voz de 6 milhões de mulheres, sendo 80% negras.
A agenda de shows e palestras já virou o ano. Preta Rara lamenta não ter mais tempo para compor. É o preço de uma voz que ecoa.
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