terça-feira, 8 de agosto de 2017

Fixxa: a bruxa e a queimadura


Fotos: Marcos Piffer

Marcus Vinicius Batista

* Este é o terceiro de quatro perfis, que foram publicados na revista Guaiaó, n.12, com a capa: "Aqueles que nos inspiram".



Aline Benedito, a Fixxa, tomava uma cerveja em um bar, ao lado de uma grafiteira francesa, em Coloz, na Espanha, quando Arí apareceu. Minutos antes, a francesa afirmara que elas estavam sendo seguidas por uma mulher. Fixxa pensou em brincadeira da amiga.

Arí se apresentou às duas como bruxa e garantiu que a grafiteira brasileira havia sido uma delas em gerações anteriores. Embora Fixxa estudasse o assunto desde 2014, ela permaneceu em dúvida. Até que Arí foi taxativa: "você tem uma queimadura no corpo. E é de outras vidas."

Fixxa cedeu. Não só mudou de opinião como acompanhou Arí em um ritual específico. A bruxa recomendou que a grafiteira voltasse para um novo ritual, ainda nesta existência. Por enquanto, Fixxa mantém contato e tira dúvidas com a espanhola via Whatsapp.

Fixxa passou uma semana na Espanha, em 2016, para participar de um festival de arte urbana, como prêmio por vencer um concurso cultural, em São Vicente, numa parceria entre a Prefeitura e a Unibr.

A queimadura ocorreu nesta vida e é recente. Foi em 27 de março de 2015, Dia do Grafite. Fixxa colocou uma coxinha - destas de festa - no óleo fervente. A coxinha explodiu e provocou queimaduras de segundo grau na mão direita da artista. Foram cinco meses sem poder trabalhar. A cicatrização aconteceu em 30 dias. "Eu conversava com a queimadura, como forma de energia. Foi uma das coisas mais bonitas da minha vida". 



A queimadura levou Fixxa para uma jornada interior, que mudou o relacionamento consigo mesma, com a arte e com pessoas próximas, como os pais. "A queimadura me ensinou a perceber mais o outro e me reencontrar com todas as partes do meu corpo."

A bruxaria sempre teve relação direta com a arte dela. Fixxa desenha o que denomina, em termos conceituais, de meninas-bruxas. Elas representam "o monte de mulheres que tenho dentro de mim, boas e más." O trabalho dela de street art se apoia em linguagens como estêncil, stick (adesivo), cartaz lambe-lambe e grafite.

Os desenhos de figuras femininas, que integram a militância feminista da artista, se juntam a elementos da natureza e atraem as crianças. "Muitas vezes, elas me cercam na rua. Elas me protegem e falam o que eu não tinha percebido."

O estêncil foi o começo da relação com a arte urbana, quando tinha 21 anos, em 2001. Recém-casada com o artista Colante, ela saiu de Tambaú, no interior do Estado, para morar em Santos. Aqui, ficou fascinada como o estêncil produzido pelo marido e partiu para o estudo e produção artística. De início, junto com Colante, até que ele sugeriu - em 2006 - que seguissem caminhos próprios. "Você está preparada, ele me disse", explica Fixxa.

A primeira saída para as ruas aconteceu perto de casa. Fixxa usou estêncil num muro de uma casa abandonada, na rua Tocantins. Quando viu o trabalho pronto, chorou. Hoje, o estêncil serve para o desenho de detalhes, como uma flor, inclusive porque depende de uma parede lisa.

O traço fica a cargo das latas de spray. Ela teve que se adaptar à nova técnica. "Tive que mudar a respiração e o posicionamento de mãos e dedos. O excesso de força, por exemplo, faz a tinta escorrer na parede." O fundo do desenho, por sua vez, é produzido em látex.

A arte tem origem familiar. O pai, chamado de Réu, produzia vasos de cerâmica. A mãe, Dita, os pintava. Réu é um apelido que vem do tribunal. Quando adolescente, Réu se apaixonou por uma garota da cidade. Ele inventou que havia transado com a menina. O pai dela, enfurecido, conseguiu que fosse levado para uma audiência no fórum. Embora no banco dos réus, ele acabou absolvido.

O nome Fixxa nasceu de um sonho. Aline procurava um nome artístico. No sonho, ela era uma garota que voltava da escola rabiscando paredes. Rabiscava uma única palavra: Fixa. O marido sugeriu que a letra X fosse dobrada.

Fixxa se vê como sensitiva, como uma bruxa. "Sinto o que acontece muitas vezes. Tenho presságios que se manifestam por sonhos." Ela os escreve em um caderno, que permanece ao lado da cama. Os sonhos mais perturbadores, com mais símbolos, viram desenhos. "Sonhar é o jeito para me ouvir, para ver o mundo." O caderno é um sketchbook, que aprendeu a fazer com o cartunista DaCosta.

Antes de ir para a rua, Fixxa permanece em silêncio durante uma hora. É uma forma de se preparar para a turbulência, para as variadas energias que vem da rua. Depois, coloca um esparadrapo no umbigo, para evitar a entrada de energia do outro. Na volta, mais uma hora de silêncio no escuro, para renovação energética.

Aos 36 anos, Fixxa é várias mulheres numa só. O misticismo da bruxaria que se casa com o ativismo da feminista. Como padrinhos, a arte-educação e a arte urbana. "O grafite é a realidade de uma sociedade enquanto expressão. É o DNA de uma sociedade que pode ser feia e suja."

Em meados de outubro do ano passado, Fixxa conheceu outra "bruxa". Ela participou, por uma semana, de um encontro chamado Cores Femininas, em Pernambuco. Ela e outras grafiteiras foram trabalhar com crianças em Totó, bairro da periferia de Recife. O bairro fica entre um cemitério e um presídio.

Na visita ao presídio, Fixxa conheceu uma senhora que se dizia presa há 40 anos. No final da conversa, a senhora disse: "Todo dia é o mesmo dia." A grafiteira pediu para sair da sala e chorou.

Só uma bruxa reconhece outra. Só elas identificam quem sobreviveu à fogueira de uma Inquisição particular e interior, seja na Espanha ou no Recife.

2 comentários:

  1. olá Professor... olha eu aqui de volta, feliz por ter a oportunidade de curtir mais um dos seus inspirados textos. A arte com uso do estêncil me lembrou um irmão já falecido que tinha a pintura como hobby (perdoa o meu inglês). Lembro que uma vez ele citou essa palavra, quem sabe para algum parente distante da Fixxa. Quanto a esta, foi um show de talento o motivo do seu nome. Rabiscar paredes era o meu forte na juventude. Forte abraço, eterno professor!

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  2. O artista Carlos Belinni sugeriu uma visita no Teatro Municipal com os jovens do Centro da Juventude dda Zona Noroeste em Santos,lá conheci a arte da Fixxa e do Colante e fiquei encantado. "já pensou o muro do Centro da juventude todo grafitado assim?" disse o Beline. a partir daí comecei a sonhar e lutar pra que isso se tornasse realidade, houve a oportunidade e o projeto aconteceu. Com o tema a gruta que chora mais de 50 mts de muro foram grafitados , além das oficinas de adesivos e sobre o uso do spray. Foi tudo muito legal e senti vontade de contar essa história. Parabéns pela reportagem!

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