quarta-feira, 21 de maio de 2014

Os erros de Marina?


A política não perdoa erros. Na prática, perder representa desaparecer lentamente. Depender da caridade de alianças. Morrer aos poucos, com o cadáver exposto em velório a céu aberto. Erros estratégicos também assassinam aliados que, muitas vezes, pulam ao mar e se arriscam em botes. Um dano colateral em comparação à dor de testemunhar um naufrágio. 


Marina Silva dá sinais de que repetiu decisões equivocadas. Política eleitoral – e os próprios políticos – não são complacentes com a repetição de deslizes. Defender o casamento gay, em princípio, significa outro desvio de rota para quem poderia encabeçar uma chapa presidencial. Renasce a imagem de fogo amigo, em um momento que Eduardo Campos luta para ser conhecido, percorrendo a trilha do politicamente correto. Envolver-se em temas espinhosos não soa como saudável. Na verdade, é mais um capítulo de um processo que se iniciou em 2013.

O primeiro escorregão de Marina Silva foi a lentidão em decidir criar o próprio partido, o que daria mais liberdade a ela para conduzir o caminho da campanha. Juridicamente inexistente, a Rede Sustentabilidade é um fantasma em ano de eleição. Teoricamente, a composição com o PSB poderia nascer do mesmo jeito, mas com a diferença do respaldo institucional partidário – mesmo que banalizado. Um partido forte é capaz, ainda que as siglas estejam corroídas, de segurar aqueles peixinhos ornamentais que saltam de aquário em aquário.

Marina Silva era a mulher de 20 milhões de votos. A dama a ser cortejada em meados de 2013. Mas a fala mansa e a firmeza nas palavras não esconderam a sede de poder. Ao temer também o preço do ostracismo que engoliu Heloisa Helena, Marina assinou o pacto que lhe dá o segundo posto na hierarquia. Escolheu se filiar a um partido que sempre foi mais um a se sentar na roda gigante, multifacetado e com um candidato desconhecido.

O segundo erro – e talvez o mais grave – é se comportar como se fosse candidata. Nesta altura da corrida, vale mais a lealdade ao espírito de equipe do que as pesquisas, que apontam os reservas com melhor desempenho que os titulares, de Lula a José Serra.


Marina fala o que quer e pode provocar efeitos que talvez não deseje. O posicionamento contra o casamento gay é o caso. Por um lado, pode agradar eleitores da classe C, alvo preferencial da campanha de Eduardo Campos. Em compensação, parte do eleitorado de Marina é mais liberal e favorável à leitura social da senadora do Acre, embora releve a opção religiosa dela, o que constrói uma ilusão de discurso.

Se fosse candidata, Marina Silva arcaria com os próprios ferimentos. O sangramento, aliás, seria bem menor, pois estaria sob o controle daqueles que cercam a ex-senadora. É bom repetir: 20 milhões de votos também ajudariam na cicatrização.

Só que Marina, quando fechou o contrato, se submeteu automaticamente à construção de imagem de Eduardo Campos. Ele fica com os louros. Ele sente a dor do tiroteio. Ela deveria somente assistir, muito menos atrapalhar.

Com elevado nível de desconhecimento por parte do eleitorado, Campos precisa equacionar três problemas e ainda ter que lidar com o fogo amigo. Em primeiro lugar, ele precisa navegar em águas previsíveis. Polêmica dentro de casa, jamais. Não há tanto lastro assim para apagar incêndios contínuos.

Depois, o ex-governador de Pernambuco tem que dosar o morde-e-assopra com Aécio Neves. Cedo ou tarde, um matará o outro, mas antes é preciso se unir para trazer Dilma Rousseff a um patamar que permita segundo turno. O terceiro obstáculo é criar uma agenda consistente que consiga reverter a lógica de crédito e consumo, retórica agradável para a maioria dos eleitores das regiões Centro-Oeste, Norte e Nordeste.

Diante de tantas dificuldades, soma-se a falta de fôlego financeiro para sustentar campanha tão cara. Não dá para tapar tantos buracos e ainda ter que pedir para a candidata à vice-presidente falar menos, inclusive porque ela também possui a tendência de personalizar a política.
Se quiser se manter viva, a candidatura Eduardo Campos deve aprender uma das máximas do lulismo. A política não perdoa erros, mas releva blefes e coroa a astúcia. Lição que poderia amordaçar a língua da vice.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Só os loucos sabem


Em 3 de maio de 1989, profissionais de saúde da Prefeitura de Santos interditaram a “Casa dos Horrores”, como era conhecida a Casa de Saúde Anchieta, localizada atrás do Hospital Beneficência Portuguesa. O Anchieta era o principal manicômio do litoral de São Paulo e a interdição o transformou em um símbolo da luta antimanicomial.

Na última semana, dois eventos tentaram manter viva a batalha contra a permanência de hospitais psiquiátricos como depósitos de pessoas. Duas universidades, Unisantos e Unifesp, promoveram uma série de debates e palestras, além de uma manifestação no Centro, com o objetivo de se discutir o cenário atual das políticas públicas de saúde mental.

No Café Rolidei, nas dependências do Teatro Municipal, o projeto TamTam – nascido dentro dos corredores e salas da Casa de Saúde Anchieta também em 1989 – realizou a Semana do Cuidar. De filmes a oficinas, o projeto mantém a chama de quem se tornou exemplo de inclusão social por meio da arte, dentro ou fora das instituições de saúde mental.

A Semana de Luta Antimanicomial é mais do que um conjunto de encontros para se reivindicar o fechamento de hospitais psiquiátricos. Trata-se, no fundo, de iluminar um comportamento paradoxal que permeia a sociedade contemporânea.

Vivemos uma era das pílulas mágicas. Nunca se vendeu tanto, com tanta variedade nas farmácias, as balinhas da felicidade. Desde a década de 60, a indústria farmacêutica conseguiu aumentar a presença de remédios – controlados ou não – no cotidiano das pessoas.

A automedicação se tornou, em muitos endereços, sinal de status, inclusive de pertencimento cultural. O doping autorizado por bulas passou a representar uma maneira de estar dentro de grupos que se queixam da vida inumana exigida deles, mas que não a abandonam porque este estilo os fornece ganhos secundários, principalmente de ordem econômico-financeira.

Outro efeito nocivo da “cultura das pílulas da felicidade” é a patologização do comportamento humano. Termos como depressão, hiperatividade, bipolaridade, stress e transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) viraram expressões corriqueiras.

Em certos círculos sociais, é possível testemunhar uma competição velada de quem se dopa mais ou de quem percorreu mais etapas do circuito das pílulas mágicas. Conheci pessoas que falavam de síndromes, transtornos e doenças como se colecionassem figurinhas da Copa do Mundo ou com orgulho de suas aventuras químicas.

O paradoxo reside na ideia de que o glamour das patologias de ordem mental contradiz com a perpetuação do preconceito contra a “loucura”. Na semana passada, o jogador Neymar disse – em uma entrevista – que a seleção brasileira não precisava de psicólogo porque não havia “doidos” no time.

Mais do que outra besteira nas palavras do atacante, é a reprodução da visão vigente de que a psicologia e a loucura são assuntos a serem evitados ou negados. Em outras palavras, temas apenas de ordem privada. Os loucos, a gente esconde. Fazer terapia, para muitos, é sinônimo de eletrochoque e surto.

Enquanto aumentamos a prateleira de medicamentos, realimentamos o preconceito contra os “loucos”. Ainda prevalece o trauma das internações, como forma de tirar os desviantes do olhar de todos. Os loucos também são encarados como incapazes – e pior – como seres inferiores numa escala cruel de (falta de) humanidade.

Neste sentido, pouco vale em termos eleitorais investir em políticas consistentes e duradouras de saúde mental. Em todos os níveis, os investimentos são baixos, no final da fila das secretarias de saúde. Para muitos políticos, loucos não rendem votos, inclusive porque parte deles podem se misturar na multidão das salas de espera.

A ironia é que a loucura jamais se relaciona com conta bancária. A saúde mental (ou ausência dela) funciona de maneira horizontal. Pirâmide social ou status são palavras inócuas, sem significado. E a lógica da loucura costuma ser outra, ainda que muitos carreguem e cultivem uma rotina de impressionar qualquer psiquiatra.

No paradoxo da medicalização, o problema, para os pobres, é a espera nas unidades de saúde. Para a classe média e os mais ricos, é a espera na fila do caixa das farmácias. Só que, no milagre da multiplicação de pílulas e patologias, os remédios (e seus efeitos) são os mesmos.

Em tempo: o título desta coluna é o nome de uma música da banda Charlie Brown Jr. Acredito que Chorão e Champignon, além dos outros integrantes, não se oporiam a este “empréstimo”, inclusive porque a temática interessaria a eles.

terça-feira, 13 de maio de 2014

Fofoqueiros e selvagens


A fofoca mata. Os educados falam em boatos, para reduzir o peso da palavra. A fofoca simboliza – popularmente – a leviandade e a irresponsabilidade nas relações entre as pessoas.

A fofoca assassina reputações, mancha biografias, corrói a credibilidade por meio de ataques psicológicos de quem passou longe do caráter. A fofoca, irmã gêmea da maledicência, se reproduz pela intolerância.

Fabiana Maria de Jesus
A dona-de-casa Fabiane Maria de Jesus, de 33 anos, não foi linchada pela fofoca. Ela foi espancada no dia 3 de maio, em Morrinhos, no Guarujá, por selvagens. Morreu na terça-feira, dia 6. A fofoca não empunhou os paus ou usou os braços e pernas que viraram armas. Mas a fofoca deu o motivo para o crime, o que a torna cúmplice de homicídio.

A morte de Fabiane tem que nos apontar caminhos para compreender a responsabilidade de viver em sociedade, no mundo real e no mundo virtual. O assassinato desta dona-de-casa nos mostra o quanto se devem rever certezas superficiais, que parecem proteger pessoas atrás de seus computadores ou de seus vizinhos sedentos de sangue alheio.

Fabiane morreu para nos alertar sobre as falsas concepções de civilização. Fingimos ter adormecido nossa bestialidade. Os palcos virtual e real expuseram o descontentamento social com a violência, mas – paradoxalmente – também iluminaram a forma selvagem de protesto.

Parcelas da sociedade usam a decepção com as políticas de segurança pública para invocar a lei do Talião. O olho por olho, dente por dente, que alimenta ativistas de sofás confortáveis, conduz sujeitos ditos normais a extravasar a animalidade mais cruel.

Confusos, estes selvagens acrescentam a expressão “com as próprias mãos” ao termo Justiça. A política do “bandido bom é bandido morto” existe porque também encontra respaldo nas instituições que deveriam nos proteger e em engravatados com mandato que deveriam pensar coletivamente.

A ironia é que aqueles que pedem justiça rápida via linchamento se calaram quando viram que os “justiceiros-assassinos” erraram a mão e o alvo. E agora? Pedir justiceiros para os justiceiros? Ou, cinicamente, falar que “erros acontecem”, como eu li no Facebook?

A morte de Fabiane Maria de Jesus também nos permite pensar sobre o que fazem os jornalistas (e os pseudo-repórteres). A postura de uma página como Guarujá Alerta despertou o espírito de corpo em muita gente da imprensa. A principal defesa, ainda que simplista, foi apontar a lanterna sobre os responsáveis pela página e dizer: “não são jornalistas.” 

O retrato falado do mau Jornalismo

Não são jornalistas porque não possuem diploma? Ou não o são porque desrespeitaram princípios elementares da profissão, como pesquisa, apuração, checagem, entrevista? Sensibilidade e responsabilidade não estão escritas em canudos acadêmicos, e sim tatuadas naqueles que escrevem de olho no outro e cientes de que palavras têm consequências, seja no The NY Times, seja em qualquer postagem de uma rede social.

Agarrar-se ao diploma só reforça o quanto os jornalistas se tornaram frágeis diante das mudanças sociais a partir dos meios de comunicação e as novas tecnologias. Em vez de subir no pedestal da arrogância que exime de responsabilidades, é a hora de rever práticas não tão profissionais que se tornaram cotidianas.

Muitos jornalistas estão habituados a reproduzir conteúdos a partir de páginas como Guarujá Alerta, que – em tese – serviriam como referência para insatisfações da população. Visitar tais páginas e, a partir delas, procurar pessoas e estabelecer contextos é um comportamento responsável.

Outra postura é simplesmente apertar quatro teclas no computador (Ctrl C e Ctrl V) e achar que se fez Jornalismo. Muitos colegas de profissão se queixam de que suas matérias são plagiadas. A reprodução criminosa é recorrente em parte do Jornalismo atual, pouco importa o tamanho e o alcance dos veículos.

A mídia matou Fabiane? Certamente não. Os agressores são justiceiros? Não, são homicidas. Independentemente de quem desceu o porrete ou gritou “mata e esfola”, todos devem desculpas à Fabiane. O resto é torcer pela Justiça dos homens que ainda podem ser chamados de civilizados.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Sou mulher, vivo com medo


O texto abaixo foi escrito pela designer Kitty Yoshioka. É um depoimento que simboliza a vida de muitas mulheres, que sofrem violência nos mais variados níveis. O blog publica o texto com autorização da autora. Não se pode ficar em silêncio!

Kitty Yoshioka

Quando eu tinha 8 ou 9 anos, estava brincando a noitinha na rua com uma amiga, em frente ao prédio em que morávamos. Do nada, apareceu um motoqueiro do outro lado da rua. Ele ficou parado, de frente pra gente. O que ele fez? Mostrou o pau. 


Lembro que, como duas crianças, ficamos mais desesperadas do que com nojo ou algo assim. Corremos para entrar no prédio. Isso aconteceu comigo outra vez também, quando eu estava sozinha. Motoqueiro, pau pra fora, desespero.

Um pouco mais tarde, quando eu devia ter por volta de 13 ou 14 anos, estava voltando da escola para casa. Um cara passou por mim na calçada, andando rápido e apertou o pouco que eu tinha de peito na época. Assim, do nada. Passou, apertou e continuou andando. Eu me lembro de sentir um misto de medo e nojo. Lembro que meu peito ficou dolorido porque o filho da puta apertou com força. Voltei pra casa correndo, desesperada, claro.

Numa outra ocasião (nesse ano mesmo, 2014), fui renovar o contrato de aluguel com o Aloysio no cartório aqui perto de casa, andei com ele até o cartório. Resolvemos as burocracias etc. Ele iria para o trabalho, eu voltaria para casa. Fiz exatamente o mesmo trajeto que fiz quando estava com ele. São 362 metros, do cartório até a minha casa (segundo o maps) e nesse trajeto curtíssimo, quando estava sozinha ouvi cantadas, assobios e mais cantadas. Simplesmente por eu não estar acompanhada por um homem. Como se eu precisasse de um guarda-costas ou um dono para me acompanhar; caso contrário, eu serei alvo de assédios, estarei vulnerável, “pedindo para ser atacada” ou qualquer coisa babaca desse tipo.

Todos os dias da minha vida eu me olho no espelho e (além de ter que me achar bonita, mesmo com esses padrões escrotos de beleza que as pessoas impõem hoje em dia) penso, com medo: “Será que essa roupa tá muito chamativa? Será que vão me comer com os olhos, me julgar? Será que vão mexer comigo? E se mexerem? Acho que eu respondo...Mas se eu responder, será que vão vir atrás de mim? Será que vão tentar fazer alguma coisa comigo?” 


Outro dia, semana passada, deixei de sair para jantar com o Aloysio porque estava de noite e eu teria que andar sozinha e arrumada de casa até o metrô para encontrar com ele em outro lugar. Sabia que eu sentiria medo de sair na rua, sabia que sempre teria um babaca na rua para mexer comigo e já fiquei exausta por antecipação.

Rapazes, vocês já pensaram em como vivem suas esposas, namoradas, irmãs, amigas e mães? Já perguntaram pra elas se já passaram por algo desse tipo? Alguma agressão ou assédio? Quantas cantadas elas ouvem quando andam sozinha, olhares, quantos caras já tentaram agarrá-las na balada? Pela mão, pelo pescoço, pela cintura. Quando ela estava apenas tentando se divertir com algumas amigas ou tentando chegar até o banheiro? Como elas se sentem com tudo isso? Como elas lidam com tudo isso?

Acho que nunca contei todas essas histórias para ninguém (mãe, desculpa se eu não tinha te contado quando eu era pequena, devo ter ficado com medo ou vergonha, sei lá) e acho que estou falando tudo isso aqui porque estou cansada. Cansada de criar paranoias com qualquer sombra que eu vejo atrás de mim na rua, cansada de não ter liberdade pra me vestir como eu quero, quando eu quero. Ir aonde eu quero. Tudo simplesmente por eu ter nascido mulher.

Viver com medo por causa do seu gênero é horrível e cansativo. E eu não desejo isso nem para o homem mais nojento do mundo. Gostaria apenas que eu e todas as outras mulheres pudéssemos andar nas ruas livremente, sem medo de invasões. Sem ter que nos preocuparmos em correr riscos apenas porque somos mulheres. Viver sendo mulher hoje em dia é viver cheia de medos. E ninguém merece isso.


Esse texto é um desabafo, transbordei sem a necessidade de uma “gota d'agua” pra fazer isso. Mas vou dedicá-lo à todas as mulheres que o lerem. Minhas amigas e azinimigas também, por quê não? Por toda a força que a gente precisa ter pra enfrentar sacanagem, escrotisse, julgamentos e violências. E espero que, mesmo que aos poucos, a gente consiga mudar como as coisas funcionam no mundo.

Entre bananas e macacos


A história de racismo em torno da refeição feita pelo jogador Daniel Alves nos indica como brasileiros são hipócritas quando confrontados com o próprio espelho. Casos de discriminação racial no futebol são muito mais comuns do que costumam pregar convencionais fotos em redes sociais.

O racismo está impregnado na biografia do futebol nacional. Dos negros proibidos de vestir as camisas de vários clubes cariocas até o clube de Santos que barrou a entrada de Pelé quando era desconhecido. De juízes humilhados no Rio Grande do Sul a atletas xingados por torcidas e jogadores adversários em torneios continentais.

Bananas não são armamentos novos. Essas bombas de efeito moral foram utilizadas contra brasileiros na Polônia e na Rússia. Tiros simbólicos de intolerância contra desconhecidos e contra estrelas como Roberto Carlos. A reação de Daniel Alves, espontânea, irônica e necessária, recolocou o assunto em questão. Mas ao preço de uma moralidade embananada?

Neymar provou mais uma vez ter o perfil do jogador atual. Mimado, cercado de bajuladores, vendedor de quinquilharias, covarde em falar o que pensa. Mas, desta vez, a orientação ultrapassou a fronteira da estupidez. Racismo é uma cicatriz cultural e histórica para ser tratada como campanha de marketing. 


Como um jogador da importância de Neymar aceita transformar uma violência cotidiana – vista em todo o planeta – em foto para vender a si mesmo? Nada surpreendente para quem choraminga diante da CNN quando critica a diretoria do Santos, em quem aplicou – com cumplicidade ou não – um chapéu financeiro, fora a história fiscal nebulosa.

Por que resolvemos afirmar só agora nossa macaquice? Por que sempre relegamos ao pé de página os episódios quase diários de racismo? O cinismo de mostrar bananas mostra o quanto adoramos comê-las de sobremesa, após engolir sapos como prato principal.

Não somos todos macacos. A campanha, nascida da mediocridade publicitária, expõe o nível de ignorância em torno do racismo no país. Salvo os inocentes, a turma que adora se dizer primata é a mesma que renega práticas racistas. A discriminação sempre pertence aos outros.

A ignorância também resume a violência numa campanha rasteira de tirar fotos de adesão ao vácuo de informação. Vendemos camisetas, cultivamos amigos de rede social, vomitamos indignação até a página 2. Mas não reconhecemos os cadáveres de desigualdade social. Enquanto exalamos rebeldia de shopping, não enxergamos o quanto chamar alguém de macaco significa estigmatizar negros como animais.



A premissa é falsa. Não somos todos iguais. Somos uma nação culturalmente complexa, de múltiplas diferenças. Seríamos mais civilizados e maduros se entendêssemos e respeitássemos as diferenças do que amenizar culpas com o falso discurso da igualdade. E ainda por cima fingirmos cidadania sendo enganados como consumidores bananas.

É triste testemunhar que a crueldade humana, como jogar bananas em uma pessoa por conta da cor da pele e da origem, seja substituída pelo tom carnavalesco de esvaziar – em imagens padronizadas – uma chaga social que contamina o Brasil desde o nascimento colonial.

Somos realmente todos macacos, numa sociedade dividida em gorilas, micos, chimpanzés e orangotangos? De fato, cedo ou tarde, todos comem bananas.

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Em tempo: o racismo virou rotina de tal maneira que dois novos casos brotaram no noticiário esta semana. O primeiro episódio envolveu Donald Sterling, proprietário do time de basquete norte-americano Los Angeles Clippers. O dirigente foi banido da NBA depois de ter feitos comentários racistas com a namorada V. Stiviano.


Donald Sterling 
Uma gravação explica tudo: “me incomoda muito você querer aparecer ao lado de pessoas negras. Por que você faz isso? Você pode dormir com negros, pode trazê-los, pode fazer o que quiser. A única coisa que peço a você é que não divulgue isso. E não os traga aos meus jogos”, declarou Sterling.

Além de banido, ele terá que pagar multa de US$ 2,5 milhões. Se o futebol também fosse assim ...

Dos Estados Unidos para o litoral de São Paulo. Em Bertioga, a vereadora Valéria Bento (PMDB) acusa um servidor público de tê-la chamado de macaca. O acusado é chefe de departamento na Secretaria de Desenvolvimento Social, Trabalho e Renda.

A vereadora prestou queixa em delegacia. Segundo a parlamentar, o servidor teria dito: “o serviço está uma bagunça, e a culpa é da Valéria, aquela macacona.” A vereadora pediu também a abertura de inquérito administrativo contra o servidor.

O acusado se defendeu em redes sociais. A alegação é de que ele também seria negro. “(...) todo mundo sabe que amo os animais e jamais compararia um macaco com essa vereadora. Animal não merece ser comparado assim. (...) Eu e minha família já sofremos muito com este tipo de preconceito por sermos negros, mas nunca deixamos nos abalar.”

Pela defesa, um vereador seria pior do que um macaco? Outro ponto: houve protestos na Câmara Municipal, com presença das bananas, a fruta-rei da semana.

sexta-feira, 2 de maio de 2014

A tortura nunca acabou


A morte do tenente-coronel da reserva Paulo Malhães reacendeu o medo em torno dos cadáveres – reais ou simbólicos - que cercam a ditadura militar. O tenente-coronel foi encontrado morto em casa, na zona rural de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense.

Malhães foi morto por asfixia. Três homens invadiram a residência dele na sexta-feira, dia 25 de abril. A mulher foi amarrada, enquanto o tenente-coronel era executado. Todas as armas da casa foram roubadas. Os primeiros dados da investigação falam em queima de arquivo.

O tenente-coronel deu um depoimento forte há cerca de um mês na Comissão da Verdade. Paulo Malhães foi agente do Centro de Informações do Exército na ditadura militar. No depoimento, ele reconheceu tortura, mortes e ocultação de cadáveres durante o período. Uma frase dele: “Naquela época, não existia DNA. Quando você vai se desfazer de um corpo, quais partes podem determinar qual é a pessoa? Arcada dentária e digitais. Quebrava os dentes. As mãos cortava daqui para cima (apontando para as falanges)”.

A morte do tenente-coronel levanta suspeita de que ele poderia entregar mais gente da turma verde-oliva. No entanto, o que me chama a atenção é que torturas e mortes por parte de agentes do Estado são vistas como episódios de uma história cada vez mais distante.

A tortura nunca acabou, mesmo com a passagem para a democracia. Apenas mudou a cor do uniforme e a função dos torturadores. E a conivência de uma parte da sociedade permanece, seja pelo silêncio, seja pela construção de argumentos simplórios e individualistas.

A frase feita “bandido bom é bandido morto” é um dos primeiros argumentos que surgem quando se debate tortura no Brasil. Além de embutir a ideia de que todas as vítimas de tortura são culpadas, a proposta vem acompanhada de um segundo elemento frágil. “Quero ver se for com você ou com algum parente seu?”

A recíproca poderia ser verdadeira. E se fosse você o confundido pela polícia ou um parente seu fosse torturado? O que diria? Na verdade, tortura e mortes devem ser responsabilizadas, e não enaltecidas como efeitos colaterais ou como inerentes ao processo de segurança pública. A solução passa, necessariamente, pelo pensamento coletivo e reforço das instituições, que devem expurgar suas laranjas podres, e não promovê-las.

Torturas e mortes somente foram transferidas dos quartéis para viaturas e delegacias. A prática aparece diariamente no noticiário, que empilha casos de pessoas conhecidas ou de casos eleitos. São histórias que, dependendo dos elementos dramatúrgicos, podem gerar surtos de indignação e bodes expiatórios para responder a processos administrativos. Os remédios são pontuais para causas sistêmicas.

Há mais de 20 anos, o jornalista Caco Barcellos denunciou no livro “Rota 66”, o comportamento de policiais que matam em quantidade que deixaram corados de vergonha assassinos em série endeusados pela cultura pop norte-americana. Nós também temos nossos deuses. Muitos destes policiais mantém mandatos políticos até hoje, com o mesmo discurso de “bandido bom é bandido morto.”

O livro, que levou Barcellos a morar na Europa por dois anos por conta das ameaças de morte, indicava que boa parte das vítimas da Rota, em São Paulo, eram negros, com carteira assinada, sem antecedentes criminais e moradores de periferia. Foram mortos com tiros nas costas ou na cabeça; neste caso, o tiro veio de cima para baixo, o que dava contornos de execução.

Os autos de resistência – nome burocrático para execuções – representam um dos sintomas da descrença no sistema de segurança. É uma doença paradoxal. Ao mesmo tempo em que se defende a limpeza social de “bandidos”, a população não confia nos policiais – até porque sabe do que são capazes com a aprovação dela – e sustenta a justiça com as próprias mãos. A “moda” de se amarrar pessoas em postes – culpados ou não – é reflexo cristalino disso.

Mesmo que se fechem as cortinas ou que as luzes sejam apagadas, os esqueletos ainda permanecem sentados na mesa de jantar. A história não virou poeira. Ela está ao lado, viva nas mesmas práticas de uma cultura que mente quando diz ser pacifista.