sexta-feira, 20 de setembro de 2013

O efeito borboleta

Ronaldo Francini (Foto: Marcos Piffer)

Reportagem publicada originalmente na revista Guaiaó, edição n.3. 

O biólogo Ronaldo Bastos Francini tem duas vantagens sobre a maioria das pessoas. A primeira delas é que conheceu o paraíso em vida. Seria petulante não reconhecer que a leitura do Éden varia conforme a subjetividade, mas Ronaldo transformou o paraíso na extensão da própria casa. Aí reside a segunda vantagem: ele já esteve 500 vezes lá, nos últimos 40 anos. Todas as visitas foram catalogadas, com hora, data e resultado da viagem. 

O paraíso, para o biólogo, fica a 45 minutos de carro de Santos. Inclui, no final do trajeto, meia dúzia de quilômetros em estrada de terra. “Minha vida é o campo”. Ronaldo não se refere aos prazeres da vida rural, mas ao campo de pesquisa, o lugar mais próximo do sagrado para alguém que debate qualquer assunto com argumentos científicos, exceto a fé.

De aparência frágil e simpático como a barba branca que ostenta há anos, o biólogo transformou o Vale do Quilombo, na Área Continental de Santos, como se fosse a sala de estar do apartamento onde mora. “Um ou duas horas lá recarregaram todas as minhas baterias.”

Ronaldo é um dos maiores especialistas do mundo em borboletas. Perdeu as contas da quantidade de espécimes coletados em 25 anos de devoção à ciência. As borboletas hoje estão espalhadas pelo laboratório de Biologia da Conservação, a sala 211 na Universidade Católica de Santos, em sua própria casa e no Museu de Zoologia, da Universidade de São Paulo (USP). E foi por causa de uma borboleta que Ronaldo alcançou o êxtase em pleno paraíso.

Em 2008, o biólogo seguiu com dois alunos para o Vale do Quilombo. A visita de rotina serviria para mostrar aos estudantes como funcionava a pesquisa em campo. Observar espécies de insetos – Ronaldo já trabalhou com formigas -, sentir o cheiro da natureza, interagir com os habitantes locais (pessoas, neste caso) e, se possível, coletar novos espécimes de borboletas.

Durante a visita, Ronaldo indicou uma planta para os alunos e se deparou com uma borboleta que jamais tinha visto na vida. Paralisou diante dela e se viu numa encruzilhada. Diante da possibilidade de uma espécie nova, não sabia se a coletava com a rede ou se a deixava ali. Optou por fazer algumas fotos e coletá-la depois. As fotos foram enviadas para colegas, que confirmaram ser uma borboleta Reynald, um gênero de origem amazônica. Ronaldo se sentiu aliviado: a borboleta não integrava nenhuma lista de animais em extinção. “Eu talvez nunca mais a veja na minha vida”.

Ronaldo está em constante alerta sobre o Vale do Quilombo. Vibrou com o engavetamento do projeto de exploração urbana do local, na década passada. Mas, pela experiência de quatro décadas, sabe que vigiar o paraíso representa uma missão sem intervalos ou mais algumas centenas de visitas.

Guaiaó: Depois de 40 anos no Vale do Quilombo, você conseguiu – voluntária ou involuntariamente – provocar consciência ambiental nos moradores de lá?

Ronaldo Bastos Francini: Consegui com alguns. Outros não querem ter este contato. Para eles, a natureza é para ser explorada. A forma como as pessoas usam a terra. Uma forma totalmente destrutiva.

Guaiaó: Qual é a saída para se proteger o Vale do Quilombo?

Ronaldo: Transformá-lo em Unidade de Conservação (UC). É um problema de natureza jurídica complexa. Quando o Governo Federal desapropriou a área, nos anos 70, não deu dinheiro para os donos. Hoje, são dois grandes herdeiros. E eles querem o dinheiro de volta, os tais precatórios. Se a gente pensar que o parque nacional mais antigo do Brasil, o Parque do Itatiaia, tem propriedades particulares porque até hoje a situação fundiária não foi regularizada, o futuro é difícil. Mas, no Itatiaia, por estar em área mais elevada, os moradores – alemães, austríacos e poloneses – tinham uma mentalidade mais conservacionista, diferente da mentalidade colonizadora portuguesa. Mas é preciso pensar em reservas extrativistas. Há exemplos na Amazônia, que preservam o sistema natural.

Guaiaó: E o que um biólogo, em um trabalho quase solitário, pode fazer?

Ronaldo: Não adianta querer segurar o mundo. Tenho que estudar o que precisa ser estudado, fornecer embasamento técnico e contribuir com outros projetos científicos. Preocupa-me a Área Continental, que já foi vista com olhos de industrialização no passado. Três eleições atrás, um candidato a prefeito falou em explorar o local como a nova Santos. Muitos sítios se instalaram ali por conta desta propaganda.

O sonho do óleo negro

Ronaldo Bastos é um ambientalista cauteloso. Não é adepto de ações radicais. Acredita na diplomacia e na capacidade de negociação com empresas e governos. Mas ser diplomata não significa amenizar o olhar sobre o cenário que se desenha a sua volta. Neste sentido, o biólogo é implacável com o caminho que a Baixada Santista deseja tomar para queimar etapas de desenvolvimento. Um dos delírios seria o sonho do óleo negro, a ansiedade em enriquecer com a exploração da camada de pré-sal. “Nossa tecnologia ainda é muito primitiva”.

Ronaldo também não poupa o fascínio da humanidade pelo consumo e pela tecnologia. “Em casos de catástrofes, as consequências serão menores para quem possui menos tecnologia”.

Guaiaó: A Baixada Santista fala demais em pré-sal. Mas, há três anos, o discurso dominante era de revisão da matriz energética. Por que o assunto saiu da agenda pública?

Ronaldo: Quais são as matrizes energéticas viáveis para mantermos a industrialização que achamos que queremos? A industrialização hoje requer muita energia elétrica. As opções para a Europa e o Japão vêm de queima de combustível fóssil – as termelétricas – e, inclusive, de exploração de usinas atômicas. Nós temos a opção hidroelétrica. É melhor? Depende. O Estado de São Paulo não tem mais nenhum grande rio onde a fauna aquática não foi eliminada ou substituída. O lago de uma usina hidrelétrica provoca enorme evaporação de água, que altera clima local, regional e global. As implicações são inúmeras, não apenas relacionadas à biologia de curto prazo, os efeitos no bioma. A janela de condições climáticas ideais está se fechando. Até os políticos sabem disso. E nossa tecnologia não consegue fazer previsões. Já a energia solar e a energia eólica são ainda inviáveis. Quem acredita nisso hoje precisa rever os conceitos de física.

Guaiaó: Santos atravessa uma fase de especulação imobiliária fortíssima. Mais de 60 edifícios em construção e outros tantos projetos aprovados pela Prefeitura. A cidade está entre as três maiores frotas de carros; aliás, veículos cada vez maiores. Quais serão as consequências ambientais desta visão de progresso? E por que a cidade não discute as implicações desta perspectiva?

Ronaldo: Santos é uma ilha em todos os sentidos. Somos a Dubai, uma cidade que não é auto-sustentável, mas com a diferença que tem o petróleo para se manter. Estamos investindo em um futuro, o pré-sal, que ainda não é viável. Tudo isso não vai ruir? Podemos levar 70 anos para extrair petróleo. Não sou contra extrair petróleo. Sou contra extraí-lo para queimá-lo. É uma burrice tão grande quanto insistir em queimar florestas para fazer pastagens. Queimamos porque, entre outras coisas, somos dependentes do plástico. A sociedade de hoje não depende somente de energia. O que nos faz assim hoje é o plástico. (aponta para o microscópio no laboratório). 

Francini em seu laboratório na Unisantos
(Foto: Marcos Piffer)

Guaiaó: Você nasceu em Santos, esteve fora e voltou para trabalhar aqui. O que você vê quando olha para a cidade? 

Ronaldo: Prédios!!! Sou do tempo em que a cidade era repleta de ruas de terra e terrenos baldios. O saneamento básico chegou em casa no início da década de 60. Meus filhos conheceram natureza porque saia com eles para longe da cidade. Santos é uma ilha. A gente só olha para o nosso umbigo. Achamos que é o melhor lugar do mundo. Tem coisas bonitas, mas tenho dúvidas. As paisagens foram um dos fatores que me fizeram voltar. Você ainda vê verde, mesmo meio descolorido. Repito: precisamos olhar para o mundo, mas também conversar com ele. Estamos atrasados em questões educacionais e tecnológicas. Achamos melhor ir para São Paulo. Viramos uma cidade-dormitório. A percepção que tenho é que paramos no tempo.

Guaiaó: Qual é o principal problema ambiental de Santos?

Ronaldo: A densidade populacional. Isso acarreta muitas outras coisas, como o trânsito. Cada prédio de 40 andares, cada um com dois, três carros na garagem. A cidade vai crescer, além da população flutuante de final de semana. O ecólogo não está interessado no tamanho da população, mas o tamanho dela em relação à área ocupada. Os efeitos da densidade já foram vistos em várias espécies e agora atingem a nossa. O aumento da densidade pode ser resolvido com políticas públicas que, de alguma maneira, podem cercear as causas. A densidade pode não ser um problema visível de curto prazo, mas é o pior.

Guaiaó: Por que o discurso ambiental não consegue a mesma penetração em certas camadas da sociedade quando comparado ao discurso político, impregnado de promessas de riqueza e desenvolvimento econômico?

Ronaldo: Dos anos 60 para cá, as grandes empresas e os políticos se apropriaram da palavra ecologia e hoje vendem produtos que não tem o menor significado ecológico. Ao mesmo tempo em que houve a apropriação deste contexto da ecologia, os ambientalistas ficaram com a imagem de xiitas. Até porque muitos deles o são. Muitas pessoas tem boas ideias, mas falta a elas base científica. A visão se torna poética, mas não convencerá as pessoas se não houver argumento sólido da ciência. O movimento ambientalista, hoje, está meio de escanteio, como malucos. E muitas das ações radicais colocam em risco a vida deles e de outras pessoas. Hoje, eu tomo muito mais cuidado com o que falo. Os ambientalistas são muito jovens ou muito velhos. O homem maduro está no mercado de trabalho.

Guaiaó: E o ambientalismo de boutique? Onde entram os consumidores que acreditam preservar o meio ambiente quando compram um produto no shopping?

Ronaldo: Alguns dos institutos que certificam os produtos nem existem de fato. É virtual. Há empresas que financiam projetos para compensar os grandes impactos ambientais. O planeta passou por problemas em larga escala. A última que conhecemos foi há 60 milhões de anos e destruiu cerca de 70% da vida. O que sobrou somos nós e outros organismos que evoluíram. Todas as espécies são egoístas, desejam apenas se reproduzir. Nós também. O que nos resta é nos educarmos. Todas as sociedades tem essa força egoísta. Será que sobreviveremos mais dez mil anos? Temos tecnologia para montar uma colônia em Marte? Conseguimos reproduzir microorganismos e algas em ambientes fechados. Mas todas as tentativas – e a Nasa investe nisso – de reproduzir a sociedade humana em ambientes fechados fracassaram.

O outro paraíso

Ronaldo viaja com frequência para a Amazônia. Ele defende que é preciso estar lá para se compreender e absorver melhor o tamanho do patrimônio e as dimensões dos problemas políticos e ambientais que machucam a região. O biólogo esteve por dois meses, em 1997 e 1999, numa reserva extrativista no Acre, local que considera exemplar na preservação da floresta.

Guaiaó: Por que a Amazônia te encanta tanto?

Ronaldo: É outro mundo. É outra experiência. Muitos moradores de lá tem mais consciência ecológica do que eu. Você anda, anda, anda e só vê florestas, ainda que muitas áreas tenham sido impactadas pela ação do homem. O Acre possui a melhor experiência de conservação ambiental que eu conheço.

Guaiaó: Por que o Acre?

Ronaldo: Por causa do Chico Mendes. Ele e seus seguidores conseguiram mudanças políticas no estado do Acre. Proporcionalmente, é o que possui o maior número de Unidades de Conservação, mais do que o Amazonas. Essas coisas me fizeram olhar para Santos. Precisamos olhar para o mundo.

“A ciência é destrutiva”

Como qualquer sujeito na modernidade, Ronaldo depende da tecnologia para trabalhar. Em seu laboratório, microcóspios com estrutura de plástico e outros recursos de análise científica. Em sua mesa, um laptop que o permite conversar com cientistas do mundo todo. “Trabalhei com muitos que sequer conheço fisicamente.” Quando está em campo, o biólogo carrega consigo variações tecnológicas, desde a rede para a coleta de insetos até a máquina fotográfica capaz de captar imagens em alta resolução.

Mas Ronaldo não rendeu à dependência. Pelo contrário, critica com veemência o estilo de vida do homem atual. “Temos coisas demais. Estendemos nosso corpo com os carros, as casas e o que guardamos dentro delas.” Neste sentido, a ciência não colaborou para uma mentalidade auto-sustentável. Apaixonado pela matemática, Ronaldo reforça que extraímos mais do que o planeta pode nos oferecer. A conta não fecha.

Guaiaó: Você respira ciência e fala dela com paixão. Como você a enxerga?

Ronaldo: A ciência é destrutiva. Muitos cientistas se especializaram de tal maneira que não conseguem falar de outros assuntos em um nível minimamente razoável. Isso limita as pessoas. E a contribuição delas é prejudicada para o nosso futuro. Fora as influências econômicas na produção científica.

Guaiaó: Por que a ciência é destrutiva?

Ronaldo: Porque trabalha com processo analítico. Vamos desmatar, por exemplo, para ver como funciona. Pode ser que, no futuro, um biólogo esteja em um ambiente e, com um computador, consiga determinar o número de espécies. Mas a mesma tecnologia dita limpa tem origens no ambiente. De onde vieram as substâncias químicas que compõem o computador? Hoje, somos 7 bilhões de pessoas. Quantas o planeta pode suportar? Crescemos exponencialmente e todas as espécies que passaram por isso caíram a zero ou a níveis baixos para recomeçar.

Guaiaó: Por que, mesmo em nível global, não ocorre uma discussão científica integrada? Os problemas não costumam ser vistos isoladamente?

Ronaldo: Isso passa pela má educação. A própria ecologia tem problemas. Os ecologistas viam os ecossistemas como sistemas fechados. Hoje, sabemos que são abertos. Ou seja: tudo o que acontece dentro dele provoca efeitos fora. A Teoria Gaia, por exemplo, tem uma qualidade poética, mas nunca foi provada cientificamente. Se o planeta (Gaia) é um organismo vivo funcionando, você pode tirar um braço que continuará vivo. Quais partes você pode tirar para que ele continue vivo? Qual é o cérebro? Qual é o coração de Gaia?

Guaiaó: A tecnologia é uma necessidade humana, desde o início da História. Mas a tecnologia, no contexto de consumo, provoca dependência. A tecnologia é também destrutiva?

Ronaldo: Muitos acham que a tecnologia é capaz de salvar o mundo de seus problemas. Se você pegar os dez alimentos mais consumidos do mundo (arroz, batata, soja etc) e produzi-los de maneira artesanal, não dá para alimentar as 7 bilhões de pessoas. É matemática! Por outro lado, as concentrações humanas dão poder para alguém plantar longe sem sabermos como, com qual tipo de tecnologia. Os custos são cada vez maiores. E os alimentos orgânicos são cada vez mais caros e, portanto, acessíveis a um grupo pequeno de pessoas. A taxa de crescimento humano e de uso dos recursos é maior do que a tecnologia para a reposição do consumo. A produção por hectare de milho é maior do que há 30 anos. Mas, na África, as pessoas ainda morrem de fome. É um problema também político. Nós somos escravos da tecnologia, como usuários de crack e cocaína. A sociedade de hoje entrou em um parafuso de consumo e tecnologia que não consegue sair mais. Só vamos retroceder se houver uma catástrofe. Quanto mais longe o país estiver deste centro de consumo e tecnologia, mais chance terá de sobreviver.

Dois irmãos


Era uma vez dois irmãos. O mais velho nasceu em 1927. O mais novo chegou ao mundo há 20 anos. O intervalo de nascimento já seria assombroso para a história da medicina, mas fica ainda mais bizarro quando descobrimos que a mãe é a mesma. 

Dona Promessa pariu seus dois filhos por inseminação artificial. O pai é desconhecido. O que Dona Promessa fez, ao longo dos anos, foi trocar de marido para se sentir rejuvenescida. A cada novo padrasto dentro de casa, nascia nos filhos a esperança de um protetor até o fim.

Ambos alimentavam o sonho de ter uma vida plena, com recursos e acompanhamento de perto para que deixassem de ser o que mais detestavam: um projeto da mãe.

Depois de uns três padrastos – o número é impreciso por conta dos amantes ocasionais -, o filho mais velho saiu de casa. Cansou-se de uma existência embrionária. Sentia-se uma criança mal amada. Sentia que – se ficasse em casa – jamais se tornaria um adulto.

Magoada, Dona Promessa o enterrou em vida. Tinha um filho caçula, mais popular entre os parentes ingênuos, todos crentes que o menino finalmente vingaria. O garoto acreditou nas profecias maternas. Jurou que jamais seria como o irmão, um projeto inacabado de família.

O menino foi coberto de mimos. Ganhou até um animal de estimação. O tucano substitua o irmão. Fingia dialogar com o bicho, que tagarelava como um papagaio. “Trabalhar 24 horas por dia, sete dias por semana.” Era a frase que o menino mais adorava ouvir do tucano, que gritava sempre que um flash se acendia.

Dona Promessa sentia um vazio. Não percebia que a ausência do filho mais velho a machucava. Convivia com a intuição de que alguém precisava fazer companhia ao caçula.

Em 2010, Dona Promessa tomou uma decisão. Ela importou um primo dos meninos, na casa dos 50 anos de idade. O problema é que o primo apresentava uma deficiência: era menor do que os demais, uma maquete de gente. Mesmo assim, Dona Promessa fez festa. Veio até um tio distante, José Serra, cortar o bolo. Afinal, o primo tinha grife, nome e sobrenome: Ponte Santos-Guarujá.

Naquele mesmo ano, uns seis meses depois, dois acontecimentos alteraram a biografia da família. O primo morreu. Dizem as más línguas que Dona Promessa o enterrou sem derramar única lágrima.

A boa notícia foi que o filho mais velho (seria o bom filho?) à casa retornou. Embora idoso, o Túnel Santos-Guarujá não passa de uma criança por vezes simpática, suficiente para alegrar o irmão, que cresceu um pouquinho este ano. Pena que ainda não consegue ficar de pé. O VLT, apelido carinhoso do pivete, sofre até hoje as consequências de uma gravidez mal planejada.

Nas últimas duas semanas, foi possível ver os dois irmãos brincando embaixo da mesa, nas reuniões de família, na casa de Dona Promessa. Até o tucano, que andava meio amuado, andou berrando com os garotos. Túnel e VLT apostam que mamãe os tratará melhor ano que vem, quando os clientes farão votos de sucesso a mais um aniversário de Dona Promessa.

Para desgosto deles, Dona Promessa jurou de pés juntos, no último encontro familiar, que estava grávida. E que Túnel, o mais velho, teria um irmão gêmeo. Outro túnel? Até o tucano duvidou. Dúvida que contaminou todos os parentes, cientes que aquela mãe nunca quis que seus filhos crescessem. Nunca quis que seus projetos virassem obras feitas.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

A árvore que esconde a floresta


A denúncia nasceu durante reunião do Conselho da Cidade de São Paulo, na semana passada. A voz era de Anderson Lopes Miranda, integrante do Movimento da População em Situação de Rua, da capital. Segundo ele, moradores de rua estariam sendo despejados durante a madrugada, no bairro do Jabaquara. Os responsáveis pela “exportação de gente” seriam funcionários da Prefeitura de Santos. 

De acordo com Anderson Miranda, muitos moradores de rua procuraram o movimento para pedir ajuda. A denúncia foi publicada, no último dia 4, na coluna de Sônia Racy, no jornal O Estado de S.Paulo. A secretária de Assistência Social, Rosana Russo negou as acusações e disse que “não exportamos seres humanos”.

É complicado provar as denúncias, assim como é evidente que não se trata de prática inédita. Nos anos 90, a Prefeitura de São Paulo foi acusada de fazer o processo inverso. Eram famosas as kombis que largavam pessoas aos pés da Serra do Mar.

Outros casos aconteceram no Paraná. Na década passada, cidades do interior despejavam andarilhos em Curitiba. Em entrevistas, muitos moradores eram favoráveis à faxina de seres humanos. Não é preciso caminhar muito para ouvir opiniões semelhantes em Santos. Pouco se toca no assunto, pois prevalece a invisibilidade diante do desigual que dorme em papelão.

É difícil romper com uma estrutura viciada. Ações isoladas não garantem mudanças na infraestrutura. É preciso, além de espaços físicos, profissionais bem remunerados, qualificados e com condições de trabalho.

Uma das assistentes sociais, convocada recentemente por conta de concurso público, procurava em seções da própria Secretaria de Assistência Social vaga para um morador de rua. Ele frequenta o Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua, o Centro POP, inaugurado no final do primeiro semestre.

Todos os abrigos e albergues estavam lotados. O prefeito Paulo Alexandre Barbosa disse, ao jornal O Estado de S.Paulo, que a cidade dobrou para 400 o número de vagas em abrigos. Mas o município tem cerca de mil moradores nas ruas. Com noites chuvosas e frias, o déficit fica exposto, da mesma forma que as marquises são insuficientes para quem procura um prato quente de sopa.

Esta semana também começou a circular, nas universidades, o recrutamento da FIPE. O anúncio chama estudantes para trabalhar no censo de população de rua. A Prefeitura vai pagar R$ 221 mil à instituição ligada à USP. Seria uma noite de trabalho em outubro, com entrega dos dados em 180 dias. É possível contabilizar uma população, com características nômades, numa noite? Fará diferença se alcançarmos mil moradores ou 830 pessoas, segundo dados considerados defasados pelos próprios operadores sociais?

Embora no papel a administração fale numa comissão de cinco secretarias, o problema da população de rua ainda não é tratado de maneira conjunta. Na prática, é uma árvore que mascara a floresta, carente de políticas públicas, que gritam por um trabalho além do mandato de quatro anos.

Nesta semana, começou a funcionar em Santos uma unidade da Cristolândia, ligada à Igreja Batista. O grupo atua na Cracolândia, em São Paulo. No próximo mês, outra entidade – a Missão Belém – trabalhará também no atendimento aos dependentes químicos.

A Prefeitura trabalha com dados da Unifesp, que indica que 86% dos moradores de rua são dependentes de álcool e outras drogas. Sem discutir a doutrina religiosa destas entidades, é essencial o diálogo e a troca de informações para que todas as ações sejam conectadas a longo prazo. As árvores às margens da floresta agradecem.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

A farsa

Ainda no mapa

A Baixada Santista tem 72 mil novos moradores. Trata-se do crescimento populacional em um ano, de acordo com o IBGE. Agora, a região possui 1 milhão 765 mil pessoas. Todas as cidades registraram aumento. Praia Grande foi o município com maior elevação: 15.577 habitantes. 

Bertioga teve o maior crescimento proporcional. A população aumentou 6,7%. São mais 3.375 pessoas. Santos registrou o menor crescimento (3,2%). A maior cidade da região passou a ter 13.539 novos moradores, o que leva a população a 433.153 habitantes.

Além dos dados do IBGE, chegaram à imprensa esta semana duas pesquisas sobre metropolização. A primeira indicava que a Baixada Santista não apresenta características de região metropolitana. A segunda análise sequer a considerava como tal.

Os estudos e as informações do IBGE confirmam o que a sensibilidade política grita há anos. Em primeiro lugar, a Baixada Santista passa por transformações, sem levar em conta planejamento, sustentabilidade, mobilidade urbana ou quaisquer outras expressões que a classe política desgasta em promessas.

Dos congestionamentos à falta de emprego para os jovens, do déficit de habitação popular aos espigões de riqueza concentrada, dos problemas ambientais ao transporte público, a região fingiu não enxergar as alterações geográficas humanas. Apostou em galinhas dos ovos de ouro que sofrem mutações anuais. Turismo de negócios, pré-sal e assim por diante.

Em segundo lugar, a metropolização da Baixada Santista é uma lenda, conversa para vítimas de estelionato político. Oficialmente, com pompa e dinheiro público, a Região Metropolitana da Baixada Santista existe desde 1996. São 17 anos de cansaço só em ouvir o nome do fantasma.

Daí, nasceram o Conselho de Desenvolvimento e a Agência Metropolitana. O Conselho, na prática, reproduz a velha brincadeira da dança das cadeiras. Os prefeitos se revezam na presidência e, quando o rodízio é quebrado, fazem birras. A última foi Márcia Rosa, de Cubatão, preterida pela colega de Peruíbe, Ana Preto. Para conter o chororô cubatense, o Conselho abriu exceção e se reuniu por lá.

A Agência Metropolitana seria o instrumento de políticas públicas para a região. Você conhece alguma? Cada cidade resolve – ou empurra para o vizinho – seus problemas de saúde, educação, transporte etc.

O lixo urbano é um exemplo. Os prefeitos falaram, discutiram, articularam, negociaram e tantos outros verbos sinônimos para dar em nada. Até incinerador entrou, certa vez, na pauta. Cada um pensou em si. Santos correu para a Área Continental. São Vicente manda o lixo para Mauá. Praia Grande desativou lixão, o que gerou depósitos informais.

A Agência também adota a troca, de tempos em tempos, de seus comandantes. Muitos foram políticos com mandato e, hoje, estão fora dos holofotes. Como feudo do Governo do Estado, a AGEM acolhe antigos colaboradores. O atual é Marcelo Bueno, ex-deputado estadual.

A última reunião do Condesb, de número 166, aconteceu realmente em Cubatão, no último dia 27. O secretário estadual de Meio Ambiente, Bruno Covas, foi convidado para fazer um balanço de sua pasta.

Neste ponto, o Condesb é coerente. Ali, gastar saliva é a política de ordem. Assim, a Região Metropolitana passa a existir, não nas ruas, mas nos gabinetes dos tagarelas. E com o agravante de 72 mil cabeças a mais.