sexta-feira, 8 de março de 2013

A fatalidade é inocente


A Dona Fatalidade é uma senhora discreta, que foge de aparições públicas. Como uma mulher ingênua, ela se conformou que sua missão é carregar a culpa alheia. Nas últimas semanas, Dona Fatalidade – que em alguns lugares assina com o pseudônimo Mãe Natureza – tem andado arqueada. As dores dela e o inchaço são consequências da dificuldade em suportar a negligência alheia no lombo. 

Dona Fatalidade circulou nos últimos dias no litoral de São Paulo. Embora impossível pelas leis da física, ela foi vista em dois lugares ao mesmo tempo. Ela teria visitado em Boiçucanga, lugar onde morreu uma menina de 11 anos. Além de acusá-la, seus adversários culparam as moradias irregulares e ignoraram – por conveniência – a ausência de fiscalização, de políticas habitacionais e a paralisação dos serviços de dragagem do rio.

No mesmo horário, Dona Fatalidade também estaria em Cubatão. O passeio incluiu os bairros da Água Fria e Pilões, com parada para descanso perto de um dos túneis da Rodovia dos Imigrantes.

Mãe Natureza está exausta. Outro dia, conversando com a prima Injustiça, ela sonhava em aprisionar um dos mandamentos divinos: que seu nome não fosse mais usado em vão.

As dores do cansaço reapareceram várias vezes ao longo da semana. Dona Fatalidade não aguenta mais ver contadores de histórias, que reescrevem os fatos e os ajeitam para parecerem verdadeiros. Um deles prometeu investigar a Ecovias – a quem sempre fez vistas grossas – e apareceu em Cubatão cinco dias depois para prometer duas mil casas, num passe de mágica. E fingia desconhecer que o auxílio-moradia para os desabrigados era de R$ 400, impossível de se alugar um barraco.

Outra parte da fábula nasceu nos gabinetes da Ecovias. Uma encosta dá vários sinais antes de desmoronar. Não há acaso. Já a família da mulher que morreu soterrada teve que ir à imprensa reclamar da falta de assistência, contradizendo a versão oficial da empresa. A Ecovias também reconhece que seu Plano de Emergência era insuficiente. Será que cumprirá sua parte ou deixará os usuários à própria sorte, quando os holofotes se apagarem, como aconteceu no engarrafamento-monstro do ano passado? O mesmo conto de fadas ouvido pelos motoristas que tiveram seus carros depenados nos pátios?

Dona Fatalidade também não suporta ouvir os trovadores locais. Em Cubatão, ela escutou um representante da Prefeitura afirmar que a cidade pensará em um plano de segurança, pois acidente assim nunca aconteceu. Chuva forte seria um bilhete premiado às avessas, só que todos os anos.

Dona Fatalidade (ou Mãe Natureza) tem memória, assim como muitos moradores. Em segundos, ela é capaz de listar as tragédias que ocorreram nos bairros Cota, até porque sempre leva a culpa.

Ao ver a líder política local, tranquila como uma Rosa, falar em cadastro, reuniões, comissões e outros badulaques burocráticos, Dona Fatalidade pensou em pedir arrego. O peso se tornou insuportável com tantas acusações infundadas. Mais de 250 mortos em incêndio no Rio Grande do Sul. Garoto de 14 anos morto por um sinalizador na Bolívia. Agora, a Baixada Santista e o Litoral Norte. Isso apenas em um mês. A lista inclui os mortos no Carnaval de Santos e a mulher soterrada pela marquise de um supermercado na mesma cidade.

Dona Fatalidade ainda costuma encarar as reprovações com ar sereno. Esperançosa, ela aposta que um dia descobrirão que muitas tragédias têm os dedos de suas duas irmãs, ovelhas encardidas da família. O problema é que são muito parecidas aos olhos das autoridades. Tão próximas que o nome de uma delas até rima. Quem vai desmascarar a Negligência e a Irresponsabilidade?

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