Márcio Calafiori*
Era o início do verão, começo de noite, muita gente passeando no Gonzaga, anos 1980. Estávamos num bar, três amigos e eu. Na verdade, nem era um bar. Era um boteco, com mesas do lado de fora, no coração do Gonzaga.
Quando eu queria beber uma cerveja, sem mais delongas, costumava dar uma parada ali. Agora com o ar morno do verão e o movimento intenso no bairro, os frequentadores ocasionais eram servidos por um garçom de gravata borboleta, camisa branca e calça preta. Pedimos cerveja. E um dos amigos, argentino que morava em Santos havia três anos, quis caipirinha.
Digamos que, na época, assim como hoje, a cerveja custasse R$ 7,50; e a caipirinha de cachaça, R$ 10. Pois, quando veio a conta, cada garrafa de cerveja e cada copo de caipirinha passaram a custar, de repente, R$ 15,00 e R$ 30,00. Interpelei o garçom: “Amigo, será que você não errou na conta?” “Não, a conta está certa.” Insisti: “Mas não pode estar certa.” “Está certa, sim, mas se quiser reclame lá dentro com o dono.”
Bem, discuti e quase me atraquei com o dono do boteco. Humilhado e ofendido, fui contido e afastado pelos amigos, e um deles, o argentino, pressionado pelos seguranças, achou que em vez de apanhar o melhor a fazer era pagar a conta.
Mais tarde e longe dali, tentando entender a ladroeira, o argentino me disse: “Cobraram a mais porque o garçom achou que nós éramos turistas, eu não falo português.” Ah, é? Pois tudo isso poderia ter acabado de um jeito muito pior, tal como ocorreu com o rapaz que veio de Campinas passar o fim do ano no Guarujá e foi assassinado, esfaqueado nas costas, pelo dono de um restaurante.
Antes de morrer, ele ainda foi covardemente agredido, com a participação dos garçons. Tudo como no Velho Oeste. E por quê? Simplesmente porque reclamou que estavam querendo lhe passar a perna. Alguém poderá dizer que se trata de um ato isolado. Mas fui vítima da mesma atitude vinte e tantos anos atrás por parte de um dono de bar estabelecido num centro comercial, no coração de um bairro importante, numa cidade importante e com o mesmo propósito: faturar mais porque é verão.
Na mente de comerciantes desse naipe, Santos e adjacências estão repletos de turistas otários, dispostos a serem ludibriados. Portanto, todo o cuidado é pouco. Gente assim está disposta a matar.
A tragédia envolvendo a vida desse rapaz deixou mais uma vez evidente que a região não está preparada para receber turistas. Estes não passam de presas fáceis em cidades sem infraestrutura, com parte do seu comércio sem regras claras e decentes, sem a mínima política da cortesia e do profissionalismo, envolvendo justamente um dos segmentos mais valiosos e que mais crescem no mundo — o do turismo.
Os prefeitos que administram a região não circulam, não frequentam bares e restaurantes, não compram em lojas, não andam de táxi? Não conhecem os defeitos das suas cidades e, conhecendo-os, não acham por bem apontá-los e tentar corrigi-los ou pelo menos exigir providências de entidades como as associações comerciais e os dirigentes lojistas? Afinal, para que serve um prefeito? E as secretarias de turismo? E as entidades de classe?
Não existe um jeito de mudar a mentalidade do segmento de serviço, que é no que se ampara boa parte dos municípios aqui, atribuindo conceitos, educando ou seja lá o que for que consiga elevar o nível de atendimento, de comprometimento e de civilidade com quem nos visita e com a própria população?
O rapaz que veio de Campinas e foi assassinado pelas costas porque ousou reclamar de um ato absolutamente desonesto foi vítima de determinado tipo de mentalidade perversa que diz respeito não apenas ao Guarujá. Por assim dizer, trata-se da filosofia sórdida da região quando o assunto é a economia oriunda do verão, cujo princípio é desde sempre este: está aberta a temporada de caça aos turistas.
* Márcio Calafiori é jornalista.
É isso mesmo!!! Falou tudo!!! Muito bem escrito para variar... Calafiori é D+++!!!
ResponderExcluirTexto perfeito, Calafa! Pessoas como você me fazem acreditar que ainda existe decência.
ResponderExcluirBeijo grande!