A Polícia Militar de São Paulo matou, nos últimos sete anos, 4.189 pessoas. Deste total, 3.274 foram registradas como “resistência seguida de morte”, denominação genérica impregnada de suspeitas. Outros 915 casos foram considerados homicídios dolosos.
Dois episódios, esta semana, colocaram novamente a PM como sinônimo de matança. O empresário Ricardo Prudente de Aquino foi morto com dois tiros na cabeça na quarta-feira, em São Paulo, depois de uma perseguição por mais de 10 minutos. Ele levou dois tiros a cabeça. Estava desarmado. Os policiais dizem ter confundido um celular com uma arma.
Bruno Vicente Gouveia e Viana, de 19 anos, foi assassinado em Santos. Outras duas pessoas ficaram feridas. Os policiais atiraram 25 vezes contra o Gol onde estavam as vítimas. O motorista do veículo teria ignorado uma blitz porque estava com a carteira de habilitação vencida.
Digo novamente sinônimo de matança porque a instituição é acusada de excesso de violência em toda sua biografia. Da Rota malufiana ao massacre do Carandiru. Dos índices nos anos 90, média de quatro mortes por dia, ao assassinato de quatro rapazes em Praia Grande, sequestrados após a saída de um baile na vizinha São Vicente.
O Brasil chafurda numa guerra civil, principalmente nas grandes cidades. Não dá para ignorar 50 mil assassinatos por ano no país. Os cínicos (governantes e comandantes incluídos) podem argumentar que a PM mata hoje, em média, entre uma e duas pessoas por dia em São Paulo. Seria a metade de 20 anos atrás.
Por outro lado, poderia desfiar um rosário de dados sobre como a PM mata e prende pouco. Dois exemplos: 1) a Polícia Militar de São Paulo mata mais do que todas as forças de segurança dos Estados Unidos; 2) O número de prisões em SP é, proporcionalmente, 108 vezes menor do que nos EUA, o maior sistema prisional do planeta.
Mas estatísticas não justificam mortes. Reforçam a selvageria de quem as comete, na maioria dos casos. Banalizam e desumanizam vítimas e agressores. Servem de manipulação político-eleitoral. E fornecem um panorama geral, mas não se aproximam do contexto nem esclarecem as deficiências estruturais do sistema de segurança pública.
Os tradicionais obstáculos no cotidiano de um policial militar, de salário a armamento, são incapazes de justificar a mentalidade que contamina as relações deste servidor público com a população. A PM realimentou e preservou o olhar da autoridade, cultivo fértil durante a ditadura militar. E tornou trivial certos privilégios no contato com comerciantes, por exemplo, e nas atividades profissionais paralelas, como segurança privada.
A Polícia Militar é temida pela violência, e muitos acreditam que parte da corporação cede às tentações da criminalidade, fiéis à crença da impunidade. Mas parte da sociedade dá respaldo – a omissão é uma forma de concordância – à postura dos policiais. O senso comum cultua a premissa de que “bandido bom é bandido morto”.
Neste sentido, ainda prevalece a associação de que a marginalidade está concentrada em áreas periféricas e personificada em sujeitos sem escolaridade, de cor negra ou parda e jovem. A visão da polícia solidifica a imagem de que nas favelas só residem bandidos. Por trás deste rascunho de rótulo, escondem-se os preconceitos racial e sócio-econômico, compartilhado pela classe média e reproduzido pelos homens de frente da segurança pública.
Como disse o jornalista Caco Barcelos, por ocasião do livro “Rota 66”, a Polícia Militar tem, em sua mentalidade, a proteção do patrimônio, e não das pessoas. O repórter morou dois anos em Paris por conta das ameaças veladas e explícitas de policiais, alguns deles com cargo eletivo, feitas após a publicação do livro.
O cenário de hipocrisia provoca choque quando os policiais dão azar de matar alguém de dinheiro e/ou prestígio social. Ou quando parentes e amigos das vítimas resolvem rasgar a mordaça do medo e implorar – via imprensa – por justiça. Nasce o fingimento do novo, que luta para acobertar a rotina.
Os dois últimos episódios se encaixam perfeitamente nos dois fatores descritos acima. Uma vítima era empresário. No outro caso, família e amigos não se esconderam. Quantas vezes perseguições resultaram em mortes? Quantas vezes ficou no ar a desconfiança sobre drogas e armas encontradas em veículos? Parentes das vítimas negam com veemência a versão dos policiais presos.
Nem a Polícia Civil acreditou na história dos acusados. 25 tiros contra um carro com seis pessoas, “armadas” com um 22 e uma pistola de brinquedo? Quem pratica um sequestro-relâmpago com outras cinco pessoas dentro de um automóvel, conforme a suspeita dos PMs presos?
O treinamento da Polícia Militar é defendido de arma em punho pelos comandantes. Dentro do previsível espírito de corpo, o comando considerou as operações “tecnicamente corretas”, ao contrário do que declararam vários oficiais da reserva à imprensa. Novas perguntas: por que os PMs não atiraram nos pneus do carro do empresário, conforme se ensina em treinamento? Por que os dois tiros não foram disparados contra áreas não-letais da vítima, em vez dos dois tiros na cabeça, obviamente para matar?
As duas mortes, infelizmente, deverão engrossar um enredo de final clichê. As vítimas serão relembradas nas próximas matanças. Os PMs deverão ser condenados e expulsos da corporação. Mas a questão é que, enquanto a polícia brasileira sofrer de complexo de autoridade, continuaremos a testemunhar uma guerra civil digna de transformar conflitos armados em outros continentes em brincadeira de criança.
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