Protesto contra aumento da tarifa de ônibus, em São Paulo |
Marcus Vinicius Batista
Entrei na farmácia e encontrei um colega de trabalho. Ele falava alto e se movia como pavão entre os balconistas e o farmacêutico, todos com feições de natureza morta. Vibrava com o som da própria voz, que garantia que tudo mudou naquela manhã.
Quando me viu, atropelou o bom dia e me perguntou de imediato: "Viu o noticiário?" "Vi", entendendo o motivo do carnaval. "Olha, professor, agora tudo vai mudar. Com a prisão do Lula, finalmente o Brasil será outro." O colega pagou e seguiu em fortes bravatas porta afora, desta vez sem plateia.
Penso nessa e noutras conversas dos últimos dias, ao escutar as profecias para o próximo domingo. A promessa de campanha é encher as ruas no dia 13 de março. Tenho medo do que pode acontecer neste dia. Temo que o mundo virtual, dos ativistas protegidos por ar-condicionado, teclado ou monitor, possa ser transportado para um cenário real da pior maneira. Que o discurso Fla-Flu, que a arquibancada de torcida organizada, com suas canções de intolerância, preconceito e maniqueísmo, desfile para as câmeras das emissoras de TV.
O cenário que se desenha é mais uma chance abandonada em qualquer esquina, como bandeiras e adesivos pós-festa. Salvo uma surpresa com cheiro de milagre, minha tendência é acreditar que repetiremos os gritos mimados de uma democracia infantilizada, adepta das soluções de desenhos animados ou telenovelas, que dividem o mundo em dois: os que estão comigo e os vilões, que nasceram contra mim.
Neste mundo preto ou branco, pouco se discute política. Anexar a palavra "pública" à política representa um delírio de grandeza intelectual. É claro que condições democráticas são exceção na história do país. Passamos a maior parte - e desconfio que nos acostumamos e alguns até idolatram - sob tutela das gravatas ou das armas, sob o conforto de quem sempre nos diz o que fazer, como pensar, para onde andar, quem demonizar e eliminar da nossa frente.
A visão política, no geral, reproduz o olhar da classe político-partidária, atrelada a interesses menores e particulares. Aprendemos com os melhores professores como ficarmos cegos para a coletividade, enquanto arregalamos os olhos para os benefícios individuais. Enxergamos com um reducionismo de classe média: desejo de subir, ojeriza de descer.
Neste sentido, falta a capacidade política de compreender os tons de cinza. Tomar ciência dos jogos de interesses. Informar-se sobre o histórico das lideranças e das instituições partidárias. Duvidar do papel de parte da imprensa, que pratica o ditado "casa de ferreiro, espeto de pau", quando arrota conceitos como imparcialidade, neutralidade e objetividade para mascarar seus modelos de negócios. E aprender que política é exercitada por grupos de interesses, e não somente por sujeitos que viram heróis ou vilões como Lula, FHC e o prefeito da sua cidade.
Desconfio que praticamos uma democracia de consumo. Não falo de acessos a todos aos bens materiais; muito pelo contrário. Penso num olhar de cliente, que respira pelo próprio umbigo e finge se interessar por tudo e por todos. Se há condições, compramos ou financiamos. Se há problema, reclamamos no 0800; neste caso, de maneira impessoal como se conversássemos realmente com um gravação.
A política também absorveu a lógica do espetáculo. Prevalecem a imagem, a forma e a retórica fútil de um produto que se vende como barato, eficiente e perfumado. Não checamos as biografias, preferimos reduzi-las às últimas declarações que geram notícias. Escolhemos, com ingenuidade, personagens folclóricas, alinhadas e porta-vozes da nossa virulência, que falam de tudo num tom acima e nada explicam.
Os democratas do maniqueísmo adoram a narrativa novelesca para comprimir um processo político no capítulo do dia. Adicionam uma pitada de individualismo, que se reflete no deixa prá lá de descarte da lei, quando confirmam nossas posições e interesses econômicos. Instalamos um pedestal para promotores e juízes que reagem ao clamor midiático com a fantasia de justiceiros. Vale acusar qualquer político, petralha ou coxinha (perdão pelo estereótipo), desde que renda alguns minutos no noticiário da noite. Construir processo e buscar pela condenação do réu e seus amigos - incluindo os corruptores - é tempo de exceção. A velha máxima se repete: "para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei."
Na compra e venda de indignações, a demanda é por rótulos, simplificadores de rasa explicação dos fatos. Ouvi esses dias alguém falando que o Governo é repleto de comunistas. Gostaria de conhecer um deles, dentro de um contexto de modelo neoliberal, de uma gestão que esmagou diversas minorias - índios, por exemplo -, protegeu bancos e rezou a cartilha internacional das grandes economias, com o mantra "crédito e consumo".
A democracia infantil não deseja aprender, somente brincar. O sistema político se esvai numa entidade espiritual, distante, opaca e desconhecida. Não nos interessa saber como funciona o governo, como se vence uma eleição. Basta que minhas contas estejam pagas e que meu consumismo possa se perpetuar nos desejos da moda.
O domingo não será o dia da mudança, infelizmente. Será um dia de risco, que correremos se optarmos pela arena no sentido de espetáculo romano, e não no sentido de reflexão grega. Nesta democracia tardia, ainda adolescente, é fundamental que, antes de crucificar personas eleitas, tenhamos que carregar espelhos para as ruas das grandes cidades. Poderemos nos ver, e não nos atirarmos aos leões para que os sujeitos criadores do show sorriam e se divirtam com o sangue alheio.
Olhar para a própria ignorância - e se reconhecer como tal - pode ser o primeiro passo para assimilar e vivenciar a ideia de que a corrupção pertence a todos nós, não apenas ao PT e ao PSDB. Deixemos de ser o PMDB, sempre presente, mas apontando o dedo como se nunca estivesse ali.
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