sábado, 14 de novembro de 2015

A guerra faz parte do show



Marcus Vinicius Batista

Vivemos sob estado de guerra. Não se trata apenas dos conflitos em andamento, seja na Nigéria, na Síria, no Afeganistão, no Iraque ou em Paris. Não me refiro somente aos ataques de grupos típicos do mundo pós-moderno, que falseiam os territórios, que desprezam governos, mas não o poder, no qual prevalecem - como pano de fundo - os olhares mercadológicos sobre a vida e a morte.

Os conflitos ultrapassam os limites entre perspectiva ocidental e olhar islâmico sobre o mundo. O choque de civilizações ruiu como conceito e prática política desde que a globalização aportou como nova versão do tempo-espaço.

A guerra em que vivemos é maior do que uma crise de valores, que me soa mais permanente do que transitória, como se caracterizam as crises. Talvez tenhamos que admitir que somos assim, não em crise, que pressupõe mudanças amanhã, ao nascer do sol.

A guerra e sua face violenta sempre esteve entre nós. Sem entrar no mérito, o terror também sempre esteve entre nós, depende do ângulo de quem conta a história. O terror é irmão gêmeo da violência e da retórica, duas características humanas. Basta abrir qualquer livro de História, de qualquer período, de qualquer corrente de pensamento.

Vivemos, neste momento, uma guerra sob as asas do espetáculo, da transformação instantânea da tragédia humana em falso ineditismo, em novidade que camufla nossos velhos defeitos e desvios, nossas eternas doenças. O show precisa parir comoção. O show nos atrai por causas nobres, eleitas pelo senso comum e pela correnteza do pensamento único, que nos tornam melhores sem que precisemos sair do lugar.

Não há necessidade de se mobilizar, tampouco impulso em compreender com profundidade o que se passa (demanda tempo!), com motivações, impactos e rol de responsáveis e cúmplices. Basta um grito, uma imagem e estamos dentro do palco, integrantes do espetáculo que quantifica e localiza desastres alheios, sem que sejamos por vezes capazes nos incluirmos como distantes e indiferentes.

O show clama por súditos, ávidos por um novo conflito a partir do conflito midiático que o sensibilizou. Aí está nossa guerra, um combate seguro, de agressões genéricas, espalhadas pelos ventos virtuais que não refrescam ou assustam ninguém. Teclados e monitores são escudos blindados contra a crueza além da janela. É tudo retórica, a polêmica da semana que sobrevive pela sobreposição de fatos, pelo horror em estado de imagem, enquanto despreza a reflexão, o contexto e o processo histórico por natureza.

O espetáculo se alimenta da plateia. E uma plateia se organiza pelo barulho e, em parte, se houver um adversário. Um apenas, não vários, como se vê em quaisquer fenômenos políticos, econômicos e sociais. É uma peça de propaganda de guerra, que simultaneamente conquista corações e mentes - com o perdão do clichê - e define quais corações e mentes devem ser odiados. Uma história cinematográfica, na qual mocinhos e vilões precisam ter papéis claros, para rápido consumo, como nas dependências de uma lanchonete fast-food.

A lógica envolve a construção imediata de um inimigo, que tenha ao menos cheiro de instituição. Instituições legitimam oponentes. A vilanização cria a primeira camada maniqueísta para que, armados de discursos prontos, possamos lamentar e vociferar com a diferença de uma postagem. O problema é que o maniqueísmo passa por etapas de metamorfose, reproduzindo novos elementos para a virulência, para engrossar o juízo de valores que esconde nossa própria hipocrisia.

Mais do que a lógica econômico-financeira do noticiário, nós nos mobilizamos por um caminho e acabamos exorcistas dos demais. A hipocrisia ou a solidariedade não se manifestam por exclusividade ou eliminação. Amar uma tragédia não significa ignorar a outra. Só que o espetáculo se agarra no choque oco para se perpetuar nos próprios conteúdos que integram esse drama. Mariana vira Paris. Paris vira Nigéria. Nigéria se opõe à Mariana.

Enquanto nos preocupamos em apontar o dedo para determinar qual tragédia merece mais pontos na Bolsa de Valores, ficamos à mercê da superficialidade e da fragmentação que navegam como hóspedes nas costas da desinformação. O foco vira erguer armas que disparam saliva e vulgarizam palavras.

O espetáculo adora quando a guerra e a negligência reais não são questionadas com medidas políticas, populares ou não, em detrimento de quem pode dar a última palavra, ainda que espessa como brisa. O show alcança o gozo se a guerra for ganhar a conversa, se a ordem for colocar vidas humanas numa balança que pesa por nacionalidade, status via conta bancária, religião ou quaisquer outros fatores criados pela estupidez humana.

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